A DIGNIDADE HUMANA É O ALICERCE DOS DIREITOS HUMANOS

União Europeia – Uma “Comunidade de Valores” sem Sustentabilidade?

António Justo

Não é a autonomia da pessoa que fundamenta os direitos humanos, mas sim a dignidade humana que fundamenta a sua autonomia. O Homem é um ser situado e como tal feito de eu, tu e nós, de espaço e de tempo (é mais que as suas circunstâncias). Nele a transcendência dá perspectiva e continuidade à chama da realidade (1).

Querer basear os Direitos humanos apenas no Direito político (no direito e na moral), como tenta a União Europeia, quando se procura identificar e definir como “Comunidade de Valores” (por ordem decrescente a nível de popularidade: “direitos humanos”, “democracia”, paz, “estado de direito”, “solidariedade” “respeito por outras culturas”, “respeito pela vida humana”, “igualdade”, “liberdade do indivíduo”, “tolerância”, “autorrealização” e “religião”), significaria um encurtamento, uma regressão no processo do desenvolvimento (humano, histórico e sociológico). Ao mesmo tempo corresponderia ao abdicar da sua função teleológica (das causas finais ou finalidade – propósitos e motivos que estão por trás do viver e do agir) e a conformar-se com o fim da História. Implicaria uma amnésia da história passada e consequentemente uma renúncia ao futuro (em vez de sujeito assumiria o papel de ser apenas  objecto da História: ser um objecto entre outros; renuncia à própria consciência de sujeito para viver oportunisticamente numa posição hipócrita de igualdade artificial com outras culturas: relativismo cultural!).

Pretender reduzir a tradição europeia ao iluminismo sem reconhecer que este só foi possível na continuação da Idade Média e do Renascimento e da doutrina cristã e grega corresponderia a desfamiliarizar-se à imagem do filho pródigo. Os valores da comunidade não a justificam por si mesmos; com o tempo tornar-se-iam numa roda de hamster sem missão nem sentido e sem objectivo abrangente.  Ontem como hoje legitimam-se guerras e injustiças em nome da defesa de valores e direitos individuais, religiosos e políticos. Os direitos e interesses das partes concorrentes determinam o agir à custa da dignidade humana (2).

Entre o imperativo categórico da razão e o imperativo integral do divino

Nessa “Europa dos Valores”, o barómetro da validade dos valores dependeria, pontualmente, do sentimento expresso em determinada época ou tempo.

O desejo corre atrás da falta. O mimetismo das leis e costumes na luta pela sobevivência que cria esperanças não dá sentido nem pode satisfazer a Esperança. O bem-comum e a democracia são demasiado circunstanciados para poderem ser apresentados como garantes de futuro ou como princípio ético global (Exemplo de do filósofo Sócrates e de Jesus Cristo que foram mortos em nome da lei por defenderem a dignidade humana que transcende a própria lei e moral: ao não seguirem a moral da massa ficaram fora da lei e da sociedade). A polis, a democracia, em nome do povo,  legitima a morte do indivíduo pela lei embora este, como testemunha Jesus e Sócrates, seja fiel a uma consciência ética individual e social superior à da massa; numa perspectiva da polis, ao indivíduo fica reservado o mal se não segue a masssa. Na consequência podemos concluir que não chega o reconhecimento do grupo ou da sociedade como prémio ou como saisfação de uma necessidade para legitimar um acto ou uma lei geral. O facto de se pressupor um ideal absolto e de ele ser impossível no tempo, devido à falta, não justifica a sua negação ou sentido.

O desejo realizado apenas no âmbito social  reduziria a vida a uma mera necessidade de autoafirmação presente na natura e na cultura mas sem perspectiva de sentido final. A liberdade e a dignidade humana são  mais do que a lei produz. A esfera da moral é criada pela lei mas esta deve deixar margem para poder ser secundada pela consciência.

A vontade da lei – expressão do momento – seria determinante independentemente do sentido e da finalidade do Homem, da história e da natureza, que apontam seguir no sentido de uma meta e de uma caminhada de aperfeiçoamento comum (a natureza e o desenvolvimento antropológico e sociológico seguem na peugada de um chamamento). A teleologia explica a realidade em termos de causas finais e a teologia explica a realidade em termos de primeiro motor e de causas finais, na perspectiva humano-divina.

O imperativo categórico da razão não pode obstar ao imperativo integral do divino, que é uma constante a manter-se; a ética da responsabilidade é um bom orientador para regular a vida da pessoa na cidade (sociedade) mas não é suficiente, precisa também da virtude moral pessoal (convicção) que assente num imperativo divino (esfera mística e ideal já apresentada por Platão na alegoria da caverna). Não é suficiente a narrativa da comédia e da tragédia da vida para a explicar; a vida humana necessita-se também da filosofia e da espiritualidade como procura da verdade. (Naturalmente que aqui falo como cristão, mas como cristão consciente de que todas as doutrinas e éticas se interrelacionam e se necessitam na caminhada comum de realização e descoberta do mistério).

Substituir o olhar de Deus pelo do Estado secular seria condicionar o cidadão irremediavelmente à polis (cidade) tal como em tempos anteriores o servo da gleba tinha sido condicionado à agricultura. Seria dar o passo da Religião para a Ciência de maneira irreflectida, porque esta não aceita reconhecer nem ver a ideologia que a sustenta. Nesta via reduzir-se-ia tudo a educação, psicologia  economia e sociologia, fazendo dos professores os novos sacerdotes ao serviço de uma subalternidade que humilha a pessoa.

A dignidade humana (de gene divina) ultrapassa o estatuto da moral e do direito; ela é que os fundamenta e garante: neste sentido, todo o Homem é filho de Deus independentemente da sua crença e mundivisão. Com a morte de Deus, a Europa perderia o seu passado e com ela o sentido do seu futuro. Seria antieuropeu e anti-cultura-ocidental, se os seus representantes continuassem a negar o Deus dos cristãos (o Cristianismo fonte do seu ser e projecção e sentido da missão no mundo de se dar “a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”) porque ao matar Deus matam a cultura e negam a continuidade da história. Todo o Homem ocidental consciente da cultura europeia, independentemente de ser ou não crente, reconhece a importância do cristianismo como matriz da cultura ocidental que soube integrar nela  o espírito grego e romano numa dinâmica de aculturação e inculturação com outras culturas; de facto são instituições como o Catolicismo e outras comunidades que, na abertura, permitem garantir a sustentabilidade de uma civilização que herdou delas a dignidade humana e os direitos humanos numa dinâmica de se reinventar e refazer continuamente.

O direito é algo externo e como tal não tão vinculativo como a dignidade humana porque, mesmo o Estado de direito que se entende justo, tem um sistema jurídico fruto da força dos mais fortes e que os beneficia, com maior ou menor desvio, de cultura para cultura: a dignidade humana essa é uma constante acompanhada por valores (direitos e deveres) variáveis. A dignidade humana, por mais ultrajada que se encontre num sujeito, transcende o direito (quando este dispõe do homem como objecto); a dignidade humana responsabiliza o ser humano no foro externo e interno; não se subjuga à ponderação de interesses imediatos (individuais ou grupais) que a determinem.

A instituição e o órgão não se podem sobrepor à pessoa (dignidade humana). O Estado embora promova o direito é ao mesmo tempo seu objecto e a vontade do povo é legitimadora das leis na medida em que as condiciona à dignidade humana. Doutro modo temos uma sociedade de direito, mas de legitimidade muito limitada.

De que me valeria ser justo se a minha justiça contribuísse para a sustentabilidade de um estado de injustiça?

Para Aristóteles o fim da acção é a felicidade (fim teleológico)

 

Na vida individual e social, a uma força biológica causal junta-se uma força intencional (um objectivo a longo prazo, impossível de ser observado num momento determinado dado o observador fazer parte do processo).

Sem uma visão teleológica da realidade e da própria história, os valores e os direitos humanos (e um possível catálogo de princípios éticos acompanhantes) careceriam de sentido e propósito, não podendo por si sós tornar-se em motivação de acções e de valores.  Um agir motivado apenas pelo direito teria como consequência um utilitarismo egoísta ad hoc porque até o princípio ético da justiça não passaria de um argumento para se produzir um contínuo estado de guerra desesperada contra quem tem ou é mais ou até incrementar um estado de guerrilha de indivíduos e de grupos na sociedade (à imagem dos jhiadistas muçulmanos).

Se observamos, o ser humano, a natureza (biologia) e a História na sua caminhada (antropológica e sociológica) verifica-se não só a caminhada mas que o caminhar se orienta para uma meta (força motivadora e intencional; o argumento de uma possível lei de adaptação é insuficiente por excluir o fim aberto da metafísica; não chega a força da necessidade para justificar a criação do órgão nem o salto das espécies para explicar o desenvolvimento nem tão-pouco uma ordem; por trás da necessidade há um impulsionador que possibilita a própria ordem, a orienta e a satisfaz e a que se poderia chamar felicidade ou perfeição – realização final (dinâmica da trindade). (Nesta perspectiva torna-se óbvia a colaboração das várias ciências como achegas complementares na tentativa de desvendar o mistério da vida e do mundo que é maior do que o âmbito que cada sector abrange: não chega ficar-se pelo materialismo nem pelo espiritualismo como modo de explicar o mundo e o Homem (sua origem, composição, finalidade e sentido; também não é suficiente perder-se em explicações); um e outro têm de se dar as mãos para solidariamente servirem a Humanidade. Com efeito, uma autoafirmação no ser contra e através da negação do outro (alteridade) corresponderia a um impulso primitivo de elementos inconscientes, sem ipseidade própria nem sentido.

A Dignidade Humana é a   logomarca da história intelectual e mística europeia

A dignidade humana dá consistência à autonomia dos direitos humanos, legitimados por uma convicção moral. De facto, não chega a tentativa de um enquadramento da consciência europeia em variáveis jurídicas e morais para fundamentar o valor de uma cultura ou fundamentar a dignidade humana; a moldura é variável, como se verifica ao longo da História e na comparação das culturas. (Uma fundamentação e explicação meramente ética procura a sua origem na filosofia Kantiana, em concepções utilitaristas ou relativistas). São, porém, insuficientes. O acto político humano circunstancial (democrático), expresso na elaboração de uma Constituição, não é suficiente para fundamentar um direito vinculador do comportamento, porque não reflecte o ser do Homem, o Homem todo, a sua ipseidade de caracter divino.

Não chegam conceitos morais para fundamentar os diretos humanos; uma ética responsável é sempre pessoal; como referi, a “dignidade humana”, de identidade cristã e de filiação judaico-geco-romana precisa de manter instituições que preservem a memória e a vivência a ser transmitida de geração em geração (cristianismo e seus desafiadores como guardiães do direito natural, do direito positivo e do direito espiritual). A Dignidade Humana é a   logomarca da história intelectual e mística europeia e baseia-se na” Imagem de Deus” apesar das mais diversas expressões e ao abuso do mais forte; abuso sempre presente na história religiosa e profana pelo facto de estes não deixarem de ser portadores dos males inerentes ao ser humano.

Embora o cristianismo não tenha elaborado um catálogo específico sobre os direitos humanos e o seu fundamento na Dignidade humana, toda a sua espiritualidade (ser-humano feito de terra e céu, o protótipo Jesus Cristo, o embutindo na relação pessoal trinitária, as bem-aventuranças, tudo isto cria um uma relação substancial de elevação natural da dignidade humana. O cristianismo é mais que uma religião, por isso, a dignidade humana é definida independentemente da religião…e como tal global e válida para toda a crença e descrença.

A dignidade humana é mais que um direito; ela é a rainha de todo o direito! A honra humana é inerente ao Homem independentemente do estado social e da sua avaliação ao longo do tempo. Para Paulo não há grego nem romano. O Homem deve velar pela sua dignidade perante si, perante os outros e perante Deus implicando isto o seguimento de um chamamento de perfeição.

A dignidade humana e a admiração por todos os seres prestam-se como alegação universal para o direito e a moral de todos os povos.  A dignidade humana é o fundamento religioso e filosófico mais apropriado dos direitos humanos; uma tentativa de colocar os direitos humanos como fundamento leva ao equivoco, dado o direito e a moral que os assistem serem demasiadamente localizáveis, condicionadores e condicionados ao lugar e ao tempo, para poderem servir de fundamento último de mundividências ou atitudes. A mera lei como orientação mata as asas do sonho, aquilo que nos torna Homem.

Pena de morte – Um Direito contra a Dignidade humana

 

Consequentemente, a dignidade humana não é compatível com a legitimação da morte de embriões nem de pessoas em estádio último, muito embora o direito se expresse diferentemente em circunstâncias diferentes. Tentar definir a dignidade humana corresponderia a equacioná-la e condicioná-la em termos de sistemas ideológicos ou mundivisões ela é o valor em si porque, o valor a priori anterior à formulação do direito público e do direito privado.

 

Corre-se o perigo de haver uma degradação da orientação baseado num processo de transferimento do pensar da filiação divina, para o pensar racional e ultimamente para o pensar utilitário-financeiro. De facto, na formação dos juízos de valor deparamo-nos com a influência da economia em termos de câmbios correspondentes a trocas de valores equivalentes a produtos em igualdade

Basear os direitos humanos apenas na acção de legislação política corresponderia à elaboração de um sistema social com pés de barro como na predição de Nabucodonosor . Com o tempo o homem deixaria de ser sujeito e senhor para passar a objecto e escravo.

A Dignidade Humana e o respeito perante a vida (todo o ser) são os garantes da paz e do desenvolvimento dos povos.

A lei da pena de morte, vigente nalguns países, é o exemplo mais acabado de como uma determinação legal, embora democrática, transgride a dignidade humana e o respeito pela vida ao conferir a uma instituição o direito de colocar a sua norma acima da Dignidade humana.

©António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

(1) Faço esta reflexão que provem de uma observação do agir e legislar da União Europeia, consciente de que muitos dos seus timoneiros não estão à altura de perceber a matriz da cultura europeia e do seu sentido e significado para os cidadãos e para o mundo. Em vez de viverem a própria cultura, incorrem num zelo jacobino masculino de imporem a outros povos a sua “democracia”, com um constructo dos “valores europeus” em que os valores da pessoa, da família e da comunidade deram lugar aos valores do mercado que para se tornar absoluto aposta no egoísmo humano, longe de Deus e do povo. Não me preocupa a crença; o que me preocupa é uma Europa só corpo que perdeu a alma e que por isso não parece saber o que quer nem o que faz.

(2) Hoje torna-se óbvia, mais que nunca, uma discussão desemperrada sobre a cultura europeia atendendo ao seu caracter aberto e à afirmação crescente da cultura árabe no seu meio como gueto. Neste sentido não é suficiente uma Constituição dado se afirmarem à custa da cedência de bens culturais europeus sem que eles cedam também nos seus; de facto, a abertura cede ao fechamento sem nada em contrapartida.

QUE SERIA DOS ESPERTOS SE NÃO FOSSEM OS BURROS!

A Inteligência e a Burrice da Nação espelham-se nos Governantes e vice-versa

António Justo

Quando se desce à rua, seja em África, Venezuela, Brasil, nas alas do governo ou da oposição, tem-se a impressão de vivermos numa sociedade doente e de atmosfera infectada. Nela, frequentemente,  a alegria de uns constitui a tristeza de outros e o que sobressai na população é a tosse da acusação e da queixa.

Em sociedade o que mais conta é a luta de interesses de grupos numa estratégia de afirmação de uns contra os outros.  O povo é o tapete onde os interesses se jugam e realizam. Cada grupo organizado puxa na corda a que se agarra e o que passa a valer é a corda e o que ela arrasta, por isso a sociedade, como todo, pouco adianta.

Uma mentalidade cultural baseada em vencidos e vencedores legitima o direito do vencedor a desrespeitar o vencido que se encontra sempre na massa anónima, que é povo repartido!

O povo repartido na perspetiva da sua parte acusa a injustiça que vê da outra parte. Daí não poder haver revolta popular contra o sistema político que apenas se reveza na luta da insatisfação repartida e na consequente distribuição da presa à clientela vencedora (Esta parece ser, por enquanto, a lei do progresso!).

É legítima a exigência de que se mudem as regras de jogo na luta social e política, mas ineficiente porque o poder vive do princípio da divisão “Divide se queres imperar” e isto porque o todo é feito de partes (grupos que se afirmam numa dinâmica do contra, de interesses contra interesses e por isso não ganha o todo, mas sim o interesse da parte mais forte).

A alternativa seria diminuir a burrice de maneira à esperteza se ter de transformar em inteligência. Mas também a inteligência pressupõe ver mais longe e como tal passa também ela a viver e usufruir do privilégio do avanço que a caracteriza e que o povo, numa das suas partes, legitima.

A parte que ganha vive do benefício da posição da força de interesses maioritários que a legitimam a explorar o grupo perdedor e ao grupo que perde resta-lhe o apelo à moral e ao barulho da praça. (Cada um parece só ter para dar e receber o que é do outro sem pensar nem prover pelo que é nosso!) Em termos reais o povo é que paga a conta.

Às vezes fica-se com a impressão que o povo (grandeza anónima) funciona para muitos espertos como uma offshore.  Um exemplo perfeito do que acontece a nível de economia temo-lo nas Offshores (Panama Papers: aprender a roubar em cinco minutos) onde o profissionalismo da corrupção e do roubo é institucionalizado pelos bancos, com a bênção da política (onde se lava o dinheiro, se cria anonimidade e os vestígios dos criminosos são safados).

O sistema favorece os espertos e os corruptos, mas esse sistema é fruto de um povo que gera o governo e o possibilita do nível de corrupção ou de transparência que merece (por isso também há grande diferenca entre os povos e os governos das diferentes nações!).

Para a prática da corrupção pressupõe-se a existência de energia criminosa mais ou menos latente em cada pessoa. Em geral, a corrupção de cima é mais evidente e mais execranda que a de baixo, mas a caracterização da diferença depende também do caracter e da possibilidade que o grau do posto proporciona. Também “a oportunidade faz o ladrão”! A diferença qualitativa do corrupto de baixo da do corrupto de cima vem do grau de consciência, da necessidade e das consequências que provoca (um talvez roube para matar a fome e o outro para esbanjar, com a fome dos outros).

Em nome da generalização se condenam as acusações placativas aos políticos e em nome do povo enriquecem os predadores da sociedade. O político corrupto além de corrupto é traidor… além do compromisso de servir o bem-comum e de ser exemplar, ele tem o poder e o dever de mudar as coisas a um nível que a pessoa privada não tem.

 

As regras de jogo são feitas por espertos para os espertos que as usam sendo justificados por um povo plateia que estimula o jogo. Eles têm o proveito e o povo fica com a satisfação de ir vivendo ao sol do debate sobre moral. A esperteza junta-se à burrice na anonimidade! Que seria dos espertos se não fossem os burros!…

Na “matilha„ não importa a dignidade humana o que conta é o osso.

O problema não está na carroça, mas sim nas “bestas”! “Ai dos vencidos”!

 

© António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo,

Fátima: Lugar de Oração e de Meditação

Maria acentua o lado feminino da Devoção

António Justo

Fátima e a reza do Terço proporcionam, a muita gente, um acesso especial a Deus: um acesso que se poderia classificar de via natural ou feminina (Cf.: Curar é Santificar: https://antonio-justo.eu/?p=1350  ; Meditação e Respiração: https://antonio-justo.eu/?p=1354; Fátima Lugar do Encontro: https://antonio-justo.eu/?p=4244 ); Fátima: Técnica contra a experiência sensitiva?: https://antonio-justo.eu/?p=1330).

 

Na devoção a Maria e na reza do Terço mistura-se o céu e a terra, junta-se o Pai-nosso à Ave-maria e em Fátima verificam-se também ligações subcutâneas anteriores ao cristianismo. Na devoção mariana, expressa em visões e aparições, encontra-se o homem todo: a fé unida à superstição.

 

Em Maria, a feminidade, assume um caracter divino que incardina nele também a parte humana da Redenção; é uma espiritualidade própria, uma via para chegar a Jesus.

 

Em Fátima, observam-se cenas não edificantes, como joelhos sangrentos a rastejar, o que provoca compaixão, arrepios e até crítica por parte de círculos mais esclarecidos ou elitistas.  O agradecimento, de um pedido-promessa a Maria em Fátima, torna-se, muitas vezes, numa abstracção onde a transcendência diminui a dependência de uma situação existencial e social carente. A situacao é espiritualmente sublimada numa visão transcendente que não humilha nem julga a condição de necessitado; por outro lado a condição do pedinte é dignificada pela nobreza do interlocutor espiritual (Maria).

 

Isto não pode, porém, legitimar, socialmente, uma devoção em que transmite a impressão de que Deus parece ser tornado num comerciante que proporciona uma troca de mercadorias e interesses: dou para que tu dês. Esta seria uma visão tão pobre como a daqueles que se julgam superiores desprezando e condenando os peregrinos, sem compreenderem a sua ipseidade nem lhes darem chance para se explicarem. O facit da crítica não passa muitas vezes de autoafirmação e definição à custa dos outros.

 

Deus é amor transbordante e por isso não precisa de entrar no negócio; quem precisa, porém, ao encontrar-se numa situação sem saída e de emergência, recorre aos meios que lhe são próprios e que tem, como meio para se ajudar a si mesmo a chegar ao lugar do amor, onde, fora do julgamento, das contas e da física, experimentará o reconhecimento e a admiração, numa contemplação de amor em hosmose do “eu estou aqui e Tu estás aí”!

 

Na Terra não há nada puro, não há corpo sem alma nem alma sem corpo, por isso a tolerância também será aqui chamada, seja ela de índole mais masculina ou feminina; como na natureza há coisas, pessoas, costumes e culturas mais ou menos puras.

 

Fátima faz parte de um povo e de uma cultura com diferentes nuances e de uma devoção com muita expressão simbólica; há que reconhecer que não se pode ter simultaneamente, no mesmo organismo social ou numa pessoa, ao mesmo tempo, os diferentes estádios (infância, adolescência, juventude e adulto). Independentemente da fase em que se encontre a pessoa, o mais importante a descobrir nela é a sua procura e o desejo de transcendência, independentemente da sua expressão. “Não julgues e não serás julgado”. Em Fátima expressam-se atitudes nossas, do nosso povo que oferecem à Igreja uma oportunidade privilegiada para evangelizar.

 

Muitas vezes fiquei surpreendido ao encontrar na fé simples de minha mãe e na sua reza diária do terço, uma fonte de sabedoria e critério (clarividência, simplicidade e tolerância) que, por vezes, não se encontra em pessoas doutoradas. Com a reza do terço em conjunto acabavam-se as animosidades do dia.

 

Um certo elitismo masculino, intelectualista e iconoclasta revela-se, muitas vezes como antimariano e como tal desconhecedor de uma via importante de acesso à realidade.

 

Em Maria o céu e a terra uniram-se de forma que só o mistério se revela como chave da vida. O sim de Maria é um sim à terra e ao céu, um sim à esperança como germe de vida (masculinidade e feminilidade); em Maria realiza-se de forma prototípica o compromisso e a capacidade livre de dizer sim a Deus e à existência no rio da vida. Maria tornou-se no domicílio da divindade; com ela e nela a mulher continua a concretizar a esperança da humanidade.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo,

FÁTIMA LUGAR DO ENCONTRO – MEDITAÇÃO MARIANA

Ciência confirma Efeitos curativos através da Oração e da Meditação

 

António Justo

As áreas científicas da medicina, da teologia, da sociologia e da psicologia cada vez se complementam e interferem mais umas nas outras.

 

A ciência através de investigações feitas na universidade de Pádua, pelo cientista Luciano Bernardi, descobriu, experimentalmente, que a forma meditativa e rítmica na reza do Terço alternada sintoniza os ritmos biológicos do corpo, cria harmonia e estabiliza a saúde da pessoa a nível corporal e espiritual. A oração abre rotas e perspectivas importantes para o corpo e para a alma.

 

Tanto a recitação da Ave-Maria como de jaculatórias meditativas e ladainhas provocam o retardamento da frequência respiratória, o que fortalece o coração e os pulmões. Os fôlegos (inspiração – expiração) do adulto têm uma frequência de 12 a 20 por minuto.

 

Verificou-se que durante a reza alternada da Ave-maria – Santa Maria, a frequência respiratória chega a baixar a seis fôlegos por minuto. A baixa frequência respiratória conduz-nos à sintonia orgânica do corpo através da influência da frequência cardíaca da regulação da tensão arterial e da ressonância harmónica com o universo a um nível já espiritual.

 

É notório que em diferentes culturas as palavras, espírito, respiração, atmosfera, ambiente, se encontram etimologicamente interrelacionadas.

 

O medo, a ansiedade, a depressão, o stress, a excitação, aceleram o ritmo da respiração e com ela perturba-se o ritmo cardíaco e a tensão arterial. A interferência na actividade respiratória provoca a regulação do metabolismo da ligação do oxigénio e dióxido carbónico no sangue, mudando-se assim, com ela, a química do sangue. A técnica da respiração, usada também na reza do terço, une a parte superior do coração – razão com o abdómen – criando assim uma frequência de vibração orgânica facilitadora da sintonia e interacção matéria-espírito.

 

Oração e Meditação na Reza do Terço – Técnica

 

No exercício da oração/meditação, o medo e o sentimento de impotência dão lugar a uma mudança que pode proporcionar um sentimento de satisfação e de realização.

 

A Reza do Terço em grupo e em privado desvia-nos do ritmo do dia-a-dia e introduz a pessoa numa frequência ritmada que possibilita, através da respiração abdominal e da concentração, a um estado de paz e o acesso à vida interior e ao equilíbrio psicossomático. Para o efeito entram em sintonia: coração, cérebro, pulmões, alma e espírito. Através da respiração consciente, no abdómen, no peito, nos ombros sentem a tensão e distensão do inspirar e expirar unido ao coração e ao sentimento espontâneo. Aqui se interfere a acção do corpo e do espírito em colaboração e interferência mútua. Assim se contribui para o equilíbrio da vida. Se alguma parte do nosso corpo está dolorosa podemos, através do pensamento dirigir para lá a respiração, o espírito divino, para que também esta parte seja, de forma dirigida, incluída no jorro da vida, no amor.

 

O saber religioso, de que a respiração unida à palavra, conduz à unidade no sentido original da religião: re-ligar, que é um património de toda a humanidade. A consequente paz interior é um efeito acessório.

 

A reza do terço, no sentido católico, não se deixa reduzir a um método de higiene corporal nem mental. As diferentes técnicas das diversas culturas, porém, sem o espírito de entrega, e sem a diferenciação dos espíritos, poderiam ficar apenas por uma experiência sentimentalista equívoca (1 Cor 19).

 

Curioso é o facto da recitação do terço, na igreja católica, ser conduzida, por dois grupos, de maneira alternada, correspondentes à inspiração e à expiração. Enquanto o padre, o dirigente ou um grupo recita, dum folgo, “Ave-maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, o grupo responde “Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Ámen. “

 

Também, na reza individual, a primeira parte corresponde à expiração e a segunda à inspiração. A reza sintoniza as forças através da respiração ritmada que une o exterior ao interior e fomenta o ritmo cardíaco natural e a concentração da inteligência, resultando daí o bem-estar que predispõe a pessoa para a recepção de mensagens religiosas, para a percepção intuitiva, e pode preparar para uma eventual entrada em contemplação. Sentir o fervilhar do sentimento e da intuição no toque com o mistério não é ainda contemplação.

 

Na devoção popular, além da recitação do Terço são métodos comuns de acesso à contemplação o uso da repetição de palavras, frases em voz alta, em voz baixa ou simplesmente em pensamento. Cada pessoa, segundo o seu estado e mentalidade, encontra inconscientemente a palavra, jaculatória que melhor lhe corresponde.

 

Na pastoral juvenil usa-se também o canto no passeio, a observação do pôr / nascer do sol, da natureza, juntando-lhe o elevar das mãos como formas de acesso ao mistério. Em oração inspiro o sol da vida e expiro o descanso da noite. Então o mundo respira em mim e eu respiro o mundo.

 

Nesta atmosfera fomenta-se o acontecer da harmonia da “mens sana in corpore sano.” No cristianismo há diferentes espiritualidades, geralmente ligadas a tradições monásticas ou a congregações religiosas, praticando-se aí as mais diversas formas de meditação, geralmente também aferidas ao meditador / orador.

 

Nos ortodoxos está muito generalizada a prática da concentração no coração e de, na inspiração, dizerem “senhor Jesus Cristo” e na expiração “tem compaixão de nós”. No cristianismo, em geral, além de jaculatórias mais ou menos individualizadas é frequente o uso da palavra “Jesus” na inspiração e da palavra “Cristo” na expiração. Cada circunstancia pode solicitar uma palavra comum característica, tal como podemos verificar a alegria da época pascal na expressão: “Oh, Aleluia”

 

Na escolha das palavras predilectas, geralmente usa-se a palavra ou parte da expressão mais curta na inspiração e a mais longa na expiração. Outras formas de meditação praticadas nos conventos são: a meditação através do andar, dos gestos, do canto monótono (gregoriano, etc.), do silêncio, esvaziamento de pensamentos, de ladainhas e de outras palavras surgidas do coração ou da tradição religiosa, ligadas à respiração.

Uma forma concreta e eficiente de iniciar a oração ou meditação pode ser: concentração na respiração abdominal, para, na percepção do corpo, se passar depois à palavra. Posso começar pela jaculatória, ou mantra “Oh tu (ao inspirar), Maria (ao expirar)” para assim entrar na sintonia psicossomática e espiritual. Aqui se unem corpo e espírito a caminho do meu centro. Passo a ensimesmar-me de modo a sentir o jorro da energia universal, o amor, em mim e assim tornar-me parte vibrante de um todo em relação mútua (comunidade corpo místico de cristo, etc.).

 

Uma outra jaculatória pode ser “Respira em mim, tu Espírito Santo”. Com o tempo podemos nós passar a respirar nele. Uma pessoa não religiosa poderá usar, entre outras, a fórmula “Respira em mim, tu elan vital”. A repetição individual, como a reza alternada em grupo, com o correspondente eco monótono criam o ambiente propício à dissolução das ideias e emoções do dia a dia.

 

A ligação da palavra à respiração abdominal e, ocasionalmente, à cantilena daí resultante amplificam a possibilidade de viver o momento presente. Aí deixo de ser estrangeiro para fazer parte do Ser integral, presencializado na relação com um Tu. O mesmo se diga da oração privada.

 

A Deus, à ipseidade pode chegar-se também através do vibrar do som (produzido, por exemplo na reza do Terço, no canto gregoriano ou outro apropriado). O ritmo da palavra e da respiração libertam-nos do pensamento, possibilitando-nos o acesso a outras esferas da realidade, mesmo à contemplação.

 

Naturalmente que estes métodos não podem ser fins em si mesmos, doutra maneira não passariam de uma forma sofisticada de atingir experiências semelhantes às da droga. Trata-se de encontrar a alteridade em relação com a ipseidade, a divindade em nós e entrar assim na ressonância divina. O Mestre Eckehart testemunhava esse processo com as seguintes palavras: “Deus está em nós, mas nós estamos fora de nós. Deus está em casa em nós, mas nós estamos no estrangeiro.” A oração ou meditação poderão constituir um momento gratificante no processo criação, incarnação e ressurreição em que estamos envolvidos. A realidade trinitária torna-se em princípio e fim de toda a oração que com o tempo se pode transformar numa unidade do “ora et labora”..

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

 

“Pegadas do Tempo”,

A FAMÍLIA GERADORA DE RELAÇÕES HUMANAS NA MISERICÓRDIA

Reflexão sobre a Família baseada em “A Alegria do Amor”

António Justo

A família é o lugar onde nos desenvolvemos como pessoas e cada família é a pedra base que constrói a sociedade”.

Na exortação apostólica “A Alegria do Amor” o Papa Francisco apela ao reforço da família, como “lugar da misericórdia” onde o plano de Deus se realiza. Não deixou de valorizar também a “dimensão erótica” do amor conjugal, como bom acompanhante: um “dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos”. Como no Oceano, tudo o que é exterior muda e transforma-se com o tempo; as necessidades e as expressões afectivas também.

Não há caminhos feitos, há metas. A este propósito recordo uma história que ouvi de um colega padre no Domingo a seguir à Páscoa: uma comunidade de cristãos brasileiros questionava-se da razão de Jesus ter escolhido um pescador para chefe da Igreja. Depois de algo reflectirem, a resposta foi unânime: quem se movimenta em terra constrói estradas e asfalta-as. Consequentemente usará sempre o mesmo caminho. Pelo contrário, um pescador procura todos os dias um novo caminho. O importante é descobrir os peixes e dirigir-se para onde eles estão. Pode acontecer que o caminho de ontem não conduza onde os peixes de hoje se encontram.

A experiência dos pescadores da Galileia foi-se repetindo ao longo da História da Igreja, num caminho de sucesso e de falhas, que é também o caminho de cada um de nós. Jesus aparece aos discípulos em diferentes lugares; aparece lá onde estava o medo.  A mensagem pascal é reconfortante: Vive a vida em plenitude onde te encontras porque aí Deus está presente e procura-te sem te condenar; o pressuposto é a disponibilidade de te encontrares a ti mesmo no seguimento de uma presença envolvente.

Clima familiar

Família é mais que a soma de dois indivíduos que se possibilitam um ao outro. Família é o princípio de toda a união, é um laboratório de futuro. Sem família não há indivíduo e dos destroços de uma cultura o que permanecerá é a família. Na família nascem os sentimentos e a intimidade onde se inicia a primeira comunidade de pais-filhos- irmãos. Do amor entre os membros nasce a alegria de viver.  Uma estruturação equilibrada da pessoa e da família precisa de programas e ritos que dêem protecção e consistência ao indivíduo numa espiritualidade familiar (Cf. https://antonio-justo.eu/?p=4138).

Francisco encoraja a “cuidar a alegria do amor” na consideração pelo outro e na expressão do carinho e da ternura. Nesse sentido aconselha a usar na família muitas vezes e todos os dias as palavras “por favor”, “obrigado” e “com licença”. O beijo matinal mantem o amor fresco. Recomenda aos pais que, num clima de liberdade deem regras claras às crianças e cuidem pelo pouco consumo de telemóvel porque é uma tecnologia que conduz ao autismo.

A constante do amor de Deus no matrimónio faz crescer a afeição e o carinho entre o homem e mulher premeia-os com confiança, amor e paz interior misericórdia e ajuda o desenvolvimento pessoal; possibilita o encarar a vida e as pessoas com benevolência sem ter em foco as exigências da justiça numa atitude compassiva, também para com os mais necessitados.  “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia “(Mateus 5:7).

A Parábola do Filho Pródigo (Lucas 15:11-32), é um exemplo importante da extensão da misericórdia divina aos outros. O filho depois de ter malgastado tudo o que o pai lhe dera foi acolhido sem qualquer pedido de satisfação.

Deus é misericordioso, não olha para as nossa culpas, trata-nos com a graça e a bondade de um favor imerecido: Deus não faz contas, não julga, premeia (João 10,10). O bem que fizermos, por nós o fazemos; fazemo-lo no sentido de nos tornarmos entidades desenvolvidas e de consciência espiritual distinta. Em nós flui o mundo todo. “A maturidade chega a uma família quando a vida emotiva dos seus membros se transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e valores, mas segue a sua liberdade, brota dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos”.

Misericórdia é mais que justiça

Misericórdia é, para o Doutor da Igreja Tomás de Aquino, a maior das virtudes. E o Papa Francisco faz dela programa de vida, ao enfatizar, com S. Tomás, a primazia da caridade na acção da Igreja e no agir de cada um. A “misericórdia” do estado social é insuficiente.

Para a igreja os pobres e os fracos “formam, em primeiro lugar, uma categoria teológica e só depois uma categoria sociológica ou política” (cf.: “Alegria do Evangelho”); para além da justiça está a misericórdia– a rede social da misericórdia, expressa também na Caritas, procura dar resposta à justiça social na sequência da tolerância. “A vida não é tempo que passa mas tempo de encontro” e a ”Solidariedade é uma reacção voluntária que nasce no coração de cada indivíduo” .

“Faz aos outros como queres que te façam a ti”, reza uma digna regra moral antiga. O ideal do amor ao próximo (independentemente de raça ou religião) tem uma dimensão emocional e espiritual ao contrário do imperativo categórico de Kant que corresponde à “moral sem amor”, como constata o cardeal Walter Kasper. A justiça embora seja o fundamento da vida social é seca. A racionalidade procura o que vale mais; tudo é vista na perspectiva e na lógica do negócio. De facto, em ciência e política, o altruísmo é considerado como lógica de negócio em que o doador recebe algo em compensação. A Igreja completa-o acrescentando à inteligência racional a inteligência afectiva com o sentimento e a espiritualidade. A misericórdia supera a justiça, porque tem em conta a pessoa.  É um modo de vida compassiva que integra a ternura e a benevolência predispondo a pessoa para as necessidades do próximo. A pessoa compassiva é realizada, por isso, renuncia à afirmação do ego à custa dos outros, respeitando os que não têm tanta força para se impor. Neste sentido precisa-se de uma nova educação, uma educação humana no sentido das bem-aventuranças e das obras de misericórdia, onde, de forma reduzida se se apresenta um programa especificado de vida (1). “A violência na família é escola de ressentimento e ódio nas relações humanas básicas”

Cristianização das mentalidades

Na base de uma vida familiar conseguida estão “o crescimento no amor mútuo”, o respeito, a tolerância e o perdão que garantem autoconfiança, estabilidade e humanidade.

O ideal católico do amor concretiza-se, como “projeto comum estável„ no sacramento do matrimónio, um estado sagrado, no exercício dos valores generosidade, compromisso, lealdade e paciência; onde surgem dificuldades maiores há resta o recurso ao exercício da misericórdia. Aponta para o ideal da “doação generosa e sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma” (no sentido evangélico, seguir o chamamento divino sem ceder a fraquezas humanas que se considerem como critério de orientação nem ao facilitismo).

Por experiência penso que, na vida de casais, o mais difícil virá da dificuldade de estabelecer compromissos no aferimento de ideais, intenções e metas comuns, na relação do dia-a-dia; como família, um e outro agirá na qualidade de comunidade e não de indivíduo, o que supõe uma vida comum regrada e orientada por Deus e não apenas por objectivos imediatos nem sequer pelas tendências ou capacidades de um ou do outro; a perspectiva do nós prevalece sobre a do eu. Há casos de casais com mentalidades extremamente diferentes e a maioria deles não terá o ideal nem a paciência que tinha Sta. Mónica em relação ao seu filho Agostinho.

O amor a Deus é colocado acima das próprias necessidades e como tal serve de ponto de reencontro e de ponte que possibilita a realização do presente numa perspectiva de futuro gratificante. O matrimónio é processo em que os dois se desenvolvem na entrega mútua. Um desenvolvimento individual desafinado conduz a becos sem saída.

A vida familiar é dificultada por uma cultura do “individualismo desenfreado… e do Provisório ” acrescida da comodidade e de uma atitude de suspeita e desconfiança. A dificuldade de um equilíbrio entre vida familiar privada e vida laboral contribui para fomentar uma dinâmica de ressentimento e agressão.

Segundo o Papa, na vida familiar, a misericórdia é de colocar acima da moral tradicional. “O Sábado é para a pessoa e não a pessoa para o Sábado” (Mc, 2,27).

Uma atitude misericordiosa pressupõe a mudança de postura perante as comunidades de vida, perante as mães solteiras, os nascituros indefesos, os drogados, os homossexuais, os divorciados e todos os que vivem à margem da sociedade. A misericórdia divina é exemplo para a Igreja petrina; por isso, esta não poderá perder-se tanto no sector moral nem na acentuação pedagógica reguladora da vida dos fiéis; as falhas de cada pessoa já serão sancionadas nela mesma e exteriormente através da sociedade envolvente (leis, costumes e preconceitos).

O ideal proposto e vivido pela igreja tem de passar pela via de Deus que é o perdão (a nível institucional: anuição dos recasados à comunhão; a nível familiar: reconciliação e perdão, ritualizados na oração diária do fim do dia!).

A questão ética da relação ou validade de valores e normas é algo a ter-se presente. A exortação pastotral do papa dá primazia à misericórdia e aponta pistas na “A Alegria do Amor” não neutralizando a responsabilidade individual no respeito pela consciência pessoal como última instância perante Deus e perante si mesmo. Naturalmente, o outro lado da misericórdia, para a condição humana, é a justiça. A necessidade de misericórdia para com os fracos não pode passar por cima da sua responsabilidade nas relações vividas.

No dia-a-dia há pessoas que sentimos como não simpáticas e que são desgastantes e desagradáveis; nestes casos uma atitude autoconsciente e de benevolência misericordiosa ajuda a diminuir o estresse que a situação pode proporcionar.  A misericórdia presume que se dê e se renuncie a algo de si que se encontra na alteridade. Deus é misericordioso, não condena, perdoa e proporciona sempre uma oportunidade. O perdão não é uma estrada num só sentido (2), pressupõe a metanoia e reparação. Mas segundo o pensamento cristão não é um irmão que julga um irmão, há um terceiro que julga: a presença divina.

Misericórdia é dar de olhos nos olhos, é doação e entrega. Também implica ser misericordioso consigo mesmo na aceitação de se ser como se é e reconhecer as próprias limitações como algo natural e a aceitar para então se puder ultrapassar. Ao aceitarmo-nos com as nossas limitações estamos dispostos a aceitar os outros e a fazer uma caminhada com eles. Isto supõe a reconciliação consigo mesmo, com os outros e com a vida (3).  De facto, todos somos tecelões de um grande tecido e do qual fazemos parte: o mundo e a humanidade onde todos queremos mudar algo no sentido do futuro que é esperança.

Perdão é  possibilitador de futuro

O futuro só é possível onde houver perdão – muitas das faltas contra o próximo são acções de défices da própria autoimagem que procura confirmação em alguém.

Alegria e caridade pressupõem o dom da empatia que, por vezes, escapa à força de vontade e à praticabilidade. A justiça pode-se exigir, mas o amor não! Nele não se trata de exigir demais, mas de dar um passo mais largo do que a dor possibilita; o futuro é amor.

Por vezes, pessoas escrupulosas ou hipercríticas querem ver formas autoritárias na Igreja, querem ver tudo regulado por leis, partindo de uma ideia preconcebida, do como cada pessoa deveria ser.

É preciso recuperar a união da família, dela dependem os valores humanos. A família é um valor a defender por todos os grupos, independentemente de diferentes éticas. Ela é a matriz de qualquer ordem social com perspectiva de futuro.

Conclusão

“Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las”! Este apelo do Pontífice não significa uma cedência ao relativismo nem uma redução da acção da igreja a mero humanismo e filantropia. Na base está sempre a Boa-nova, a consciência e o seguimento da trdição espiritual apesar da mudança dos costumes e das vontades.

Na exortação “A Alegria do Amor” não se trata de uma flexibilização da doutrina católica no sentido de uma protestantização nem de uma ortodoxização da igreja católica, como pretendem ver grupos conservadores; muito menos uma cedência ao modernismo.

Na Exortação pontifícia não se trata de encontrar desculpas para aliviar erros sociais ou seguir tendências modernistas, o que só beneficiaria os traficantes de ideias e ideologias; em questão está o respeito pela consciência da pessoa concreta, o chamamento do Evangelho, a Igreja mãe e a família com seu primeiro lugar de exercício social.  Sem trair a tradição da Igreja ela possibilita uma certa ambiguidade de interpretação nalgumas passagens, o que por outro lado favorece melhor emprego numa prática de situações diversificadas.

O Pontífice critica “o fascínio do gnosticismo fechado no subjetivismo e o neopelagianismo autorreferencial e prometeuco com um elitismo narcisista e autoritário”.

O papa reconhece que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magistrais… em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais”. Para os divorciados com desejo de se recasarem permanece a doutrina da penitência com as mesmas condições de acesso aos sacramentos e que são: a confissão, o arrependimento sincero e o estado da graça.

Para a Igreja e para o cristão, o sentido de orientação é Deus, o oriente onde nasce o sol da iluminação.

“Queridas famílias, também vós sois uma parte do povo de Deus. Segui o vosso caminho em paz. Permanecei sempre unidos a Jesus e levai-O com o vosso testemunho a todos”, exorta o Pontífice.

Este papa é uma bênção para o mundo. Resta-nos abençoá-lo também.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

  • As sete obras de misericórdia corporais (Cf. Mateus 25:34-40): 1ª Dar de comer a quem tem fome; 2ª Dar de beber a quem tem sede; 3ª Vestir os nus; 4ª Acolher os peregrinos; 5ª Dar assistência aos doentes; 6ª Visitar os presos; 7ª Enterrar os mortos. As sete obras de misericórdia espirituais: 1ª Dar bom conselho; 2ª Ensinar os ignorantes; 3ª Corrigir os que erram;4ª Consolar os aflitos; 5ª Perdoar as ofensas; 6ª Suportar com paciência as fraquezas do nosso próximo; 7ª Rezar a Deus pelos vivos e defuntos. Os Sete Pecados Capitais contra as obras de misericórdia: 1° A Gula (é intemperança, desejo insaciável), 2° A Avareza (apego excessivo pelos bens materiais), 3° A Luxúria (a fixação no prazer sensual e material), 4°A Ira (sentimento descontrolado de raiva, ódio e rancor), 5° A Inveja (o ciúme, não vê o que tem para cobiçar as posses, status e habilidades do próximo), 6° A Preguiça (negligência, desleixo evita o trabalho), 7° A Soberba (Orgulho arrogante, Vanglória, Vaidade).
  • O Papa pede para se demitirem do sacerdócio os abusadores sexuais. A tolerância para com os criminosos não se deve tornar em injustiça para com as vítimas. Abuso além de pecado pessoal, é crime, por isso os superiores têm de o comunicar ao Ministério Público. Antigamente não se tinha ideia dos prejuízos psicológicos que causam tais delitos.
  • Em termos de recasados: Isto significa o perdão do adultério por Deus misericordioso é oposto pela negação da comunhão. Contradição fidelidade a Deus e infidelidade do divórcio. Deus quer a fidelidade e certamente não há nenhuma pessoa que possa perdoar de maneira global. Por isso há uma maneira nobre como a Igreja resolve a questão através do sacramento da penitência não reduzindo a questão a um caso perdido ou individual. A reconciliação consigo mesmo e com a comunidade dá-se no ponto de encontro onde se encontram o indivíduo com a comunidade para se realizarem como comunidade.