Comissão sinodal permanente pretendia o Primado político sobre o espiritual
O Vaticano dirigiu uma carta dura (16.02) à Conferência Episcopal Alemã impedindo os bispos da criação de uma Comissão Sinodal permanente. Este seria um órgão supremo de governo das dioceses alemãs. Nele bispos e leigos teriam paridade de voto; na prática a Comissão permanente sobrepunha-se ao múnus episcopal e desta forma anulava a função petrina declarada no Evangelho. Indiretamente corresponderia à institucionalização de uma igreja nacional que levava a Igreja Universal a um Beco sem Saída ou a criar-se um cisma.
A votação dos estatutos estava prevista para a conferência episcopal reunida de 19 a 22.02 em Augsburgo. Após a intervenção vaticana aquele ponto foi retirado da ordem de trabalhos. Para Dom Georg Bätzing, presidente da Conferência Episcopal, a proibição expressa pela instrução da Santa Sé foi, no dizer dele, “um soco no estômago” obrigando-o a tirar da agenda o ponto relativo ao Conselho Sinodal!
Com a criação de uma comissão sinodal nacional alemã, que transformaria a função dos bispos em executores das determinações daquele órgão, seria introduzido na Igreja Católica o processo de sua protestantização pela porta do cavalo! À pressa e sem esperar pela reunião da Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos bispos em Roma no mês de outubro de 2024, a Conferência episcopal alemã queria antepor-se a Roma. No caso será de dizer “Roma locuta causa finita”! Uma Alemanha, que está mais focada na mente do que no coração, queria aproveitar a oportunidade de influenciar melhor o mundo através de processos rápidos. No cristianismo, o protestantismo está mais focado na mente – uma característica de caracter mais nórdica – e o catolicismo está mais focado no coração (atitude) – uma característica mais acentuada no Sul! Numa época em que o sul global se encontra em desenvolvimento corresponderia a uma falta de visão continuar a afirmar o racionalismo nórdico como a única forma de orientação.
O movimento reformista pretendia introduzir decisões que estavam fora do direito canónico, de modo a que a igreja local (alemã) tomaria decisões determinantes do próximo encontro do mundo católico em Roma. Tal antecipação viria criar divisões desnecessárias nas decisões a tomar no sínodo mundial em novembro. Então haverá posições importantes a decidir como o diaconado para mulheres com um clero de caracter misto, segundo consta de pessoas próximas ao Pontífice Francisco. É melhor um pássaro na mão do que dois a voar!
Mesmo em termos progressistas esta medida corresponderia a colocar o carro à frente dos bois porque o primeiro passo normal seria a liberalização do celibato e a criação do diaconado para mulheres e, assim, incluir as mulheres no clero.
Seguir à risca o caminho sinodal alemão, com o seu objetivo de estabelecer um “Conselho Sinodal” como alternativa à conferência episcopal da igreja católica na Alemanha, significaria uma rotura substancial na estrutura orgânica institucional da igreja global porque colocaria um grupo acima dos bispos, muito embora com os bispos (vinculando as suas decisões a um grupo formal); deste modo se criaria uma igreja paralela como já foi o caso do protestantismo alemão do século XVI e que levaria a mais uma rotura dentro da Igreja provocada pelo pensar alemão sobre o pensar e sentir latino e à margem da missão espiritual do Evangelho. O sector político-social democrático queria aqui impor-se sobre o caracter da comunidade de fé, e provocar assim o abandono da teologia e da tradição para se dar uma sujeição à sociologia e a um espírito do tempo que passam como outros anteriores passaram (dados estatísticos sobre a convicção e vivência individual). Este seria um passo de subjugação ao secularismo quando hoje mais que nunca se precisa do discernimento para poder dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.
A Igreja católica é universal e grande modelo até para as estruturas políticas a nível global. Também por isso, a Igreja e a sociedade devem distanciar-se da absolutização do racionalismo ocidental para se tornarem abertas a visões mentais não científicas e a mundivisões de outras civilizações de caracter menos racionalistas. Essa fixação exige comportamento autoritário e desumano. Também deveria ser permitido não questionar tudo de acordo com as regras geralmente aplicáveis (aqui a esquerda teria bastante para recuperar!). Isso abre a oportunidade de adquirir conhecimento e a capacidade de ver e discutir além das fronteiras disciplinares ou de sistemas.
A criação de um Comité Sinodal nesta forma alemã tornar-se-ia num assunto demasiado sério em termos de doutrina! O tema celibato e a clericalização de mulheres são temas marginais em termos de doutrina eclesial se os compararmos ao do Comité Sinodal.
Nota-se a tendência para, no sentido socialista marxista, se acabar com o conceito de comunidade espiritual cristã e substituí-lo pelo conceito coletivo secular, a caminho de uma sociologia sem teologia! Os problemas sérios que hoje se manifestam entre bispos católicos alemães e o Vaticano são uma amostra em ponto pequeno da luta cultural em que nos encontramos hoje no mundo secular de maneira sub-reptícia a nível político de luta entre civilizações e ideologicamente entre socialismo e capitalismo.
Não seria católico identificar sinodalidade com democracia dado o Conselho Sinodal ficar então reduzido a um processo de luta de interesses ou de processos burocráticos (segundo o modelo legislativo secular) com poder de ordenar também em questões de fé.
Deixar-se-ia de compreender a função da teologia e o envolvimento teológico-sociológico na sociedade e na Igreja. O diálogo e a discussão teológica ao longo dos tempos, foram as melhores formas de possibilitar a integração dos sinais dos tempos na pastoral sem perder o caracter individual da fé enquanto a nova criação se revela como um nascimento de cabeça submetendo o magistério da igreja a ordens e orientações de caracter administrativo e sociológico, à margem da espiritualidade, da fé e da moral.
Dar-se-ia a subjugação do múnus divino ou o plano da missão da mensagem evangélica ao múnus humano (plano de caracter democrático secular). Cristo e o Espírito Santo são os constitutivos e não as visões profanas que vao aparecendo no decorrer do tempo. O Comité sinodal, seria uma contradição porque como bem resume o cardeal Gerhard Ludwig Müller “não pode em princípio anular o ofício sacramental do bispo, os presbíteros/sacerdotes e os diáconos”. De facto, a igreja eclesial universal não pode ser sujeita a visões regionais ou ao politicamente correcto, nem tão pouco ao “sexismo ateu, ao sexualismo, ao pensamento «woke», ao transumanismo ou à religião climática apocalíptica”, como adianta o cardeal conservador.
O “comité sinodal” coloca exigências contra a unidade da Igreja fundada por Pedro. A sua institucionalização teria como consequência uma divisão do catolicismo na própria Alemanha entre uma elite de obediência mais modernista que espiritual – uma igreja de funcionários e activistas – e uma grande maioria dos católicos alemães interessada na espiritualidade católica; tal criação corresponderia a uma luta cultural interna no seguimento de Lutero com a consequência de assistirmos então a uma secularização sem teologia. O fundamento da Igreja é espiritual e um sistema político, a sociologia e a psicologia não podem, como pretende o espírito marxista acabar com a espiritualidade e com a teologia. A mensagem evangélica não pode ser submetida a dados meramente sociológicos
A igreja oficial alemã – em regime económico de simonia – não pode pretender ser modelo para outros povos porque a nível institucional sofre de funcionalismo e de uma atitude demasiadamente abstrata.
Também não é de estranhar que isto aconteça numa Alemanha onde um bispo com um ordenado de “funcionário “de 11.000 a 13.000 Euros mensais possa ser levado a um estilo de vida demasiadamente comprometida com a política e com o espírito do tempo.
Ainda recordo com tristeza a imagem do cristianismo dada pela atitude do Cardeal Max de Munique aquando de um encontro com representantes muçulmanos no Médio Oriente tirou a cruz do seu peito para não ferir suscetibilidades muçulmanas.
A impressão que tenho dos muitos anos de vida na Alemanha e da admiração pela cultura alemã é um misto de tristeza e de resignação ao ter de constatar que a própria Igreja católica alemã sofre e vive dentro dela a luta iniciada por Lutero e que corresponde a uma luta entre o espírito germânico e o espírito latino e na tendência a uma luta entre marxismo e cristianismo. O triste da situação é o facto de o secularismo se afirmar no sentido marxista e servir-se até de um ressentimento protestante contra o que é romano-católico quando as duas igrejas nas suas diferentes maneiras de estar constituem uma expressão certamente enriquecedora do mundo cristão!
O caminho sinodal perderia o seu significado e sentido se levasse a Igreja a um beco sem saída porque falha o aspecto da missão Petrina da Igreja e afirma o aspecto orgânico sobre o espiritual!
Membros da Comissão Sinodal não bispos expressaram a sua oposição à intervenção de Roma e pretendem que os bispos enfrentem Roma de maneira a se tornar um conflito aberto entre a Conferência Episcopal Alemã e o Vaticano e isto em nome de uma cumplicidade recíproca dado muitos bispos serem pelo curso reformista. Esta estratégia já foi seguida por Lutero contra Roma quando Lutero sabendo ser apoiado por parte da nobreza alemã e do povo que pagava o contributo para Roma; hoje os reformistas radicais sabem-se apoiados pelo espírito do tempo e por um engarrafamento de reformas. Também o Comité Central dos Católicos Alemães (ZdK) financiado pelas dioceses alemãs (que recebeu 2,522 milhões de euros em 2020 (2) se mostra descontente com a proibição de Roma.
Na Alemanha chega-se a ter a impressão que na verdade “o dinheiro governa o mundo” e este espírito parece dominar cada vez mais principalmente o mundo anglo-americano.
A lealdade devida à mudança deve também implicar lealdade à fé e à Igreja. E comprometer-se com uma igreja com futuro não significa apenas a afirmação da crença em valores abstratos apresentados e representados por um grupo formal.
O argumento apresentado de que “não há credibilidade para os valores fundamentais que a Igreja defende” não se resolve só com medidas burocráticas ou de adaptação à expressão momentânea da sociedade, pois a acção do clero e dos leigos transcende a ordem político-democrática.
É preciso mesmo remodelar algumas coisas dentro da Igreja, mas dentro do evangelho e da fé. O catolicismo alemão marcado por uma cultura democrática tem de entender os limites que também a democracia tem e o erro que pode ser seguir votos maioritários.
A Alemanha não precisa de mais um grémio sinodal, dado já possuir o ZdK que reúne agremiações católicas de toda a Alemanha.
Representantes do Conselho Sinodal têm medo de serem marginalizados e por isso procuram ganhar os bispos alemães e o ZdK para a sua causa. Em questões doutrinais não se deve tratar apenas de um acto mental de convencer uns ou outros ou de coacções como é normal em política. A convicção de que o evangelho continuará sempre a ser convincente não justifica a tentativa de desmontar a estrutura católica porque dentro dela há a possibilidade de agrupamentos de espiritualidades variadas e específicas.
O projecto alemão tem também inspirações ricas para a pastoral, necessita, porém, de uma atitude construtiva e em consonância com a fé católica e com a Igreja global. Os alemães tomaram a sinodalidade demasiado a sério ordenando-a na perspectiva de baixo para cima mas isso nem em democracia é possível.
A frase apresentada como argumento de que os bispos devem ser guiados pela lealdade aos crentes, revela uma compreensão estranha e meramente mental política do cristianismo já fora da sua atitude individual espiritual como se tratasse de uma comunidade de votantes!
A intervenção da Santa Sé não pode ser reduzida a uma interposição de caracter jurídico ou burocrático pois a preocupação base do que está em causa é a fé e o magistério da Igreja. A fé é o substrato que deveria ser comum para possibilitar um diálogo argumentativo de caracter mais pastoral sem questionar fundamentalmente a jerarquia eclesial. Doutro modo cria-se um poder estrutural ao lado do outro e em que se coloca o primado político sobre o espiritual. O diálogo com os críticos não significa igualar as posições à margem de um diálogo de crentes e como tal sem diferenciação de competências a nível de decisão numa mesma responsabilidade compartida. Precisa-se de um Caminho Sinodal da igreja que no espírito do evangelho se escute a si mesma antes de escutar o apelo do mundo.
Também Jesus foi tentado no deserto pela voz do mundo, mas não se deixou levar pela sedução do abuso do próprio poder, nem da sua proximidade com o poder político nem da elite intelectual (escribas e fariseus).
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
Pegadas do Tempo
(1) Carta do Vaticano de 16.02.2024 ao bispado alemão : https://www.domradio.de/glossar/brief-aus-dem-vatikan-die-deutsche-bischofskonferenz
https://www.synod.va/content/dam/synod/news/2023-12-12_towards-2024/POR_Documento_ATE-OUTUBRE-DE-2024_XVI_II-Sessao.pdf
“A aprovação dos estatutos da Comissão Sinodal seria, portanto, contrária à instrução da Santa Sé emitida por mandato especial do Santo Padre e representaria, mais uma vez, um facto consumado”. A Igreja na Alemanha não estava autorizada a estabelecer um órgão de governo conjunto composto por membros leigos e clérigos. A Comissão Sinodal seria, portanto, contrária à instrução da Santa Sé. De 19 a 22 de fevereiro, será realizada em Augsburg a Assembleia Geral da Conferência Episcopal Alemã (DBK), na qual serão votados os estatutos da Comissão Sinodal. (1) O parágrafo 5 da referida resolução oficial define o Conselho Sinodal como um “órgão consultivo e de decisão” que aconselha “sobre acontecimentos significativos na Igreja e na sociedade” e “nesta base toma decisões fundamentais de importância supradiocesana sobre planeamento pastoral, questões futuras da Igreja e questões financeiras e orçamentais da Igreja que não são decididas a nível diocesano…
Advertência vaticana em 2023: https://www.domradio.de/glossar/brief-aus-dem-vatikan-die-deutsche-bischofskonferenz
(2) A assembleia geral do Comitê Central dos Católicos Alemães (ZdK) tem cerca de 230 membros. 97 membros são eleitos pela Associação de Organizações Católicas na Alemanha (AGKOD), 84 membros vêm dos conselhos diocesanos e 45 membros são eleitos individualmente.