A Hora da Lusofonia está a chegar (1)

Assumir de novo a Bandeirância da Civilização Ocidental

António Justo

Como reacção ao meu artigo “Falta de Cultura da Europa face a outras Culturas mundiais – Europa Berço da Cultura jurídica da Humanidade” recebi, dum digníssimo professor duma universidade de Lisboa, o seguinte reparo: “Penso que, na apreciação dos três pilares europeus, lhe faltou a identificação de um quarto: o braço armado da projecção lusitana da Europa”. O Professor tem razão e motivou-me a reflectir sobre o assunto e a dedicar alguns textos ao tema, sob o meu ponto de vista.

Status quo da Situação ocidental

Se do encontro da fé de Israel, com a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma nasceu o grande projecto cultural europeu, o seu agir ganhou expressão, a nível global, no “peito ilustre Lusitano”.

Os descobrimentos são, certamente, o quarto pilar da cultura europeia, o pilar do saber de experiência feito que Portugal soube concretizar. Sagres resumiu o saber (doxia) europeu e tornou-se no lugar da ortopraxia. Portugal ao saber-se Europa descobriu-se mundo. Por isso onde se encontra hoje um lusófono lá pulsa a alma toda do mundo.

Conseguiu-o porque resistiu ao espírito oportuno do tempo indo-se assim “da lei da Morte libertando”, como bem descrevia Camões n’OS LUSÍADAS dos descobrimentos. O alemão R. Schneider, grande conhecedor da alma portuguesa, diz no seu livro “Camões / Philipe II”p.120 “nos Lusíadas não se trata apenas dum povo, mas sim da Humanidade”. Sim, da humanidade que actuava no Portugal de então. Camões canta a alma portuguesa (ainda inteira) que, não se deixando levar pelas lutas/modas de reforma particularistas de então, manteve a visão filosófica cristã global da humanidade, cultivada à sombra das ordens na tradição de Carlos Magno, longe dos interesses meramente individualistas.

Portugal foi outrora o primeiro a expressar e a realizar o sentir e a pujança do ser europeu tal como hoje é o primeiro a expressar a sua fraqueza. Hoje como então Portugal é o palco de pontos altos da mudança. Outrora virada para o exterior e hoje de volta, para depois da crise moral e cultural se encontrar.

A Europa medieval, aquela velha árvore que depois de ter estendido as suas raízes às diferentes civilizações até então vividas, floresceu no Renascimento. Desta florescência surgiu o ramo protestante, que começa a afirmar mais o valor do indivíduo, do eu (factor emancipador, a individuação) enquanto o catolicismo continuou a acentuar mais o valor da comunidade. Dois polos necessários, na vida social, que se encontram hoje em radical conflito. De facto, a Idade Média, que é mãe, comunidade, é nós, deu à luz o eu (individuação). Este ao tomar forma no movimento emancipatório protestante sente a necessidade de se afirmar contra a mãe. Mãe e filho afastam-se. Hoje temos uma europa de filhotes sem mãe, que se extenuam no seu cacarejar e na contemplação das próprias penas. A Europa ao combater a maternidade torna-se infecunda e assim sofre o mundo todo. Não suportamos a diferença nem a coexistência de extremos, num condicionalismo de reduzir e simplificar tudo a dimensões uniformes e rectilíneas.

O ressentimento dos deuses germânicos contra Roma, no Renascimento, deu lugar ao desejo de liberdade que se fora articulando através da Idade Média e culminou na ruptura protestante com Roma. Assim se iniciam grandes convulsões religioso-político-sociais, e surge um novo sentir da vida, uma nova ordem económica, o capitalismo. A Europa rejuvenesce e transforma-se na procura de diferenciação e emancipação. A vertente protestante culminou no iluminismo, na proclamação da constituição dos USA e depois na revolução francesa e no enfraquecimento das monarquias. Esta importante vertente do desenvolvimento da Europa afirma o eu (a individuação) recalcando o espírito comunitário, o nós. Se na Idade Média a consciência individual ainda vivia em parte sob o manto da letargia institucional (nós à custa do eu) com o movimento emancipatório que ganhou forma no protestantismo começa-se a afirmar o eu (indivíduo) à custa do nós (comunidade). (Este movimento, encontra, actualmente, o seu extremo macabro no capitalismo liberal que reduz a pessoa a ego mercantil e transforma a essência do ego numa metafísica de consumo deixando o ser humano cada vez mais só no deserto do seu egoísmo.)

Com os descobrimentos, enquanto na Europa os países se ocupavam consigo mesmos, Portugal já adulto (numa Europa ainda adolescente) assume em plenitude a mundivisão católica e burguesa, aliando-a ao desejo do novo e do “saber de experiência feito”. Portugal precoce realiza o ideário europeu que florescia então nos jardins da Lusitânia. A Europa alcança, através das viagens portuguesas (descobrimentos), um novo panorama do mundo. Este em vez de afinar os espíritos do sentir universal deu lugar à afirmação dos egoísmos nacionais e ao instinto colonizador. Em vez do sentimento do nós católico e universal temperado pelo outro polo, o protestantismo, apenas este encontra expressão na afirmação particular seja a nível estrutural seja a nível individual. A Europa afirma-se na divisão, o norte contra o sul, o politeísmo contra o monoteísmo mitigado. O mundo, à imagem da Europa, afirma-se então na divisão e no contraste em vez de integrar os polos contrários como pretendia o eclectismo complementar da alma portuguesa expresso pela ínclita geração. O despertar dos individualismos nacionais leva à afirmação do particular sobre o comum. Impõe-se a ganância à curiosidade, projecta-se a puberdade contra a maturidade. Os deuses do norte vingam-se contra os do sul. O politeísmo intelectual e político, então iniciado, tudo justifica, restabelece a mentalidade bárbara, não reconhece pai nem mãe, chega-lhe o bordel.

Chegamos a um ponto de puberdade negadora duma tradição que lhe deu o ser e que é levianamente negada por uma sua parte. Esta não está consciente de que a negação provém da acentuação exagerada do outro polo que constitui a sua afirmação, o seu ideário. Entretanto o espírito emancipatório acentuou-se de tal modo que reprimiu o aspecto comunitário, só quer machos, a feminidade/maternidade constitui obstáculo ou é sufocada pelas estruturas vigentes, demasiado masculinas. Quer-se uma sociedade sem comunidade, querem-se filhos sem mãe. O ressentimento que hoje se expressa contra instituições, especialmente contra a EU, contra a Igreja católica, é o mais visível sintoma dum individualismo exacerbado que não conhece pai. O politeísmo da opinião não suporta a procura da verdade no sentido da unidade, circula em torno de si mesmo sem conhecer o sentido linear ascendente da evolução natural, individual e cultural.

A crise actual é uma crise cultural e moral duma civilização que perdeu o seu ideário; é o resultado da acentuação do eu contra o nós, do objecto contra o sujeito. Socialismo e capitalismo sofrem do mesmo vírus epocal. Todo o mundo sofre em consequência da crise espiritual europeia que vendeu a alma ao Mamon para continuar a afirmar o seu polo individualista. O capitalismo exagerado machista foi-se afirmando à custa da comunidade até ao extremo de hoje se afirmar contra ela, não tendo escrúpulos em destruir os próprios Estados.

Os países lusófonos, em vez de assumirem a nova mudança de consciência individual e histórica deixam-se destruir, sem tecto metafísico, seguindo sem reflexão própria os novos deuses e cultos que, de maneira anónima, em nome da emancipação se afirmam contra uma comunidade que albergue todos na complementaridade. A lusofonia, para assumir a bandeirância do progresso, tal como o Portugal de outrora, terá de descobrir-se a si mesma e de consciencializar-se e assumir o tecto metafísico que dê consistência à sua acção.

Outrora, enquanto os povos da Europa combatiam pela definição de suas identidades políticas, Portugal, que já tinha encontrado a sua identidade nacional, pôde dedicar-se à tarefa original de levar ao mundo o espírito europeu. A bandeirância que fez nascer Portugal é a mesma que o torna adulto e o leva à expansão. A revolução axilar do renascimento que explode por um lado no protestantismo na procura duma individualidade que se expressa no capitalismo e no espírito cívico, afirma, por outro lado, o seu carácter global (católico – aspecto comunitário) na continuidade espiritual da escola de Sagres.

Hoje encontramo-nos numa época axiomática da História na qual a crise não é só de ordem estrutural/mental mas espiritual. Os fundamentos que deram origem à grande árvore da civilização ocidental são descurados e as suas raízes sistematicamente amputadas. Em vez de nos preocuparmos com o que deu vida a esta árvore, serramos nela o próprio ramo em que nos encontramos. Depois da insónia desta crise surgirá porém o sonho que renovará o mundo; até lá os ventos da contradição continuarão a destruir pontos altos da nossa civilização.

Ao ressentimento dos deuses germânicos, com o seu espírito capitalista, sucede-se agora o ressentimento socialista aliado à derrocada dum capitalismo liberal injusto que, como um polvo, procura abrir os seus tentáculos num globalismo aniquilador de nações. Junta-se a feiura do turbo-capitalismo à fealdade do comunismo materialista na tarefa de reduzirem as estruturas de Estado a seus veículos de ideologia trituradora da pessoa.

O mito da Europa como vaca degenera-a agora em touro de cobrição. Como um touro de olhos fechados sai do curro ocidental para dominar o mundo, destruindo a cultura que lhe deu o ser, não respeitando os ecossistemas culturais. É verdade que as “constelações postnacionais” de que fala o filósofo alemão Habermas já não podem resolver os seus problemas sozinhas pressupondo isto o abandono de individualismos nacionais e culturais mas sob o tecto metafísico civilizacional que lhes deu o ser.

Se o desejo de individuação, no renascimento, deu lugar à “monolatria” protestante, o modernismo volta ao politeísmo anterior à civilização. Deixou-se de considerar o mundo como um conjunto de ecossistemas sociais com as suas leis e ordem inerente para os transformar em biótopos individualistas em que as divindades se sobrepõem umas às outras tornando notórias as fracturas a nível ideário, estrutural e pessoal. A nível ideário e cultural assiste-se à batalha do politeísmo contra o monoteísmo. Se o conflito surgido do renascimento (dois modelos de vida sob o mesmo teto metafísico) era expressão da força dum sistema e duma vivência, a crise a que assistimos hoje revela-se decadente (sem sentido, destroem-se modelos à margem dum ideário colectivo que justifique tal actuação). O saber deu lugar à opinião fundada em castelos no ar. A nação deu lugar a estados à mercê de mercenários que em nome duma europa mal-entendida se afirmam. Estes, para se sentirem mais à vontade mandaram a cultura ocidental para rua sem qualquer guardachuva espiritual. Resultado: chuva ácida nos biótopos naturais e nos ecossistemas culturais.

O capitalismo e o socialismo, dois filhos pródigos do cristianismo, depois de terem provocado grandes buracos no ecossistema espiritual ocidental, parecem, não querer voltar à velha casa paterna onde, juntos, a poderiam renovar, engrandecer e projectar. Preferem seguir o poder da monocultura masculina islâmica e a desorientação do politeísmo oriental. Nestas, o indivíduo encontra-se indefeso, à chuva, e sem privacidade com a própria divindade. Desprotegido e desalojado dos ecossistemas sociais, fica mais disponível para o mercado e aberto a ideologias baratas e a uma oligarquia anónima mundial.

Enquanto o espírito europeu envelhece, no Brasil e nos países da lusofonia, a antiga vontade poderia erguer-se. A lusofonia surge como lugar duma nova missão no mundo. Nela se podem congregar os anseios do velho Portugal com as ânsias das novas gerações. Como parte do legado, visto da perspectiva portuguesa temos o espírito universal católico, e os escritos de Camões, de António Lopes Vieira,  de Fernando Pessoa, etc. Não chega apostar apenas em ideologias, estas passam como os ventos entre a alta e a baixa pressão, é preciso ter-se presente o eixo que tudo suporta e dá continuidade a quem conta com o futuro; para os lusófonos, este eixo é o cristianismo com a sua perspectiva mística do triálogo. A filosofia e a espiritualidade cristãs terão de, num processo de aculturação e inculturação, se tornar num verdadeiro tecto metafísico do mundo da lusofonia. Neste sentido será necessário manter o modelo católico calibrado com o espírito protestante. A bandeirância outrora assumida por Portugal na Europa espera por ser assumida e renovada por todos os países da lusofonia. A nova bandeirância já não será de carácter expansionista para o exterior mas para o interior, da quantidade para a qualidade num espírito integrativo e de complementação num processo de integração de espírito e matéria, de ecologia e tecnologia. A força em toda a natureza vem de dentro para fora muito embora seguindo o chamamento da luz; o mesmo se diga dos ecossistemas culturais e dos seus biótopos humanos. Não podemos continuar a cultivar árvores repelindo a floresta.

No passado dominou o princípio dialéctico (um sistema de pensamento redutor elaborado na contradição/dissecação) como princípio de pensamento e da realidade que se reflecte na nossa maneira de organizar a sociedade e a vida individual numa espécie de dicotomia entre indivíduo e sociedade, superior/inferior, sujeito/objecto. O novo pensar será trinitário equacionando o problema dos contrastes num triângulo circular ascendente. Numa cadeia de relações infinitas dum contínuo tornar-se, num processo espiral ascendente que transcende o espaço e o tempo na dinâmica da união que se não limita a um estado momentâneo mas se expressa na sua dinâmica relacional, numa nova Realidade que engloba o real aparente despetreficando-o para um estado fluido, para lá do momento e das amarras da definição que são o espaço e o tempo. A relação torna-se então processo pessoal e não estado, deixando de ser objectivável no todo e no particular. A Realidade desinforma-se para se consciencializar do ser in do processo in-formar. Então a relação torna-se pessoal, é tornar-se, essência relacional; o in (do in-formar antes e depois da forma numa dinâmica de pai-filho-paráclito) da a-perspectividade resolve a aparente contradição matéria-espírito, indivíduo-sociedade, eu-tu, na dimensão da vivência superadora da alternativa através do paráclito. O indivíduo passa a ser pessoa e a sociedade a ser comunidade. Nós só exercitamos a perspectiva funcional da relação e por isso petralizamo-la numa ou noutra identidade. Em Jesus cristo exclui-se a exclusão mútua de matéria e de espírito. Nele (JC) torna-se visível uma unidade dinâmica do tornar-se da petrificação (J) e do fluido (C); a relação duma com a outra possibilita-se num processo de mudança concretizado na relação pura (o paráclito). Aqui dá-se já não um progresso quantitativo (estados), negador do anterior ou afirmador do posterior, mas uma dinâmica da relação pessoal (de ipseidade) em que o outro participa do espírito comum a toda a realidade em relação. A base constante é a divindade subjacente a tudo, a todos comum, num processo universal sem funções dado a relação ser pessoal num eterno tornar-se (“eu sou o tornar-se”, dizia Deus a Moisés) para lá do acontecer. A oposição dialéctica do eu/tu, eu/objecto resolve-se na realidade trinitária dum eu-tu-nós. Passamos a não ter apenas o diálogo como o contrário do monólogo, como relaç1bo entre objectos, mas o triálogo como integrador do diálogo, do monólogo e do “objecto” num processo de sujeito-sujeito. A dialéctica passa a ser integrada como momento do processo e a não ser vista como realidade ou espelho da mesma. Isto tem como consequência uma outra forma de vida e de estar superadora duma pedagogia, duma política e duma economia meramente objectivadora.

Uma nova filosofia da vivência e de Estado pressuporá a união da filosofia com a mística, uma aplicação prática da filosofia trinitária.

A Hora da lusofonia está a chegar, precisam-se faróis por todo o espaço lusófono. Para isso terá de coadjuvar-se modernidade e tradição, maternidade e filiação, o indivíduo passar a ser pessoa e a sociedade a ser comunidade. “O espírito do mundo desce ao Brasil e abandona a América iankye. A China cairá brevemente com a sua crise demográfica e é preciso preparar a Lusa- áfrica pela mobilização do Brasil”, confessava-me o amigo. (continua)

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo, Pedagogo e Jornalista

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Religião não é Renúncia mas Participação

Cristianismo é Teísmo e Panenteismo

António Justo

Os dogmas da religião e as teorias científicas seriam mal-entendidos se fossem reduzidos a absolutos lógicos ou a realidades factuais. Para nos relacionarmos e desenvolvermos precisamos da linguagem, de modelos.

Também a criança para poder dar as primeiras passadas precisa da perspectiva dumas mãos dispostas a ampará-la… Ver na criança a confiança como algo alienante seria reduzi-la à sua incapacidade de se transcender a si mesma. Muitos impacientes pretendem o Homem à sua imagem e semelhança, à medida da sua medida, à medida da sua consciência, como se esta fosse um dado estático adquirido e não um processo e como se cada pessoa, cada sociedade não estivessem sujeitas a um processo de crescimento precisando de parâmetros e duma pedagogia acompanhante. Uma religião autêntica não afirma só o ser, não divide o ser do fazer.

Já no Sinai o Deus da Bíblia revela: “Eu sou o que sou”, “Eu sou o acontecer” (“ sou o tornar-se”). Isto é testemunhado mais tarde na espiritualidade da trindade onde Homem (natureza) e  divindade transcendem a visão polar da realidade, revelando a Realidade como relação. A visibilidade e a invisibilidade irmanam-se. O Homem, a natureza (= Jesus) não terminam em si, mas fazem parte duma realidade mais abrangente o Cristo, numa relação já não binária (bipolar)mas trinaria. A descoberta do eu no tu realiza-se no nós da divindade. Só podemos ser reconhecidos no trajecto, sendo muito embora mais que ele! A vida é mais que um produto da natureza, ou que um dado acabado da razão, a seguir o caminho efémero do destino. Por trás de tudo há um chamamento, um Sol que atrai e aquece. E na raiz já se encontra o ser e a experiência do Sol.

É verdade que a religião, por vezes, se circunscreve a uma ascética, a uma moral que exagera a renúncia ao mundo. Afirma em demasia a filosofia grega esquecendo a mística joanina. Desvirtua-se ao manter na sombra a realidade trinitária, da incarnação-ressuscitação, onde em vez da lei da contradição grega se realiza a lei da complementaridade. O Pai realiza-se no Filho e este assume a matéria, como parte dele mesmo, desencrostando-a para a divindade fluir nela. Aqui o monoteísmo mitiga-se. Reúne-se o teísmo (transcendência) com o panenteismo = tudo em Deus: Deus dá-se ao mundo na criação mas mantem-se ao mesmo tempo fora do mundo. O cristão vive no e com o mundo em Deus, vive a realidade Emanuel. Ele crê que não pode adiar para depois da morte o processo da morte e ressurreição em via em nós e já antecipada pelo Jesus no Cristo. Sabe que o processo vital não se deixa reduzir ao ser fenomenal nem a caminho, permanecendo através do tempo (diacronia). A Vida é relação não só no aqui e agora do espaço e do tempo, não só na crosta do ser, mas especialmente no ser a acontecer. “Eu sou o tornar-se”. As pessoas da divindade manifestam-se pela relação e nós participamos nela.

Deus está acima das culturas e da opinião como o Sol acima da terra e das pessoas, encontra-se fora e dentro delas. A sua essência é amor fogo em tudo presente. Reduzir o corpo a veículo de luz seria desconhecer o seu ser que é luz. A luz não só está em nós como também faz parte de nós. Seria um retrocesso separar em nós o Jesus do Cristo… Trata-se de descobrir o nosso ser de luz. No sangue, no esperma, na seiva e na semente encontra-se o amor que expressa a existência do mesmo Sol. Essa luz precisa duma crusta, dum ser, dum indivíduo, duma instituição para poder brilhar.

Individuação sem recorrer à negação do outro

Definir é trair, por isso somos todos traidores inconscientes duma realidade que queremos nossa.No nosso desenvolvimento de criança para adulto atravessamos várias fases com as correspondentes crises. Assim, na adolescência temos a necessidade de negar os pais para nos sentirmos nós. Muitos de nós ficamos empancados na fase adolescente do combate contra o outro. A fixação na própria individualização leva-nos muitas vezes a negar os outros como se para nos branquearmos precisássemos da negrura dos outros. É fatal construir a própria individualização, a própria opinião na negação do outro. De facto aquele que já se encontrou dá uma chance ao outro, também, por estar consciente de fazer parte dele. Se emperramos nele é sinal que não ultrapassamos a fase da puberdade.  Abdicamos de crescer.

Lá fora no mercado das opiniões fala-se muitas vezes, de cor, como se fosse possível espírito sem corpo, inteligência sem cérebro, cidadão sem estado, crente sem igreja, democracia sem partido, bem sem mal. Aleatoriamente afirma-se, muitas vezes, a própria coloração do espírito contra a instituição. Não há liberdade pura, nem indivíduo nu; todo ele é pessoa com os vestidos da cultura e a coloração das circunstâncias do biótopo de que faz parte. Um sistema precisa de suportes (regras mesmo transitórias) senão rui, desfaz-se no caos. A beleza da rosa só é possível devido à mãe roseira. Muitas vezes afirmamos a beleza do nosso brilho de rosa negando ao mesmo tempo o verde e os espinhos da roseira: uma contradição. Em nome do colorido da liberdade não se pode evitar o escuro nas cores.

Não há raciocínio isento, só procura. O pensamento procura a luz tal como o embrião procura o sol: um e outro a caminho da verdade. A realidade existe no pensamento. Para o animal a realidade não existe porque ele faz parte dela. Para o homem ela existe no distanciar-se dela. A religião quer religar a realidade criada à Realidade perene. A liberdade em si não existe, ela é vida em processo de libertação em execução, um estar a caminho no caminho que se não fica pelo caminho; é como o sol, o amor que se encontra a caminho no botão à procura do Sol. Esse mesmo sol que era embrião se tornou em botão. O mesmo calor que se manifesta nas cores da flor expressa-se na devoção do crente e no entusiasmo do investigador científico ou do filósofo. Tudo pétalas da mesma flor.

Sonho e realidade são partes duma Realidade maior. O reino de Deus não é exclusivo nem exclui. Ele comporta também o espaço e o tempo, é ser aqui e agora numa perspectiva abrangente, do Alfa para o Omega, a caminho com o universo. O Sol chama/atrai toda a natureza e, mantendo-a embora inquieta, não se fixa na distinção entre os seres que desenvolve no seu chamamento. Também nós irradiamos o nosso sol e a nossa escuridão que se projecta no outro, e se manifesta em aceitá-lo ou em rejeitá-lo. Quanto maior é a escuridão dentro de nós mais escuro vemos à nossa volta, fora de nós; piores nos parecem os outros, deixando de ser próximos para os vermos como adversários. Esquecemos que a própria raiva escura não passa duma queixa ou duma vingança por um raio de luz não recebido.

Muitos estão dispostos a reconhecer Jesus com o coração mas rejeitam com o intelecto uma mãe que o dê à luz. Negam assim a realidade de que sem mãe não seria possível o filho. Sem a recordação, sem a memória também não haveria futuro, por muito que a lembrança, à primeira vista, pareça perda de tempo numa época que quer tudo já. No reconhecimento da mãe chegamos a ser mãe duma realidade que não temos em mão. Não há que desesperar: por trás duma jovem prostituta esconde-se uma boa mãe.

Somos todo povo a caminho em tensão entre o passado e o futuro na vivência do kairos. Memória, imaginação, corpo e espírito condicionam-se não se excluem. O ser também não se reduz à consciência dele. A religião quer abrir o caminho para novas dimensões, outras esferas. Também ela se encontra a caminho; teremos que a purificar purificando-nos. Sempre que atiramos pedras  aos outros paramos no caminho da vida, petrificamos o nosso ser.

Fala-se da fuga ao erro como se sem ele houvesse liberdade. Fala-se de realização pessoal como se ela fosse possível sem realização social. O erro é uma parte integrante de nós mesmos.

A sociedade corre o risco de se tornar infantil e irresponsável refugiando-se do stresse em “verdades ad hoc” próprias, em autonomias distantes, dum querer ser só pai sem mãe nem filho, numa dinâmica meteórica sem pertença nem sistema. Vivemos numa sociedade muito acelerada multiplicando, por isso, os resíduos que alguns chamam de impurezas, os naturais vícios da aceleração. As verdades fixas são produtos da mente, a Verdade é a realidade toda dinâmica a acontecer em nós, é processo e não conceito.

O preconceito dominante não deixa ver para além das embalagens das opiniões, fica-se pelo aspecto folclórico dos média, da ciência e da religião. O conteúdo seria incómodo para os donos da economia e dos pelouros públicos e para os formadores de opinião. Pensar é uma arte e reflectir faz doer.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo



COM O PECADO NASCEU A CULTURA

A ruptura é o princípio do progresso

António Justo

O cinismo hodierno quer-se branquear apresentando o pecado como algo fora de moda e que o reconhecê-lo constituiria um acto opressor. Pensa que ao destruir a consciência da culpa se livra dela. Vê no Deus criador um velho desmancha-prazeres. Por isso faz guerra a Deus no equívoco de que acabando com Ele acabam com a culpa, com o mal. Ainda acredita, com Rousseau, que o Homem no seu estado natural é bom e que só a cultura o estragou e corrompeu. “O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe” , dizia ele. Esta visão corresponde à atitude regressiva de Adão que, depois de seguir o acto racional da companheira Eva, teve remorsos e para evitar o incómodo do medo quis desculpar-se para voltar à “visão beatífica” animal de que gozava antes de seguir a racionalidade de Eva. Revela-se imaturo para assumir a coragem da culpa, aquela que o tornou Homem.


Sem culpa/dívida não temos homem nem cultura. A culpa torna-se numa dívida à vida transmitida e quem acordou o Homem para a cultura foi Eva, através dum acto proibido. Por isso o parceiro ainda sonâmbulo terá que a seguir sempre, na esperança duma natureza desperta. O Homem no estado natural não passaria do tempo em que era hominídeo, sem cortar o cordão umbilical com a natureza. Ignora o salto do animal irracional para o animal racional, na alegoria de Eva, que ao distanciar-se da natureza se descobriu como ser diferente do ambiente que a circundava. Ao descobrir-se diferente reconheceu o criador que a projecta para lá do horizonte da mãe terra e a ajuda a evoluir e a distanciar-se da irmandade hominídea para a reconhecer e seguir o próprio caminho. Já não lhe chega o tecto das estrelas sobre a cabeça; à imagem do criador que criou a terra, o Homem cria a cultura e com ela um tecto metafísico que o distingue dos irmãos animais e o ajuda a orientar-se nela. A natureza precisa duma atmosfera que a protege e o Homem precisa duma metafísica que lhe dá perspectiva. Como o Sol no céu da natura assim Deus no céu da cultura. O Verbo criou o mundo e o Homem criou a palavra, seu horizonte. Todos falam mas no falar é que se distinguem. No que entendemos sobre a natureza e as coisas é que está a diferença. Esta identifica-nos mas não é suficiente para nos definir; implica a outra parte de nós que é a diferença que nos torna diferentes. Fatal é o facto da teoria da evolução se ficar pela diferenciação. Aqui parece que Rousseau não compreendeu que a maldade/culpa humana é natural, que não é mais que a dívida da razão à natureza irracional. A tarefa está em reconhecer natura e cultura como metáfora, como a chance de, com elas, nos tornarmos nós com o todo.


Hoje reconhecemos a dependência mútua do bem e do mal que fazemos. O cristianismo aponta para  o aparente hiato entre natura e cultura que se realiza na irmanação de espírito e matéria na encarnação. Tem sempre presente a relação eu-tu-nós, não se limitando ao eu e ao outro. No cristianismo, pecado é a perturbação da relação com Deus, isto é a perturbação da relação comunitária do eu-tu-nós. A crença em Deus é uma procura dele, o direccionar-se do embrião humano para o ser em botão. A verdade acontece na procura e não no saber. Este serve só a individuação, como se viu em Eva. O problema da árvore do conhecimento do bem e do mal, penso que estará no facto de só se terem ficado pela dicotomia do saber. Ao comer da maça (da razão) descobrem-se nus, abrem os olhos. A proibição acentua a liberdade de poder transgredir. A História da cultura humana passa a ser um processo contínuo de tentativa e erro numa dinâmica de procura-tentativa-erro-decisão e assim por diante. Deus criou o mundo e o homem e com este criou a cultura e com ela a sua perspectiva. Em Adão e Eva encontra-se a “pré-história” e a “história” na passagem do inconsciente para o consciente. A criança é desculpada (vive de graça, não peca, não tem culpa) enquanto não comer do fruto proibido, enquanto não alcançar o” uso da razão”. Em Eva a humanidade alcança a consciência de indivíduo. Esta experiência é dura como podemos ler nos Géneses, porque a individualidade da pessoa se reconhece na desobediência a Deus, na dívida do indivíduo ao todo. A consciência do “pecado original” pressupõe a visão realista do ser humano e da natureza, uma natureza na tensão de saber-se separada para se poder unir.


Com Caim a humanidade alcança um outro grau de consciência, a consciência do poder. Também este estado de consciência é doloroso e associado à culpa porque se adquire à custa do assassínio de seu irmão Abel.  Se um progresso humano acontece no distanciamento de Deus o progresso social dá-se na culpa de se afirmar à custa do irmão. Caim (agricultor) desenvolve a consciência de ser político reconhecendo os conflitos de interesses entre os seus interesses de agricultor e os interesses de Abel  (pastor) e o mundo da mãe. Para se afirmar na sociedade rural e pastorícia, age egoisticamente matando o irmão Abel.


O pecado original (rebelião contra Deus – consciência da individuação) de Adão e Eva associa-se, depois, ao desenvolvimento da consciência de sociedade, o pecado social (político) de Caim e Abel (rebelião contra o Irmão, contra o grupo social). O Homem sente-se de princípio condicionado ao mal ao pecado/culpa. Para ser ele corta a relação com Deus e depois dessolidariza-se socialmente matando o irmão e consequentemente abandonando a mãe. O progresso pressupõe o abandono do seio materno e da tradição que o protegia; deixa de ser uma comunidade solidária. Daí o seu sentimento de culpa. Perde a inocência de pertencer a um todo harmonioso e indivisível. A inveja leva-o a assumir o poder. Culpa é uma dívida à vida transmitida. A razão procura dar um sentido ao caos. Para isso divide e separa para distinguir e afirmar-se.


O pecado é uma estrada para a verdade


A religião honesta não ameaça porque sabe que o que se encontra dentro também se encontra fora. Reconhece na pessoa que o último juiz está nela, para os cristãos na sua natura de Cristo. O afirmar da luz não justifica a negação da sombra nem vice-versa. O Sol no seu trajecto (movimento que ele provoca fora dele – na sua periferia) implica a noite. Do Sol surgiu a noite dos seres, a sua sombra; esta é mais que a sua (dele) expressão, mais que o brilho que dele reflecte.


As estações do ano constituem uma parábola da vida revelada no livro (tempo) da vida. Sem as purgações (a tempestade e a escuridão) do Outono e do Inverno, sem o descanso que a noite dá ao dia, a vida desapareceria tal como as cores no branco. Somos mais que força direccionada. Toda a comunidade, toda a instituição tem um conteúdo (valores, experiência) a transmitir através duma pedagogia, duma didáctica. Identificar o conteúdo com a pedagogia seria equívoco ou maldade.


Já o apóstolo Paulo dizia “Oh feliz culpa” alertando assim as pessoas para os bons frutos a colher do erro. O erro é a estrada para a verdade. A religião estimula a consciência a procurar e quer questionar para na espiritualidade experimentar o inefável.


O espírito crítico é muito importante para todo o desenvolvimento desde que se aplique para nós o mesmo critério que se aplica para os outros, desde que integrado num processo de responsabilidade. O adolescente tem a impressão que os pais (a religião) proíbem tudo. Este sentimento está ao serviço da sua individuação e sem ele não se tornaria adulto. Uma imperfeição não justifica a outra, mas, no mundo feito de imperfeições, é legítima a aspiração a uma imperfeição mais adequada. Problemático seria se o adolescente, para se afirmar, tivesse de rejeitar os pais. Na arena pública digladiam-se embriagados da própria razão. Tudo na fuga à culpa que liberta. Tudo peca contra o outro. Ninguém se confessa.


Verdade e falsidade são dois polos do mesmo problema que passam pela opinião, pela percepção intelectual. Os livros sagrados procuram expressar experiências de vida e do sagrado em letras, num código de regras, como se vê nos dez mandamentos. Revelam também o perigo que as normas também têm, o perigo de esconderem horizontes novos. “O Homem não foi feito para o Sábado, mas o Sábado para o Homem”, advertia o Mestre de Nazaré.


Há que ter em conta a realidade do pecado e da culpa não se fixando nele. O facto da jerarquia eclesiástica ser constituída por pessoas (limitadas) não nos isenta das próprias limitações na crítica ou louvor que façamos. (Abstenho-me de referir aqui os pecados da instituição Igreja porque esta já é o bombo da festa dos de má consciência e de grupos intolerantes organizados que dominam a praça pública). O óptimo é inimigo do bom; ele tornaria a vida insuportável e negá-la-ia. Verdade é que sem partidos não há democracia por muito imperfeitos e repartidos que estes se encontrem e por muito inteiros que a perfeição os queira.

As instituições, como o indivíduo, correm o risco de, ao fugirem do perigo, caírem na armadilha do medo ou de abusarem da sua situação. O medo não está na religião mas no sistema sensorial do cérebro, no sistema mais arcaico do cérebro. Ao contrário, a oração e a meditação mobilizam reservas cerebrais libertadoras dos medos artificiais. O erro, o mal são elementos essenciais à evolução e ao desenvolvimento. (A tarefa do consciente será descobrir jogos que o contorne sem o provocar). O Criador embutiu alguns erros na natureza para podermos fazer o mal quando fazemos o certo…

Só vemos o que os nossos olhos permitem ver; o que é grave é identificarmos o que se vê com a realidade como se esta não fosse mais ampla. Deus definiu-se como o “tornar-se” e nós, “feitos à sua imagem” se nos definimos só como “o ser” (a crosta) limitamo-nos a ser a tinta da palavra escrita mas não a Palavra/acontecer.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo,  Pedagogo e Jornalista

antoniocunhajusto@googlemail.com

Da Primavera Árabe sobressai o Extremismo no Egipto


Junta Militar governante interessada na Desestabilização

No Egipto, Cairo, foram assassinados 20 cristãos coptas. Domingo à noite demonstravam contra um ataque incendiário a uma Igreja efectuado por muçulmanos na região de Assuão. Os cristãos responsabilizam bandidos islamistas e pessoal do exército pela escalação de demonstrantes e contra demonstrantes.

A junta militar governante do Egipto está interessada no conflito entre muçulmanos e coptas. Há acusações que afirmam que a junta militar incita os ataques aos cristãos. A desestabilização do país interessa especialmente aos militares, que não querem perder os seus privilégios. O adiamento das eleições parlamentares previstas em Novembro constitui uma ameaça aos privilégios dos militares e aos familiares de Mubarak. Em nome da desestabilização as forças militares ganham peso como factor de ordem. O ataque incendiário à Igreja de Assuão terá sido efectuado com a aprovação do governador muçulmano da região.

Segundo informação da organização dos Direitos Humanos „Egyptian Union for Human Rights“ depois da queda de Mubarak já fugiram do país 100.000 cristãos.

No Egipto há 74 milhões de muçulmanos e quase 9 milhões de cristãos coptas. No mundo há 15 milhões de coptas. Com a islamização a partir de 640 foram-se reduzindo até à sua expressão actual. A História de discriminação e perseguição parece dar razão a quem usa da espada para se impor e não apenas da palavra.

Como advertiam conhecedores da política muçulmana, a primavera árabe, embora expressasse um desejo legítimo, não podia passar dum desejo pio. Para haver democratização são precisas forças mínimas de individuação contrariadoras do colectivismo e do dirigismo.

Infelizmente não há ninguém no mundo e nas religiões que não faça erros. Há porém uma diferença entre erro e assassinatos em massa.

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com

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Um Dia Santo para a Natureza para os Animais e Plantas – O PAPA E A ECOLOGIA

O PAPA E A ECOLOGIA

Um Dia Santo para a Natureza para os Animais e Plantas

António Justo

Na parte final do seu discurso no Parlamento alemão, Bento XVI referiu-se também ao movimento ecológico surgido na Alemanha, especialmente, a partir dos anos Setenta, afirmando que o ambientalismo “foi e continua a ser, um grito que anela por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem acantonar”. O papa com a ideia de não deixar acantonar o movimento ecológico num partido (Os Verdes) ou grupo do mercado quer que se ultrapasse uma visão antagónica do preto e do vermelho para uma visão dum verde que suporte todas as cores do arco-íris sobre ele. A lei da complementaridade na biosfera e nos ecossistemas culturais pressupõe um equilíbrio de relações entre todos os elementos e não a ditadura da economia (lucro exagerado) que ao destruir a natureza destrói também a pessoa. Requer-se uma mudança radical de mentalidade, uma consciência ecológica e humana que transcenda os guetos das ideologias.


Se no alvorecer da humanidade e no seu afirmar-se, o Homem, então em reduzido número, lutava por dominar a natureza, hoje que a explora e põe em perigo, tem que, como sua parte integrante, tornar-se seu protector assumindo a responsabilidade do Criador. De facto, hoje observam-se dois grandes buracos de ozónio: um na biosfera natural e outro nos ecossistemas culturais. O ar e a cultura, cada vez se intoxicam mais, correndo em abundância o veneno na água e na divulgação pública. Hoje, por vezes, tem-se a impressão de vivermos em tempos apocalípticos, do não há pai, salve-se quem puder.


Em tom brincalhão, o Pontífice fez um aparte, no discurso, dizendo que não estava ali a fazer propaganda por nenhum partido. Certamente não queria ficar como o papa verde! De facto o partido OS VERDES com 68 deputados num parlamento de 620 surgiu da defesa da ecologia. Com este louvor talvez o Papa queira estimular a Alemanha a continuar no seu estado pioneiro de empenho ecológico no contexto das nações e de ter sido a maior sociedade industrial a ter determinado o abandono da energia atómica para passar a investir em energias não poluentes e renováveis, como a eólica e solar. Isto tem como consequência a transição de investimento e transformação tecnológica e de investigação.


Não chega pintar de Verde as Fachadas das Fábricas e das Ideologias

Depois continuou: “A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero ainda enfrentar decididamente um ponto que, hoje, como ontem, é largamente descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando ele escuta a natureza, respeita-a e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana”. Critica-se assim a monocultura agrária e de espírito em via. A Biodiversidade dentro do ecossistema humano e natural pressupõe uma dimensão não só horizontal mas também vertical; pressupõe um horizonte aberto a tudo e a todos numa consciência da lei da complementaridade a nível de ecossistemas naturais, culturais, ideológicos e o respeito de uns pelos outros. A terra é de todos e de tudo; todos somos terra e nos tornamos terra.


O ambientalismo sério começa cá por casa, por cada um de nós (mudança de hábitos de consumo, de alimentação; um motivo de cada pessoa e não apenas de sistemas a afirmarem-se uns contra os outros. Não é preciso seguir a bandeira dum ecossocialismo nem dum ecocapitalismo. Os dois não apontam para a solução; fazem uso duma filosofia do contra em benefício da própria clientela não querendo, na discussão, aplicar a lei da complementaridade, que reina na natureza, ao relacionamento da vida social e ideológica: o que se reconhece no ecossistema natural nega-se no ecossistema cultural e na relação das ideologias umas com as outras. O neoliberalismo domina tanto os estados capitalistas como os socialistas. É cómodo encostar-se ao socialismo ou ao capitalismo quando a solução do problema terá de começar pela mudança de mentalidades das pessoas e por uma consciência da complementaridade das estruturas, todas elas deficitárias e até agora manipuladoras da cultura e das suas clientelas. Não chega pintar de verde as fachadas das nossas fábricas e das nossas ideologias. Muitos ouvem o alarme da natureza e o protesto de muitas pessoas e aproveitam-se da ingenuidade ou egoísmo de pessoas para melhor fazer o seu negócio, a propaganda da sua organização contra outras (na continuidade do mesmo espírito que levou à exploração da natureza: divide e impera). A solução não virá de ideologias mas duma luta supra-ideológica, dum movimento dos movimentos que está por nascer.


É possível um novo mundo, a mudança da civilização. O comércio tem vivido dum mundo fragmentado e da tentativa de mecanizar/automatizar a pessoa em contínua corrida sem segurança.

A ganância do lucro e o oportunismo impedem uma revisão equilibrada dos sistemas. A pessoa é reduzida a indivíduo e a mera força de trabalho, a mero produto. A ganância do lucro manterá a crise cultural, económica e ecológica da civilização. Não chega encontrar a causa do que se vê mas também a sua finalidade.


É necessário desenvolver uma tecnologia da libertação, correspondente a uma nova consciência. A natureza é rica, pobre é o espírito duma economia e tecnologia explorador. O crescimento económico justo e o desenvolvimento social pressupõem uma sintonia no respeito pela natureza e pela dignidade humana.


Os países ricos enriqueceram no desrespeito da natureza e na destruição dos biótopos em favor das monoculturas. Os países em via de desenvolvimento são tentados a seguir este mau exemplo. No Brasil entre outras organizações que se levantam contra a destruição da natureza, os bispos brasileiros têm-se insurgido contra a destruição da natureza que mata 100 pessoas por ano e leva a população rural a fugir para as cidades. A comunidade mundial terá de se tornar solidária com estas populações insurgindo-se contra a destruição de biótopos e ecossistemas naturais destas regiões. O sistema económico que actua a nível global chegou com o seu latim ao fim. Provocou um desequilíbrio entre meio ambiente e produção, entre emprego e desemprego, entre rico e pobre.


Bento XVI diz que o desastre que se observa na terra e na sociedade é consequência do desastre espiritual e cultural humano. A terra apenas se deixa contagiar pela doença do Homem. A natureza é parte de nós e nela encontramos o outro.

Já antes tinha chamado a atenção para a necessidade de mudança de mentalidade no sentido de Francisco de Assis, afirmando: “É fascinante em Francisco a sua rejeição resoluta ao mundo de bens e o seu amor não afectado pela criação, pelos pássaros, pelos peixes, pelo fogo, pela água, pela terra. Ele aparece como o padroeiro dos ecologistas, como o líder do protesto contra uma ideologia que se concentra apenas na produção e crescimento, como o advogado da vida simples.”


Francisco queria o jardim Terra não só como lugar para a agricultura para animais de pecuária mas para todos os seres, para os irmãos “as flores do campo e os lírios do vale” (Cant2,1), queria a natureza como lugar para toda a criatura poder viver em irmandade desde o “irmão burro” às “ irmãs flores”. E Bento XVI complementa: “O respeito para com as pessoas e o respeito para com a natureza pertencem juntos, mas ambos só podem prosperar e, finalmente, encontrar o seu nível, se respeitarmos o criador e sua criação nas pessoas e na natureza.”


Dignidade humana e da Natureza em relação de interdependência

Em comunhão de alma com a natureza, na qual corre a mesma seiva/sangue e se manifestam as mesmas diferenças como na sociedade humana, estamos chamados a fazer brilhar nela também o nosso sol, o sol do amor. Com o manto verde das suas plantas, a natureza alimenta o nosso respirar oferecendo-nos o oxigénio e juntando o seu respirar ao nosso. Também nós temos algo para lhe dar: o manto do espírito. Deus criou a natura e o homem criou a cultura, para, em conjunto, colaborarem no projecto do mistério a caminho. A força do sol e do vento com a ajuda da água conseguiram fazer da rocha dura campos férteis e fecundos. Nós pelo contrário, com a alma em erosão, estamos a contribuir para a desertificação da alma humana e do mundo. A natureza sofre enquanto o Homem não arredar caminho. A maneira como tratamos os animais é pior que a atitude de Caim contra seu irmão, representante duma outra cultura.


Da fé num Deus criador e pai surgiu a ideia da dignidade humana e dos direitos humanos. Do mesmo princípio se deixa deduzir o respeito por todas as criaturas, pela natureza inteira, obra do mesmo criador. O Papa não se cansava de repetir “onde Deus está, lá está futuro”. Por isso precisamos dum dia santo para a natureza e não apenas dum feriado dela. Temos vivido do que se tem roubado à dignidade humana e aos animais, encontrando-se agora a natureza inteira a sofrer.


A Bíblia quer que também os animais tenham um dia santo, ao afirmar que também eles não devem trabalhar ao sábado e também a terra precisa dum ano sabático. A civilização tem atraiçoado a natureza ao degradar o Homem para objecto de produção e consumo amarrando-o à fábrica e ao shopping. O espírito que tem dominado a exploração do Homem pelo homem domina na exploração da natureza pelo Homem. Ao profanarmos o Homem profanamos a natureza também.


Os animais encontram-se encurralados em campos de concentração indignos do homem e do animal. É-lhes roubado o seu espaço vital como se também eles não tivessem direito a um ambiente digno. A terra é mãe de todos. As plantas não cortaram o cordão umbilical com ela mas sofrem as consequências da depravação humana; o animal homem, seu filho pródigo, esquece que ela é não só sua substância mas seu chão também.


Nela saltitam as nossas paixões e voam sonhos como andorinhas. Meus pensamentos não são mais que seus pássaros a voar. Como eu, também a planta, o animal, a raiz tem seus sonhos, a sua esperança. O Homem continua a violar a fecundidade da terra e depois admira-se que ela reaja magoada.


Na teologia da trindade e encarnação podemos encontrar um modelo de pensamento e acção que transcende a objectivação de tudo o que é ser para os integrar na sua relação complementar. Assim espírito e matéria unem-se num processo actual e teleológico, o espírito torna-se terra para nela se divinizar e ressuscitar. Como a natura segue a orientação do Sol assim a cultura terá de descobrir o seu sentido a caminho da transcendência. Teilhard de Chardin fala do percurso do Alfa para o Omega e do Cristo cósmico que resume o caminho e a aspiração da natureza e do Homem.


Há várias portas de acesso à Realidade, possibilitando cada qual uma panorâmica diferente da mesma: a natureza, a fé, a razão. Quanto mais abertura e mais chaves tivermos mais larga será a panorâmica da nossa visão.


António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

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