Nações ajoelhadas


Numa altura em que são sistematicamente destruídos os nossos biótopos culturais não se respeitando países nem identidades culturais; numa época em que elites obtusas pisam a nossa vida negando-nos o direito de erguer os olhos, não deixemos que a terra nos alague nas lágrimas da emoção que “Ó minha pátria, tão bela e perdida” (1) testemunha. Emoção sim, mas que iluminada pela razão dê lugar à revolução. Amigos, “eles comem tudo e não deixam nada” como cantava outrora o Zeca Afonso. Hoje até a flor mais bela do nosso jardim comem: a nossa esperança. Já não se contentam em tirar-nos a terra como o ar espiritual da nossa respiração, não dificultando uma vida digna. Primeiro levaram-nos a honra de pessoa deixando-nos solitários como indivíduos à disposição do seu mercado; agora violam a honra das nossas nações. Lembremos com Emmanuel Levinas: “ Aquele que levou a sua tarefa até ao anoitecer – aquele que acreditou num mundo melhor, na eficácia do bem, apesar do cepticismo dos homens e apesar das lições da História, aquele que não se desesperou. Aquele que não procurou nem distracção, nem suicídio, que não fugiu da tensão na qual vive como responsável, o único que merece, talvez mais adequadamente, o nome de revolucionário” .

António Justo em “Pegadas do Tempo”

(1)    http://www.youtube.com/embed/G_gmtO6JnRs

A Minha Razão e a Razão dos outros – Duas complementaridades


Não chega a sabedoria vadia nem a lógica rimada

António Justo

“Duas coisas preenchem a mente com admiração sempre nova e crescente… o céu estrelado sobre nós e a lei moral em mim”, dizia Immanuel Kant. A mim duas coisas me assombram: a aerosfera sobre a terra e o tecto cultural de cada civilização; a atmosfera que cobre os diferentes biótopos da natureza e o sistema de pensamento que cobre os biótopos individuais e sociais. As mesmas leis meteorológicas que regem a natureza lá fora parecem soprar no nosso espírito cá dentro e nas culturas (ad intra et ad extra).

A natureza, a sociedade e a psiché humana atravessam uma fase de altas pressões. O desequilíbrio entre altas e baixas pressões é tal que os tsunamis parecem sacudir os fundamentos da sociedade e da moral. O nevoeiro generalizado chega a impedir de ver as estrelas e a diluir os contornos éticos, pondo em questão a sustentabilidade da humanidade e da terra.

Aqui fora, na minha terra, a atmosfera torna-se cada vez mais fria e rude; a tempestade, que nela grassa, varre jardins e telhados. Da borrasca ficam paisagens humanas devastadas e sentem-se os ecos de brados de gaivotas no ar. Uma natureza humilhada chora nas plantas e nos animais por o saber humano não respeitar o saber da natureza. Por todo o lado se observam ventanias e razias no meio ambiental e no meio cultural. O mesmo se diga no foro social e individual. Natureza e cultura ao desafia, o Homem contra o Homem.

A crise de identidade, com as crises dela resultantes, abala a pessoa e as instituições. Os ventos que correm na razão e no coração são stressantes. Na sociedade muitos afirmam-se pela negação do outro, outros pela acomodação. Por isso cada vez surgem mais árias para embalar o sentimento e para adormecer a razão. Tudo é belo, as sereias cantam e encantam. Cada um puxa ao rubro as cordas da razão ou do sentimento para fazer ouvir a sua composição.

Com esta minha composição não quero embalar mas tentar acordar para a mensagem de Ulisses ao passar pela ilha das sereias. Como na composição as desafinações têm o seu sentido também o desacordo compreensivo tem o seu lugar! A dissonância torna possível a harmonia. Não poderíamos falar do dia se não conhecêssemos a noite. A realidade ultrapassa porém a visão que advém do contraste.

Na praça pública, encontram-se demasiados textos feitos de frases soltas em bemol e de sabedoria vadia com lógica rimada ao sabor do anónimo dirigente ou textos beligerantes que só conhecem a própria razão. Dum lado o grupo dos afinados acomodados e do outros o grupo dos desafinados que tomam o semelhante como adversário. Neste grupo cada um quer, à margem da orquestra, tocar o seu instrumento sem diapasão, sem conferir a afinação. Cada um afirma-se naquilo que parece opor-se a ele. As desafinações são salutares se nos levarem a reconhecer o valor da harmonia, uma harmonia que comporta desafinações na afinação. Mal da sociedade quando cada um quer assumir o papel de diapasão. No mercado das ideologias e das opiniões assiste-se a uma grande desafinação. Cada um quer ter razão à custa da razão do outro.

Aqui a natureza pode vir em ajuda da cultura. A Natureza tem as mais variadas sementes, cada qual, com uma expressão de vida característica. A semente é formada pela casca tendo dentro dela o tecido de nutrição e o embrião. Também a sociedade/ cultura tem as mais diferentes sementes: filosofia, religião, ciência, arte, economia, política, ideologia, opinião. Cada uma destas tem a sua correspondente casca constituída por leis, dogmas, concepções. Estas (cascas) encerram dentro delas uma determinada vida (embrião). O mais importante não é a casca mas a vida que estas encerram. Enquanto na natureza (botânica) as cascas que envolvem o embrião (a vida), se amaciam e abrem para darem oportunidade à vida do embrião grelar e dar oportunidade à vida, na sociedade as sementes fixadas na casca lutam umas contra as outras. As pessoas (ideologias ou concepções) fixam-se naquilo que as delimita, a casca; naquilo que circunscreve o objecto do seu discurso/combate à casca; não fazendo sequer ideia do que esta encobre, comportam-se como se só elas tivessem direito à razão, à vida. Assim, para os que apenas têm a consciência do seu ser casca, só resta a estratégia da auto-afirmação pela negação dos outros. Então levantam-se os dogmáticos da religião (os fixos na casca da religião mas que não percebem nada de religião) contra os dogmáticos da ciência (os fixados na casca da ciência mas não percebem nada da essência da ciência), e vice-versa; o mesmo se dá nas diferentes nominações com as respectivas lutas entre grupos/casca. A casca da opinião talvez seja a mais dura delas todas porque muitas vezes não passa de uma casca formada doutras cascas, à margem da própria vida (identidade) e da mesma vida que flui ao mesmo tempo dentro da própria casca e dentro das cascas dos outros.

Olhai as sementes das plantas na natureza. Umas têm a casca mais dura que as outras, umas são maiores, outras mais pequenas. Em todas elas corre a seiva da vida sem se negarem umas às outras. Seguem um chamamento comum pressentido por todas; crescem em direcção ao Sol, apoiadas pela vontade. O ser humano, pelo contrário, encrusta a verdade/vida na delimitação (casca) da sua subcultura/opinião. Em vez de reconhecer a vida que se encontra dentro da demarcação (casca) afirma a sua casca contra a do outro e vice-versa. O ser humano ao não se tornar consciente da mesma vida que corre nele e nos outros fixa-se na carapaça do pensamento transformando-o em escudo, em casca contra a outra casca.

Ao não ouvir o chamamento da natureza, fixa-se em si mesma, como sendo um absoluto pedra,  desprezando o fluxo da vida para se fixar na maior ou menor consistência (fragilidade) das cascas, prescindindo da vida e do espírito que cada casca encobre para assim a poder negar. Na natureza temos as diferentes sementes/plantas (os diferentes biótopos/ecossistemas) que com as suas potencialidades vitais formam a riqueza da cobertura vegetal terrena. Na cultura temos diversos biótopos/ecossistemas culturais científico-filosófico-religiosos, cada qual com as suas configurações (cascas) que formam a cobertura cultural da humanidade. Cada sistema, do mais complexo ao mais simples (da civilização à opinião) tem a sua crusta (casca) que encobre a vida. Geralmente, no reino da opinião e do debate, limitamo-nos a abordar a crusta, refutando-a sem reconhecer a vida que se encontra escondida em cada uma, confundindo a semente com a casca. No fundo a vida que a tua crusta esconde é a mesma que flui debaixo da minha. É verdade que a casca (as concepções, os dogmas, as leis, os programas) tem a função de defender a vida que comportam contra a dissecação e contra energúmenos ou outros microorganismos. As cascas, religiosa, científica, familiar, nacional, ideológica, opiniosa, têm o seu direito e justificação. Encontram-se porém, como organismos, em serviço dum bem maior dentro dum macro organismo. Só o rompimento da casca permite o crescimento do embrião/vida para o exterior. A disseminação dos frutos e das sementes têm a função de preservarem a espécie e de se desenvolverem. A missionação com a sua potencialidade de inculturação e aculturação possibilitam a evolução não só da espécie como de toda a sociedade. A afirmação de uma não pode acontecer à custa da negação da outra, mas no respeito, no respeito da abertura voltada para o Sol. Como na natureza assim na sociedade/cultura: nada há igual, tudo é diferente e da diferenciação surge o desenvolvimento, a evolução. A própria liberdade tem um sentido, o sentido do Sol. Se na natureza se observasse o que se observa especialmente hoje no discurso cultural ainda não teríamos passado da verdade da anémona, da verdade peixe, da verdade hominídea ou da verdade gorila, da verdade emocional, da verdade racional: verdades encrustadas num sistema (verdades casca). Com isto não se relativiza a importância das cascas, sem elas não haveria individuação nem diferenciação, não haveria evolução, desenvolvimento material e  espiritual. Importante será descobrir a vida que cada casca encerra e verificar, sem combater nem negar, a vida que se encontra em cada semente, dentro de cada casca com as potencialidades do seu embrião. Umas serão mais carvalho, outras, mais oliveira, mais toupeira ou mais leão.

O verde de todas as plantas, aparentemente mais ou menos relevantes, transporta o oxigénio da atmosfera de que todas se aproveitam. Semelhante deveria dar-se nas culturas (ecossistemas culturais) com os seus diferentes credos (religiosos ou seculares). A esperança vital da humanidade que se encontra sob o firmamento cultural e embrionada nos diversos ecossistemas culturais também não pode ser estancada em nome duma crusta comum.

Os diversos credos, religiosos (feminidade) ou seculares (masculinidade), são imprescindíveis para o tecto metafísico cultural tal como o verde para a atmosfera que respiramos. A verdura transportada pelo conjunto da cobertura vegetal é expressão do esforço comum das diferentes individualidades vegetais. A atmosfera não precisa só do oxigénio mas também do dióxido de carbono, embora este seja mais notório pelas suas qualidades negativas!

”Oh culpa feliz” reconhecia o apóstolo Paulo. A culpa é a casca da semente, a vida encrustada que possibilita, doutro modo, o fluir da vida profunda e activa. Sem o pecado não há relação. Ele separa para possibilitar a religação consciente. A nós compete a missão de desfazer os nós que a motricidade da vida produz com o seu desgaste próprio. Cada um de nós “crente” ou “não crente” contribui com o seu credo, com a sua opinião para o tecto espiritual da cultura. Como na natureza, não há nada igual. Da diferença aparentemente contraditória surge a riqueza individual e cultural que contribui para o concerto universal de natura e cultura. Cada um traz consigo os seus ferimentos e estes fazem a diferença. Porque nos afirmamos uns contra os outros negando ao outro a sua razão em vez de nos reconhecermos como complementares duma Realidade maior? Na realidade andamos todos à procura de nós mesmos (do brilho da nossa divindade), à procura da própria casca para nos podermos agarrar; uns procuram-se no teatro, outros na religião, na arte, na ciência, na política, na palavra, na afirmação, na contradição, esquecendo talvez que tudo isto não são mais que as cascas que encobrem o nosso verdadeiro ser: vida em germinação. Cada um traz em si o espartilho do seu biótopo, estando predestinado a confundi-lo com a natureza toda, com a verdade…


António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com

www.antonio-justo.eu

Ecossistema Cultural – Biótopo cultural


Opinião formada no Desvio da Verdade

António Justo

Nos meus escritos emprego a palavra biótopo/ecossistema não só no sentido botânico mas alargo-o à antropologia e à sociologia dum lugar ou região (assim, ecossistemas = unidades de vida de várias espécies em comum abrangendo também o seu habitat humano cultural). Assim também a língua faz parte dum ecossistema cultural, tal como o verde faz parte da cobertura vegetal.

Um ecossistema cultural é um processo de organização da vida resultante do ambiente geográfico/climático e cultural. De facto a mitologia, a filosofia, a religião e a maneira de organizar a vida e o pensamento depende primária e intrinsecamente da geografia/clima e da maneira como o ser humano reage técnica, emocional e intelectualmente ao seu meio.

Os conjuntos dos ecossistemas biológicos e culturais encontram-se numa relação de “diálogo” entre si: numa relação biológica e intercultural. Ao falar de ecossistema/biótopo cultural quero sugerir a interdependência e a coerência vital dentro dele mesmo; interdependência baseada no princípio de colaboração/ selecção interna e de definição em relação ao externo/estranho.

Assim como os biótopos e ecossistemas formam a biosfera também os ecossistemas culturais (civilizações, línguas, culturas) formam a esfera cultural humana global. Habitat geográfico e cultural implica a configuração geográfica e intelectual com diversos biótopos. Assim verifica-se que o homem do deserto desenvolve uma filosofia diferente da do Homem das terras férteis. Daí também as diferentes mitologias. A sobrevivência afirma-se na diversidade.

Geralmente, no diálogo entre disciplinas, culturas, ideologias e as épocas da História, não se tem em conta a coerências dos “ecossistemas”, afinidades e diferenças, nem se respeita a lei fundamental que se verifica a nível biológico e cultural: a lei da complementaridade subjacente ao desenvolvimento.  Na discussão pública, geralmente um afirma-se negando ou denegrindo o outro. As cores do arco-íris são reduzidas ao branco ou ao preto, ao verdadeiro ou ao falso desprezando-se a realidade que se encontra nas cambiantes.

A afirmação duma opinião própria dum biótopo afirmada em relação a um outro ou a um outro ecossistema cultural pode tornar-se fatal se não se tem em conta as correlações a eles inerentes. Assim a filosofia cristã só pode ser compreendida em relação a outra se tivermos em conta não só o espaço geográfico que ocupa mas também as suas fontes semitas, gregas, romanas num determinado processo histórico. A religião islâmica não se poderá conhecer sem o seu pano de fundo: o oásis e o deserto.

Também se torna arrojado falar-se e ajuizar dum ecossistema linguístico/cultural medieval em termos de ecossistemas linguísticos/culturais contemporâneos. Ao fazê-lo, geralmente, atraiçoa-se não só a cor local mas corre-se também o risco de instrumentalizar mentalidades para fins menos nobres. Até a transposição de textos ou comportamentos medievais numa linguagem corrente hodierna pode induzir em erro. O mesmo talvez já não fosse tão grave se a tradução fosse feita para árabe, uma cultura que se encontra bastante próxima da medieval e como tal com compreensão aferida à idade média. Geralmente, juízos de valor sobre o passado não passam de desculpa duma mentalidade que sofre do mesmo mal da de ontem, hoje criticada.

Na actualidade temos suficientes áreas propícias à discussão sem precisarmos de recorrer ao passado e perturbar o repouso dos mortos, por muito bons ou maus que tenham sido. Quando os argumentos não valem apela-se à responsabilidade clã. Neste sentido, hoje a Igreja Católica é o bombo da festa.

A opinião resulta dum biótopo geralmente em contraposição a um ecossistema.

Não há raciocínio isento. Isenta poderá ser a procura. Na procura crescemos! Por isso vale a pena procurar e raciocinar. O que fica da verdade é a procura e a esperança de a encontrar.

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@googlemail.com

Entre o eu integral e o eu superficial


Problemas nas Relações são Momentos de Desenvolvimento

António Justo

Uma pessoa, tal como o seu carácter, é mais que a soma dos seus detalhes psicológicos. Ao dizermos ou sentirmos o nosso eu referimo-nos a algo definido como se fosse um produto, algo já acabado e não um processo na realização do ser. O meu eu inclui-me a mim e às minhas circunstâncias. Estas são eu, tu, o outro, o universo e o mistério. A nossa personalidade é formada por um eu profundo integral e por um eu superficial parcial, ou seja um eu luz e um eu treva. O ego é a sombra do eu integral; é como que a sua crusta, a parte opaca da transparência, a sombra duma realidade, mais ou menos oculta, a tudo conectada.

No ego predominam as forças centrípetas enquanto no eu integral reina a harmonia dum universo de forças ordenadas. A relação acontece na tensão entre um eu e um tu para se realizar no nós. No nosso trajecto vivemos a fugir da anonimidade duma massa despersonalizada para através do eu personalizado voltarmos à comunidade dum nós pessoal. É a luta das cores por se diferenciarem do verde da natura para poderem brotar na flor. Somos com e no universo, todo o mundo, a caminho, na procura do “Sol”, num mesmo sistema interligado pelas mesmas leis.

Ao sermos projectados do útero da mãe inicia-se o processo da individuação. No grito original iniciamos uma nova relação com órbitra própria a firmar-se numa nova constelação. Ao ser-nos cortado o cordão umbilical, abandonamos o paraíso na procura de identidade. Começa a marcha a caminho do eu no sentido de realizarmos a ipseidade no todo. Primeiro de gatas, depois amparado e por fim só. Quanto ao desenvolvimento psicológico esse torna-se mais demorado e complicado. Como na natureza nem toda a planta chega a dar flor, o que não torna o seu verde menos esplendoroso. Vale a pena o esforço de ver para lá dele.

O desenvolvimento pressupõe um processo dialéctico exterior numa realidade que ultrapassa a dialéctica (afirmação-contradição, tese-antítese ou a mera síntese). A afirmação da parte contra a parte e deste modo o reagir e a distanciação contra o todo provoca a dor insatisfeita. Doutro modo a fricção do eu no tu seria integrada no desenvolvimento não se cristalizando na dor (culpa, medo). O movimento de separação e aproximação, tal como as ondas e as marés, não são mais que o pulsar do coração com os seus impulsos e pausas, como a alegria e a tristeza, o entusiasmo e a frustração; são momentos duma mesma realidade que nos envolve, define e determina.

A separação que se dá no desenvolvimento cumula na razão, onde o mundo deixa de ser uno como antes (Árvore da sabedoria no paraíso!). Aqui surge o perigo de o intelecto se autonomizar e criar um mundo “ideal” à margem da realidade com forças que não se deixam reduzir a meras leis. Com a caminhada da razão, que agora se acentua, dá-se um processo de diferenciação, de distinção entre um eu e um tu; em função da individuação afirma-se um sujeito contra um objecto, que na realidade, é sujeito numa dinâmica de complementaridade; a dialéctica leva o outro a ser tornado provisoriamente casulo para, assim, o eu se tornar sujeito. O sujeito, ao atingir o seu verdadeiro desenvolvimento, deveria passar a ver o resto da realidade como sujeito e relacionar-se de maneira a reconhecer-lhe tal dignidade (como parte dela/e). (O espírito incarna na matéria e a matéria ganha asas próprias para voar, tal como procura demonstrar o mistério da incarnação e ressurreição  e a Trindade realiza). Ao encontrarmo-nos todos num processo de transformação já não tentaremos destruir ou modificar o outro: a minha mudança já provoca a mudança do outro porque a transformação pressupõe relação, relação pessoal mesmo com o mundo inadequadamente considerado “coisa”. Trata-se de superar um pensar unidimensional só com lugar para a parte geométrica da vida, de superar o jogo das escondidas no nicho do intelecto.

Os distúrbios, de que todos sofremos como adultos, provêm dum mundo do pensamento paralelo, criado à margem da realidade orgânica e aos “traumas” que acompanharam o nosso desenvolvimento desde a criança infantil até ao estado de infantil adulto. A princípio agarrados às saias da mãe esperamos dela o amor simbiótico que nos mantinha a ela unidos no seu ventre, o paraíso terreal (muitas vezes a luta posterior não passa duma tentativa por restabelecer o estado simbiótico original: é a luta errada por se satisfazer a “culpa” do “pecado” original). Tal união, porém, não permitiria o desenvolvimento da própria identidade passando, naturalmente, a acentuar-se as forças centrífugas para depois culminarem na ressaca das forças centrípetas (egocêntricas). Segue-se então um caminho de experiências mais ou menos agradáveis, mais ou menos traumáticas que nos levam a andar pelo próprio pé ou a andar agarrados às eternas muletas de situações irreflectidas. A experiência individual cria frustrações e gratificações que mais tarde se podem revelar em sentimento de culpa, em sentimento de inferioridade/superioridade que depois será reafirmado pela vida fora num rescrito comportamental de arrogância ou de timidez. Nesta fase dominam os monólogos interiores e arrazoamentos que não permitem uma descrição adequada da realidade própria nem dos outros. Como não nos encontramos a nós mesmos continuamos a reduzir o outro à qualidade de objecto a ser assimilado ou a ser repelido. Muitos agarram-se desesperadamente ao pescoço da vida na fuga contra o vazio, contra a solidão. Procuram fora o que já se encontra dentro. As muletas das ideias revelam-se depois como poluidoras de paisagens emocionais interiores. É a fase da vida em canteiros de jardim infantil ou no jogo do gato e do rato.

Na infância a harmonia é procurada na mãe enquanto na fase adulta se procura na fusão de dois (polos) sujeitos, na “união conjugal”. Aqui encontram-se, a nível psicológico e comportamental, forças contraditórias em ebulição à semelhança do que se dá no desenvolvimento do universo com a sua formação de galáxias e de sistemas como o sistema solar, num jogo de forças que procuram o equilíbrio para depois seguiram o chamamento que pressupõe um novo desequilíbrio; este mantem a ordem viva num sistema de universos a caminho. Egocentrismo (movimento de rotação em torno de si mesmo) e altrocentrismo (movimento de translação em torno do outro) tornam-se condicionantes duma realidade maior. O amor que envolve os dois provoca o movimento aparentemente contraditório. A fixação extrema no ego ou no outro fecha os olhos para a felicidade (equilíbrio), para o amor, fixando-a no amor-próprio, na própria necessidade sem contemplar o sistema. O ego procura então não o outro mas a própria felicidade no outro contradizendo assim a felicidade, que é relação, o momento de equilíbrio (de esquecimento) que já traz em si o momento de desequilíbrio que provoca o desenvolvimento, a vida e não a estagnação. A vida que engloba o outro e a mim a caminho duma maior grandeza. A força centrípeta, o egoísmo exige uma relação de subalternos, quer ter, não quer ser, (ou confunde o ter com o ser) faz de todos seus satélites desprezando a realidade de que também os astros pertencem a estrelas e estas a galáxias, ao serviço duma realização maior. Cada um, tal como o universo, está chamado a seguir um chamamento; encontramo-nos todos a caminho do mistério na realização do amor, que é a energia que mantem todo o ser e todo o universo, unindo o que parece contraditório.

A necessidade do amor infantil (amor necessidade) domina as relações que se tornam por isso insatisfatórias. Cada um, criança traída, acusa no outro, sem saber, a sua mãe que o não acariciou suficientemente ou o considerou apenas seu satélite. Em vez de cada um se assumir aceitando as dores do parto de si mesmo (em processo) deixa-se dominar pelos fantasmas do passado sem reconhecer a realidade das forças próprias e ambientais na sua interdependência e complementaridade. Pior ainda: projecta no outro as próprias deficiências querendo torna-lo a mãe que não teve. Nesta dinâmica, mendigos do amor tornam outros mendigos também. Cada um gira em torno de si mesmo querendo criar os outros à sua imagem e semelhança.

Num processo de desenvolvimento para a maturidade (a nível dos dois) deverá criar-se um espaço para se fazerem as pazes com os “traidores” da infância para que estes não nos atraiçoem no outro. Isto deve ser naturalmente integrado em movimentos consecutivos de ensombramento de si mesmo e de luminosidade do outro e vice-versa; o mesmo se dá de forma inconsciente no ciclo do dia e da noite que pressupõe o reconhecimento da existência dos outros astros na realidade do nós (indivíduos e comunidade). Nesta realidade sentiremos e integraremos em nós não só a desejada acalmia primaveril e veraneia mas também as ventanias outonais que purificarão o nosso ser da folhagem impeditiva da próxima fase de desenvolvimento no sentido do todo.

Na constelação relacional do desenvolvimento também se encontram meteoritos isolados que vivem apenas o sexo à margem do acto criador de interacção. Esta pressupõe amor e este pressupõe a dor, resultada da tensão entre o eu e o outro. A dor é o momento de desequilíbrio que possibilita a evolução. Fugir à dor é negar-se, é negar o outro em si e negar-se a si no outro; não basta procurar, porque o sentido é encontrar-se, encontrar-se como universo a dar à luz. A vida inconsciente, além de viver na fuga e da fuga, luta continuamente com o destino. Falta-lhe a coragem para a felicidade e abdica permanecendo na contradição; esta pode, no máximo, produzir o gozo da fricção mas não a felicidade. Para o egoísta a culpa está nos outros, ele prefere ver a vida passar-lhe ao lado como os vinhateiros atrasados da parábola. Mas também o altruísmo pode ser um egoísmo escondido ou indício dum eu fraco (debilitado). Manter o equilíbrio da balança é a tarefa da vida da pessoa e do universo sempre em movimento.

Eu e tu, os dois somos três a caminho do nós. Eu e tu com o universo numa relação amorosa não dialéctica encontramo-nos num processo de interdependência e afirmação mútua; encontramo-nos todos ao serviço uns dos outros, no seguimento duma força maior: o amor. O momento dialéctico (contradição) é apenas o instante do desequilíbrio num processo maior pendular de desequilíbrio para o equilíbrio, do equilíbrio para o desequilíbrio na realização dum equilíbrio maior. Aqui já não há um com razão e o outro sem ela, agora já não há um perfeito e outro imperfeito, um culpado e o outro inocente. Aqui o intelecto e o coração unem-se para possibilitarem uma visão global integral: a vida toda na própria vida e não uma vida em segunda mão.

Deixa então de haver a autonomia do astro rei e a dependência do satélite para na complementaridade se desenvolver uma nova identidade, a identidade do nós no eu criativo e criador. A felicidade realiza-se em comunidade (Filho pródigo). Somos filhos do amor, fomos feitos de graça para vivermos na graça do amor. Como filhos da terra tornamo-nos no sol da natureza agradecida a abençoar. Resta-nos o agradecimento e a paciência. Somos novos mundos a criar um novo mundo, não podemos prar nem abdicar de nós mesmos nem dos outros.

Para criarmos uma nova maneira de estar no mundo, uma nova maneira de nos relacionarmos  nele e com ele teremos de criar uma nova relação amorosa com o outro na realidade do nós numa dinâmica identitária processual do eu-tu-nós: uma relação já não só de diálogo mas de triálogo, à maneira da incarnação e ressurreição numa relação pessoal trinitária na unidade do eu-tu-nós.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e pedagogo

antoniocunhajusto@googlemail.com

www.antonio-justo.eu

Brasil – País em Ascensão assume Modelos decadentes

Facilitismo ocidental é mau Exemplo para Países no Vigor da sua Juventude

António Justo

“É proibido proibir”,” tudo é relativo!”, “quem manda nos substratos inferiores é a opinião”! Defendem os novos profetas da política, da psicologia e da sociologia, oriundos de povos desenvolvidos mas já virados para o pôr-do-sol da civilização. Nações jovens deixam-se combalir por ideias e práticas de declínio, válidas talvez para civilizações decadentes mas não para nações ou culturas ascendentes à tribuna do desenvolvimento…

Uma rede de elites, a nível internacional, une-se para, do alto do seu mirante, ditar as suas sentenças e impedir o desenvolvimento dos biótopos culturais, tal como fez, na paisagem, uma economia que devastou as florestas naturais. Ao colonialismo económico parece seguir-se o colonialismo cultural. Este parte de areais cerebrais aparentemente anónimos e ávidos de poder! As nações abdicam de si mesmas para estarem atentas aos deuses do Olimpo no seu arrastar das cadeiras. Aqui troveja o deus da sociologia, acolá pontifica o deus da moda, mais além ribomba um deus da universidade com outros deuses da jerarquia. E ao povo, mesmo culto, resta-lhes levantar a cabeça e cacarejar como habitantes dum galinheiro.

Enquanto nações culturalmente conscientes se preocupam em fomentar a qualidade do ensino, observa-se, em certas nações, a tentação de educar para o facilitismo. Em nome duma socialização do ensino, baixam-se os critérios de qualidade e as exigências na maioria dos estabelecimentos de ensino estatal. Por outro lado as classes dominantes, conscientes da importância da qualidade do ensino ministrado inscrevem seus filhos em escolas de qualidade (longe das favelas) ou no ensino privado, vocacionado para a qualidade.

Uma ideologia da igualdade momentânea exige: todo o aluno tem de passar de ano automaticamente, num sistema de ensino indiferenciado. Isto é fraude às classes sociais precárias e menos atentas. Estas só descobrem o dolo e o tempo perdido ao chegarem ao mercado de trabalho.

A divisão do país começa com a divisão da língua!

O MEC (Ministério da Educação e Cultura do Brasil) distribuiu um livro por 4.236 escolas para quase meio milhão de alunos que estabiliza barbaridades do discurso popular falado, como estas: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”, “Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar os livro?”, “nós vai”. Naturalmente que é dever da escola pegar no aluno, com respeito por ele, no estádio onde se encontra, independentemente do nível da linguagem, mais ou menos adequada, por ele usada. É natural que na perspectiva do meio popular a criança ao dizer “nós vai „não comete erro porque seguia o padrão social ambiental. Onde não há ciência não se pode culpar a consciência.

Apesar dos reparos ao livro distribuído, por cientistas da língua, para o MEC, ele corresponde aos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) –normas a serem seguidas por todas as escolas e livros didácticos. O MEC argumenta: “A escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma ‘certa’ de falar, a que parece com a escrita; e o de que a escrita é o espelho da fala”, afirma o texto dos PCNs.

O MEC parece considerar o ensino um acto colonizador sentindo-se mais propenso a incrementar um analfabetismo funcional. A eterna questão entre educar e instruir!

A escola não pode querer a bagunça da língua nem pode esgotar-se no combate ao “preconceito linguístico”. A vida social, com as injustiças sociais a ela inerentes, só se melhora ajudando os alunos a estarem preparados para enfrentarem a vida social e profissional com dignidade. A fonte do “preconceito” está na injustiça da desigualdade de oportunidades e esta começa pela língua. Quem vai para a escola acredita na ascensão social. Também é natural que qualquer variedade da língua se adequa a uma situação. O aluno deve ser especialmente preparado para se desembaraçar nas situações mais exigentes. A má consciência duma sociedade que discrimina à nascença não remedia a situação recorrendo apenas a eufemismos de linguagem. Apenas se desobriga sociológica e psicologicamente. Facto é que o emprego duma linguagem inadequada pode constituir um erro para a vida pretendida.

Sem esforço não se avança. A água não sobe pelos rios. Para subir tem de se “espiritualizar” em vapor. O mesmo se diga duma pessoa, dum povo ou duma cultura. Criar a impressão que o progresso se alcança sem disciplina (regras gerais), sem vontade de subir, sem liberdade criativa é discriminar pela negativa. Para baixo anda a chuva! Pensar faz doer, o ensino pressupõe uma pedagogia desadaptada da sociedade dominante. Doutro modo como aprenderão os alunos, em tempo útil, a “levar a água ao seu moinho”?

Para andarmos na estrada precisamos de regras (código ou regras de trânsito); para circularmos na sociedade precisamos de conhecer as regras da língua (a gramática). Doutro modo passaremos a vida a andar por carreiros ou por estradas camarárias sem termos a possibilidade de entrar nas auto-estradas da vida social.

As elites hodiernas, sem conteúdos nem ideias humanos, optam pelo simplismo. Para oferecerem aos distraídos da vida têm sexo, diversão e opinião! Isto é de graça para todos; o poder e o melhor pão, esses são para os que se empenharam na sua formação.

No mundo da opinião toda a gente tem razão. Só que a língua é anterior à filosofia e para se” ter razão” não chega a opinião, é precisa a razão que advém da sua fundamentação. No mundo do dogma da verdade da opinião preparam-se as pessoas a ter opinião sem razão e assim a aceitarem a opinião sem destrinça. Nisto está interessado um globalismo que pretende reservar para poucos a capacidade de pensar e vê na formação séria da maioria um impedimento às suas arbitrariedades. Manter um povo na incapacidade de se expressar é o melhor pressuposto para uma ditadura consistente e para impedir a concorrência de possíveis competidores treinados.

A defesa e empenhamento pelo proletariado não podem abdicar da qualidade; não chega o „para quem é, bacalhau basta”.

O Homem define-se e desenvolve-se pela Língua

Na capacidade de diferenciações dentro duma língua, podemos observar a maior ou menor capacidade de expressão dum povo. Ela é como que a sua matriz e dá testemunho do seu maior ou menor grau de desenvolvimento intelectual.

A língua é ao mesmo tempo a minha casa e a minha Ágora. Ela é não só abrigo mas também expressão de relação. Para se abrigar, tanto chega uma palhota, uma favela, como um palácio. Como vivemos num mundo do “homo homini lupus” temos porém que preparar o aluno/a com instrumentos adequados. Antigamente dizia-se: “pela aragem se vê quem vai na carruagem”.

Um espírito decadente e uma proletarização da cultura estão cada vez mais na moda.

Quem defende a proletarização da língua, ao orientar-se por um padrão minimalista e miserabilista, atraiçoa o interesse do proletariado. Este tem de exercitar o seu intelecto e aprender formas mais complicadas de entender uma realidade complexa. A cúpula da pirâmide não desce à base proletária; esta é que tem de se preparar e consciencializar da subida. “Para cima só os anjos ajudam; para baixo todos os diabos empurram!”

Em geral reconhece-se que a matemática e o latim são grandes meios auxiliares de estruturação do cérebro e do pensamento.

O ensino sério duma gramática coerente é certamente o primeiro instrumento de organização e ordenação mental que não deve ser recusado ao povo, seja ele o mais pobre e alheio à cultura oficial! Regras não inibem a criatividade. São pelo contrário o seu pressuposto. A criatividade ordena o caos. Pressupõe inteligência e esforço!

Um país que ainda não atingiu o apogeu do seu desenvolvimento não se pode deixar orientar pelo relativismo decadente vigente nos povos ocidentais interessados em não caírem sozinhos.

Um país como o Brasil, para assumir a liderança do continente sul-americano tem que arrogar-se responsabilidade apostando sobretudo na formação do povo. O relativismo decadente assumido em política de língua pode ser um sinal de que o Brasil não se quer preparar para assumir tal posição! O país não se pode perder em repetir experiências de povos decadentes. Deve ter a coragem de errar por si para aprender; tem de crer para poder!

” Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece”, Nietzsche (citado em JORNAL DE OLEIROS).

Boa noite Brasil!

António da Cunha Duarte Justo

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