O POPULISMO DE CIMA E O POPULISMO DE BAIXO
Por António Justo
Está em moda criticar-se irreflectidamente o populismo, ignorando que vivemos em democracia, como se o povo fosse algo a desprezar ou como se alguém fosse o senhor da verdade e dos interesses a defender e a transmitir ao povo. Na última campanha eleitoral dos USA tivemos a actuar em palco, em termos de igualdade, o populismo de cima expresso em Clinton e o populismo de baixo representado em Trump.
Na arena pública da democracia temos a classe dominante com um tipo de discurso: o discurso do politicamente correcto (o populismo erudito, o populismo dos de cima) que implica uma certa restrição da liberdade de expressão e defende mais os interesses da sua classe, apresentando-os como os interesses do “povo”; temos, por outro lado o discurso mais simplificado (o populismo vulgar, o populismo de baixo) que diz pretender defender os interesses do “povo”.
Em democracia tudo é povo pelo que não fica bem que a classe dominante se reserve para ela o direito da interpretação e da opinião correcta em questões da coisa pública. Já cheira a esturro, o facto de em quase toda a Comunicação Social europeia dominante (do politicamente correcto) serem uníssona em criar preconceitos contra subculturas políticas rivais, como se os pretensos preconceitos dos que representam os interesses dos de baixo não tivessem nada a ver com os preconceitos e os interesses da camada dos de cima.
O populismo vulgar tem porém um aspecto positivo que o populismo erudito não tem: consegue apresentar assuntos complexos de forma compreensível para a generalidade da população; coisa que os políticos e os meios de comunicação social não conseguem! A esta forma de expressão simplificada poder-se-ia denomina-la de populismo de baixo ou populismo vulgar (a maneira de ver do cidadão em geral).
É também moda dizer-se na Comunicação Social que o populismo vulgar reage por medo. Esta é uma conclusão apressada e generalista, dado confundir “grande preocupação” com “medo”. Enfim, o que temos em democracia são grupos de interesses onde a orientação pelo bem-comum, por todo o povo, seja ele mais alto ou mais baixo, parece estar ausente!
É da natureza da comunicação publicada haver muitas formas de discurso, na defesa de interesses organizados, que geralmente se usam do populismo (erudito ou vulgar) de esquerda e de direita.
Na polis, a luta pelos votos é cada vez mais renhida e brutal porque os grupos de interesses que ganham têm muito a ganhar e os grupos de interesse que perdem têm mesmo muito a perder: e isto acontece porque, na realidade, mais que o interesse do bem-comum está em jogo os interesses dos grupos rivais; assim, cada grupo procura defender a sua ideologia e os seus interesses com o mau princípio de que os fins justificam os meios e na esperança de que o povo pense que é defendido e não note o que verdadeiramente está em jogo: poder e influência, ceder o mínimo e receber o máximo.
O espírito da época (Zeitgeist) e o pensar politicamente correcto são a forma mais populista que há. Este populismo engravatado é publicitado automaticamente como pensamento correcto e é, geralmente, encenado pelos regimes políticos dirigentes e pelos que beneficiam mais do sistema.
A pressão do Zeitgeist e do pensar correcto é tão forte que leva muitíssimas das pessoas a trazerem em público a tesoura da censura na própria cabeça, uma instância que limita a criatividade e a liberdade de expressão, porque a autocensura age sob o medo de provocar reacções inesperadas. Esta censura interior e inconsciente corta com tudo o que possa contrariar a corrente porque se orienta pela oportunidade do conveniente. Esta forma de populismo fino é comum em todas as Eras da história e é comum a todos os regimes e ideologias.
O populismo vulgar é mais próprio dos tempos de crise política, cultural ou social. Não interessa a defesa do politicamente correcto (ideologia da classe dominante), do politicamente incorrecto nem tão-pouco do espírito conspirativo de um lado ou do outro, o que interessa é que no emaranhado dos interesses em debate, em primeiro plano, esteja a preocupação da defesa do Bem-comum no reconhecimento da complementaridade que leva ao compromisso e não a defesa de interesses de uns contra os outros, porque nesta dinâmica ganha geralmente o mais forte e é fomentado o fanatismo ideológico.
O conceito de povo, e de estado democrático como forma de representação de interesses, implica a inclusão e não a exclusão e uma forma de discurso com regras mas que não impeçam a criatividade. A dominância de grupos pode ser legítima no respeito pelas minorias. William Shakespeare já então constatava: “A tragédia deste tempo é que os loucos conduzem os cegos.”
O Homem, o cidadão, é o ser soberano, mesmo em relação à mais alta instituição; quer se encontre em cima ou em baixo, tem todo a mesma dignidade, como defende o cristianismo! “O Estado é a obra mais nobre do Homem mas o Homem é a obra mais nobre de Deus”, reconhecia já em 1793 o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Espírito no Tempo,