O Problema da Democracia é o Problema de Deus

Secularização e Religião, duas Faces da mesma Moeda

António Justo

O sistema democrático bem como a sociedade liberal não crê, quer apenas administrar as crenças. Falta-lhe um tecto metafísico.

Tal como o capitalismo dos países nórdicos precisou dum protestantismo que lhe desse conexão e projecção, assim a nova sociedade democrática precisará dum cristianismo místico, capaz de dar resposta às novas exigências no respeito dos diferentes biótopos, de que se torne o tecto. Um povo sem transcendência perde a sua consistência e a perspectiva do futuro. Enquanto a democracia não recriar Deus verá aumentar os seus problemas sociais e humanos. Não chega um sistema económico ou cultural para lhe dar estabilidade e perspectiva. Também não chega fundamentar a ética no pragmatismo oportuno do dia a dia. Para darmos perspectiva à sociedade e seus sistemas terá de se operar uma colaboração interdisciplinar, infraestrutural a nível de toda a sociedade à semelhança do que acontece no reino vegetal e biológica, numa solidariedade orgânica. O leme do futuro para todos os sectores da realidade e da sociedade será: cooperação em vez de confrontação, num processo de transformação aberta mas coerente.

A crise metafísica da sociedade ocidental é semelhante à crise dos deuses da sociedade romana, que com Constantino, num acto de inteligência previdente, conseguiu adiar dando a liberdade ao cristianismo, condicionando-o embora. Naturalmente que o problema estará em saber que Deus poderá dar resposta satisfatória às necessidades individuais, sociais e globais dos problemas humanos e da sociedade. O problema do politeísmo democrático poderá ser solucionado, no mundo ocidental de carácter global, com a redescoberta do monoteísmo trinitário. Aqui terão que se empenhar teólogos e outros intelectuais para revitalizarem o carácter místico do cristianismo (anterior à reforma constantiniana). O cristianismo, na devida altura, deu forma a uma sociedade europeia em expansão baseando-se numa teologia petrina (dialéctica) e numa estratégia paulina de comunicação. Agora, que o Ocidente deixa o seu carácter expansivo para entrar na fase da consolidação e globalização, a sociedade já se encontra mais madura para poder compreender a necessidade de implementação da teologia joanina (mística) numa pragmática da realidade trinitária. Uma visão perspectiva (dualista) da realidade terá que ir dando lugar a uma visão e a uma estratégia aperspectiva (integral) de acesso e interpretação da existência.

Só na distância se reconhece o horizonte do lirismo e da metafísica, o significado da vida individual e colectiva. A sombra da omnipotência dá à realidade o brilho do seu significado. Para uma vida social significativa e com sentido não chega a luz da razão; também o coração conhece razões que a razão não conhece, recordava-nos Pascal. O espírito é silencioso, não dá nas vistas, mas é a essência da vida. Já se ouviu alguma árvore a crescer? A configuração da banalidade factual limita-se demasiado ao ouvir e ao ver! Se quisermos salvar a democracia temos de descobrir uma nova metafísica, ou melhor, temos de a desenterrar das catacumbas da religião. A política e a religião (cultura), para dar resposta aos grandes problemas do futuro terão de se preocupar com o problema metafísico a nível de Estados, de povos e de pessoas…Não chega a expansão oportunista dum capitalismo globalizado com os governos como acólitos. A física mecanicista e a filosofia materialista já foram ultrapassadas, teoricamente, nos fins do século XIX e princípios do séc. XX. Urge aferir o ideário.

A democracia para evitar o problema da “verdade absoluta” e o Deus concorrente, espalha o relativismo moral e o pragmatismo como doutrina oficial reduzindo para isso o papel da filosofia ao cepticismo. Na sua prática é politeísta. O politeísmo porém não consegue ser global nem dar consistência a um sistema orgânico global. A ausência de parâmetros e de fundamento estável questiona, assim, a legitimação de todos os sistemas, também do democrático. A vida dum povo e duma pessoa não pode ser reduzida a uma filosofia que se fundada apenas no banal factual ou em necessidades imediatas. Tal como o universo tem um fio condutor teleológico, também ao desenvolvimento dos povos e da pessoa está inerente uma força teleológica. Tudo se subordina à lei da ressonância e da harmonia.

O contrário conduz à cedência ao pragmatismo que implica uma entropia da sociedade que leva o Estado a colaborar com estruturas meramente dualistas de domínio não integradas no conjunto. A afirmação da dissonância em vigor faz lembrar as pragas do Egipto. Os grandes expropriam os pequenos não só das suas riquezas materiais como até dos bens espirituais. A radicalidade de uns condiciona a dos outros e o que é pior ainda parece dar razão àqueles que dividem o mundo entre os dominadores da cultura e os dominadores da economia. Parece que poder religioso e poder económico se necessitam como concorrentes num equilíbrio de forças. Enquanto as religiões se não preocuparem seriamente com a espiritualização dos fiéis, a luta duns pelo domínio dos bens espirituais e dos outros pelos bens materiais continuará nos moldes conhecidos polarizando e produzindo uma maioria vítima inconsciente. Os vencedores encontram-se do lado do poder, o resto continua massa.

O equilíbrio na conexão da realidade da vida social e individual, material e espiritual parece estar numa relação de necessidade tal como a relação dos corpos celestes que se encontram numa correspondência de equilíbrio de massa e forças. A nível superficial, se não fosse a interligação da massa e as forças centrífugas e centrípetas que mantêm os corpos, estes desconjugar-se-iam. A sociedade moderna e post-moderna não se preocuparam com o factor teleológico. Vergou-se ao predomínio social e político de elites irreflectidas que possibilitando embora um desenvolvimento epidérmico abdicaram do seu papel condutor para cederem à mediocridade instalada nas instituições sociais e do Estado. Os intelectuais, a universidade, a escola, a igreja, os políticos, os jornalistas e a economia abdicam do seu papel num Estado cada vez mais anónimo e repressivo que fomenta a destruição da classe média e deste modo a consciência cívica.

Um materialismo e um espiritualismo excessivos criam problemas em vez de soluções. São modelos dualistas que se excluem mutuamente. Também no universo religioso se encontram respostas mais ou menos problemáticas porque imbuídas do espírito dualista que reduz tudo à exclusividade. Se o Islão apresenta uma resposta cultural fechada, o cristianismo, que já satisfez a sua missão dos dois primeiros milénios, terá de se esforçar por encontrar uma resposta civilizacional universal aberta para este e para os restantes milénios. Se o islao implica a construção duma identidade fechada o cristianismo implica, na sua essência, uma identidade aberta. Para isso será necessária uma nova reflexão do religioso, aberta à mística em que secularistas e as várias religiões colaborem no encontro de respostas integrais. O Ocidente terá que redescobrir o cristianismo e purificá-lo de cargas culturais históricas para que a nova sociedade se torne compatível, à luz da fórmula trinitária, possibilitadora da interferência dialogal de materialismo e espiritualismo, tal como se realizou em Jesus Cristo. A alma do Ocidente, quer queiramos quer não é o Cristianismo. Esta alma purificada do domínio e da lei é a alma do mundo! A sociedade aberta será a consequência da verdadeira sociedade cristã, chamada a implantar e construir a relação nobre e nobilitante. Na fórmula trinitária não há discriminação nem a afirmação pela negação. Domina a relação da ressonância e da harmonia. A matéria Jesus não se rebela contra o espírito Cristo.

Toda a sociedade, toda a nação que reduza o religioso a um mero assunto privado desconhece a realidade e a complexidade da pessoa humana, não podendo estar à altura de lhe dar resposta aferida. A religião por seu lado precisa duma força secular que a impeça da tendência do abuso do poder ou da tentação hegemónica. A instituição religiosa é necessária também como correctivo do poder político que tende, por natureza, a instrumentalizar o cidadão. O problema tanto do chefe político como do orientador religioso é ambos cheirarem a próximo passando a política e a religião pela sua fraqueza individual e epocal.

Trata-se portanto de impedir fundamentalismos quer de carácter secular quer de tipo religioso e redescobrir, através dum esforço comum empenhado, os tesouros cristãos que se encontram entulhados debaixo da nossa civilização e que são património de toda a humanidade.

António da Cunha Duarte Justo

Mestre em Teologia

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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