Problemas de Legitimação da Democracia
António Justo
Todo o fanatismo esconde o seu rosto por detrás do véu duma crença. Mas toda a nação precisa do espírito tal como a vela, para o ser, precisa da luz. Um povo sem perspectiva metafísica definha e morre, tal como acontece com a planta sem sol.
A derrocada dos sistemas ideológicos e a ferocidade dum liberalismo, que nada respeita, criam na sociedade uma forma de vida desesperada. Para complicar a situação, Estados sem uma filosofia humana coesa que os sustente, deixam-se levar por um pragmatismo relativista na base duma sociedade mercantil desenraizada. A preocupação do Estado reduz-se na cobrança dos impostos e em fazer cumprir leis. O Estado liberal não conhece a comunidade, a pessoa, Deus; para ele tudo é relativo e o único absoluto, o único abstracto é o dinheiro. Daqui provém a gravidade da crise.
O espírito pessoal e a consciência de povo não aguentam ser reduzidos, a longo prazo, à soma das necessidades fundamentais materiais. Toda a ideologia sem metafísica se desqualifica como forma de vida satisfatória. A prova constata-se no surto do religioso que se observa na Rússia, na China e nos países mais desenvolvidos. Vive-se na contradição de exigência e realidade. Por todo o lado se observa uma fuga generalizada em metafísicas do mais variado género. O povo não admite que se lhe roube o seu único trunfo de subsistência, aquilo que nenhum Estado lhe deve roubar. O mundo islâmico constata que o avanço do Ocidente, sem um tecto metafísico que o una, conduz à decadência. Em contraposição aquele afirma-se apostando na lei natural, na metafísica e na procriação. Um fenómeno semelhante ao dos primeiros séculos do cristianismo no império romano. A sua fé revela-se mais forte do que o poder do nosso dinheiro, da nossa economia e tecnologia; têm porém um grande contra que é a sua falta de disciplina e a incapacidade de dar felicidade às pessoas já na terra.
O fundamentalismo é a consequência lógica da nossa sociedade, é um sintoma duma doença profunda da alma humana e da sociedade que a integra. Na Idade Média a religião informava toda a realidade social; então Deus ocupava todo o espaço humano. Hoje no mundo ocidental, a ideologia relativista/pragmatista passou a ocupar todo o espaço humano. Isto provoca reacções exacerbadas.
O fundamentalismo árabe dá-se conta disto declarando-se anti-modernista e reage contra um racionalismo, um pragmatismo e liberalismo que não deixa lugar para a pessoa humana, para o espírito. Está consciente da ideologia ocidental como caótica reconhecendo-a como extremamente perigosa para estruturas de poder estabelecidas. Por isso vê no secularismo ocidental o Diabo em pessoa.
É o medo de ser invadido por uma ideologia secularista sem lugar para a emoção profunda e para a religiosidade. De facto assiste-se a um absolutismo ideológico dum lado e a um absolutismo religioso do outro. As respostas duns são incompatíveis com as práticas dos outros. O mundo ocidental intelectual, numa fase já post-ideológica, reage com compreensão para este fenómeno, que com o tempo encontrará maior correspondência no seu meio, se não diagnosticarmos a tempo a nossa doença e não iniciarmos já uma terapia integral. Cada vez se reconhece mais que a realidade factual impossibilita um crer integrado para melhor se afirmar através da superstição, do preconceito. A política não é capaz de integrar os deserdados da terra nem as aspirações transcendentais destes. O capitalismo permanece porque consegue ajustar as necessidades do homem em contínua adaptação cultural. A imagem de Deus, como a imagem do homem é diferente de cultura para cultura e de época para época. Este facto leva muitos democratas a tirarem uma conclusão errada: fomentação duma democracia politeísta.
Se as pessoas, política e religiosamente, se tornassem mais espirituais e menos supersticiosas o fundamentalismo diminuiria. Se a espiritualidade aumentasse os problemas abrandariam e os políticos e chefes tornar-se-iam verdadeiros servidores (ministros) do povo. A pessoa espiritual é criativa reconhecendo o espírito que une todas as coisas. Para isso é necessária uma metanóia na nossa mentalidade a nível individual, político e eclesiástico. Não chega qualquer espiritualidade, é preciso um tecto metafísico que tudo cubra sem asfixiar ninguém. (Continua no próximo artigo com o título: “O problema da democracia é o problema de Deus”)
António da Cunha Duarte Justo
Mestre em Teologia