CONCÍLIO DO GALINHEIRO DOURADO

Uma Fábula geopolítica sobre a Farsa da Ambição no Ninho da Águia e no Galinheiro Dourado

No alto do Monte Olimpo de Bruxelas, onde o nevoeiro é feito de diretivas e o trovão do discurso político ecoa nos salões de mármore, os deuses menores agitavam-se. A notícia chegara como um raio: a grande Águia-de-cabeça-branca, do outro lado do oceano, mudara de humor. O seu piar, outrora beligerante e estridente, agora papagueava palavras estranhas: “paz”, “negociação”, “fim de hostilidades”.

Isto deixou os deuses do Olimpo em desarmonia total. Durante luas, tinham dançado ao ritmo guerreiro da Águia, martelando armas no seu Monte em vez de pão, tecendo para o povo narrativas de demónios e heróis com o ouro que lhes era enviado. O Galo Gaulês, vaidoso e orgulhoso, e a Águia Negra Federal, pragmática e calculista, haviam-se convencido de que a sua sobrevivência dependia daquela guerra distante, na grande planície do Urso Pardo. Nesse sentido camuflaram os seus interesses com os desígnios da Cegonha (1) que sempre acompanhavam e controlavam.

A mudança da Águia-branca forçou a convocação de um concílio. Mas não no grande salão do Olimpo, onde todos os estados-deuses tinham assento. Não. Foi num anexo reluzente, um Galinheiro Dourado, que a Deusa dos Protocolos, uma figura etérea de suave cinzento e gravata invisível, a tal que substituíra o acomodado Lobo Ibérico do Gerês na condução dos destinos comuns, reuniu os escolhidos.

Estavam lá, entre outros, o Galo Gaulês e a Águia Negra, como é claro. O Leão Britânico, já fora da cerca do galinheiro, mas ainda a rugir à porta, observava. Mas, a final de contas,  onde estava o Veadinho Vermelho, que sempre alertara para a insensatez do conflito? Onde estava a Águia-rabalva, feroz e diretamente na linha de fogo? E que era feito do Lince Romeno, guardião de outra fronteira? Foram deixados do lado de fora, a cacarejar a sua inquietação de ignorados. O concílio não era para vozes dissonantes, era para consolidar a narrativa.

A missão era clara: voarem juntos até ao novo ninho da Águia-branca e convencê-la, com ar de subserviência, mas punhos cerrados de determinação, a não abandonar a guerra. A Deusa dos Protocolos lideraria a comitiva. O Lobo Ibérico do Gerês, que representava a vontade coletiva de todos os deuses do galinheiro, foi convenientemente esquecido. Aquele não era um assunto de vontade coletiva, era um assunto de interesse coletivo, mas apenas daqueles que se julgavam colectivamente donos do colectivo.

A cena no novo ninho da Águia-branca foi de um ridículo sublime. Lá estavam eles, o Galo e a Águia Negra, plumagens bem penteadas, rodeando o trono da grande Águia-branca, que os observava com um ar entre o enfastiado e o divertido. Pareciam pintos ansiosos por migalhas de aprovação, cacarejando em uníssono a velha cantiga: “O Urso é um demónio, a guerra é necessária, não podemos fraquejar”.

A Águia-branca ouviu, bicou algumas sementes, e piou algo vago sobre “paz através da força”e “razões económicas”. Eles regressaram ao Olimpo, pavoneando-se como se tivessem obtido uma vitória colossal. Mas nos seus olhos lia-se o vazio de quem sabe que se humilhou por uma migalha de relevância.

Enquanto isto se dava, nas planícies da Ucrânia, os verdadeiros animais, os homens, continuavam a ser alimento para a terra, que já não acreditava em deuses de Bruxelas ou de Washington. O Urso Pardo, longe de ser o demónio desenhado nos mosaicos do Olimpo, estava sentado à sua mesa, pacientemente, oferecendo garantias que ninguém no Galinheiro Dourado queria ouvir. Porque ouvir significaria negociar, e negociar significaria admitir que a realidade não era o conto de fadas heroico que tinham vendido aos seus povos.

A grande farsa foi revelada. A União, que poderia ter sido uma fénix a renascer das cinzas da sua própria dependência, escolheu ser um papagaio, repetindo slogans gastos de um mestre que já nem os acreditava. Apostaram tudo no “tudo ou nada” e, no fim, quem tudo arrisca, tudo perde. E a factura, como sempre, estava a ser paga nos campos de trigo encharcados de sangue, longe do mármore limpo do Monte Olimpo.

O verdadeiro desafio nunca foi o Urso, nem a Águia volúvel. O desafio sempre foi olharem-se ao espelho e verem, não os deuses benevolentes que julgavam ser, mas apenas galos e águias menores, presos no seu próprio galinheiro dourado, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem. (Interpretação do conto em nota 2)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Esta fábula geopolítica usa como símbolos e alegorias os animais: Águia-de-cabeça-branca (Estados Unidos), Cegonha (Ucrânia), Urso-pardo (Rússia), águia negra ou federal (Alemanha), o galo gaulês (França), o Leão (Inglaterra), Veado-vermelho (Hungria), Águia-rabalva (Polónia), Lince (Roménia), Lobo-italiano (Itália). O lobo ibérico do Gerês (António Costa presidente do Conselho Europeu, dos Estados-membros, ausente). A Deusa dos Protocolos ( Von der Leyen – Presidente da Comissão,  apenas representante dos comissários).

(2) O “Galinheiro Dourado” representa a Comissão Europeia (Von der Leyen) e o eixo Franco-Alemão. É “dourado” por fora (a ideia de Europa) mas é um “galinheiro” por dentro (desorganização, cacarejo, hierarquias rígidas). A exclusão dos países vizinhos da Rússia e da Ucrânia (Veadinho, Águia-rabalva, Lince) reflete a sua queixa sobre a reunião real.

A Mudança da Águia-de-cabeça-branca (EUA/Trump) é o catalisador da história. Mostra a dependência europeia e a sua incapacidade de ter uma política externa independente e estratégica.

A “Deusa dos Protocolos” (Von der Leyen) é uma crítica direta à sua presença inadequada na reunião com Trump, em detrimento de quem realmente representa os estados (Costa, como Lobo Ibérico). Ela é “etérea”, não eleita diretamente, e impõe protocolos que servem a uns e ignoram outros.

Humilhação e a Subserviência: A cena em que se humilham perante Trump é central, mostrando a contradição entre o ódio que professam e a submissão que praticam.

O Urso Pardo (Rússia/Putin) é aqui retratado não como um demónio, mas como um actor pragmático e paciente, contrastando com a histeria e a narrativa fabricada do Olimpo. Isto reflecte a ideia de que a Rússia está aberta a negociações e que a demonização é uma estratégia.

O conto culmina na ideia de que a UE está a escorregar na sua própria miragem, presa numa narrativa infantilizada que a impede de ver o mundo real e de agir pelos seus genuínos interesses de paz e prosperidade com a sua vizinhança euro-asiática.

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O MAL-ESTAR DA MODERNIDADE: DA SOLIDÃO EXISTENCIAL AO “CANCRO SOCIAL”

A Revolta das Partes contra o Todo orgânico

Vivemos na era da híper-conexão, dos fluxos de informação infinitos e de um progresso material sem precedentes. No entanto, um paradoxo angustiante define os nossos tempos: nunca estivemos tão conectados e, simultaneamente, tão divididos e profundamente sós. Esta solidão não é apenas a carência de companhia; é uma solidão de si mesmo, um divórcio interno do ser humano face à sua própria essência.

Este fenómeno não é um acidente, mas sim o sintoma de um processo de despersonalização em marcha, cujas raízes se aprofundam no solo do século XX. A combinação de forças anónimas, mercados globais, algoritmos omnipresentes, burocracias impessoais, com um desvio filosófico que, em algumas das suas correntes, abraçou o niilismo, esvaziou o indivíduo de uma identidade sólida. Sem uma identidade individual claramente definida e valorizada, torna-se impossível construir uma identidade social ou cultural coesa. A sociedade arrisca-se a transformar-se num amontoado de elementos desconexos, sem uma ordem intrínseca que os ligue organicamente e lhes dê um rosto coletivo.

As instituições tradicionais (a família alargada, a comunidade local, as associações de solidariedade) que outrora forneciam enquadramento, significado e pertença, veem o seu valor e significado em processo rápido de erosão. Por seu lado, o indivíduo é cada vez mais atomizado, reduzido à sua circunstância imediata e a um individualismo estéril. Esta solidão hiperbólica manifesta-se mesmo no meio da multidão, mascarada pelo ruído ensurdecedor das ofertas da sociedade de consumo, que promete preencher um vazio que, paradoxalmente, ajuda a minar.

O sofrimento e o desencanto coletivos aumentam a um ponto crítico, onde a sociedade em si se torna clinicamente doente. A este propósito, torna-se oportuna uma metáfora de doença individual e da doença psíquica social: o aparecimento do cancro como «solução e desculpa». O cancro é, na sua essência biológica, uma mutação genética resultante de um descontrolo celular, uma revolta das partes contra o todo orgânico. Não será esta uma imagem perfeita do que acontece a nível de consciência social? As mutações individuais e sociais, a perda de valores partilhados, a desagregação do laço social, resultam de uma consciência individual e coletiva descontrolada, que, focada apenas no eu imediato e no prazer funcional, conduz à autodestruição do organismo social. Cada época tem, de facto, as suas doenças e os seus estados de alma, e a nossa tem a da patologia da desconexão (desligação individual e social que cede o lugar a uma conexão exterior virtual que tudo amarra).

Os sintomas desta doença são estranhos e reveladores. A solidão leva a que o afecto seja canalizado para substitutos, como o «casamento» com animais de estimação, relação que, sendo genuína no afecto, é funcionalmente imune às complexidades do compromisso humano. Na política, o oportunismo segue agendas exteriores ou ditadas por sondagens e estatísticas sociológicas, e não por princípios ou visões de futuro, num ajustamento virtual às massas, e não uma liderança baseada na relação humana autêntica nem numa sociedade consciente do seu sentido.

O caso extremo, mas sintomático, dos mais de 4.000 «casamentos tecnológicos» no Japão, onde pessoas casam com personagens de realidade virtual, é o indício mais claro deste devir. Não é uma excentricidade, mas um sinal de alarme: o ajustamento das relações humanas está a ser substituído por um ajustamento virtual, baseado em satisfações imediatas, controláveis e de essência meramente funcional.

Perante este diagnóstico sombrio, somos chamados a uma reflexão urgente. Não se trata de um regresso romântico a um passado idealizado, mas de uma pausa consciente para repensar a pessoa e a sociedade. Há que resgatar e reavaliar os «ensinamentos perenes» que o desenvolvimento humano nos foi proporcionando ao longo de milénios: a dignidade da pessoa, a importância da comunidade, o valor do sacrifício pelo outro, a busca de significado que transcende o material, a força do amor e da vulnerabilidade partilhada.

O desenvolvimento do poder tecnológico e virtual não é inerentemente mau; é uma ferramenta poderosa e útil. No entanto, ameaça destruir o humano se for este a servir a tecnologia, e não o contrário. O risco final é que o humano perca aquilo que o define: a personalidade, a razão, que se torna mero cálculo, e o sentimento, que se torna mera emoção superficial.

A pergunta que se coloca à nossa sociedade, chamada a ser cada vez mais humana e feliz, é crua: teremos a coragem de desligar o ruído, de nos reencontrarmos connosco próprios e, a partir desse centro repensado, reconstruir relações autênticas que curem a nossa solidão existencial? Ou continuaremos a preferir o matrimónio silencioso com as máquinas, confortáveis e previsíveis, mas incapazes de nos devolver o rosto que estamos a perder?

A cura começa com o diagnóstico e com a recusa coletiva em aceitar a autodestruição como preço inevitável do progresso.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e pedagogo

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QUEIXA EXISTÊNCIAL DE UMA SOCIEDADE INCERTA

(Parto do Abismo nas Sombras do Modernismo)

 

Não é o grito agudo, claro, definido,

É um quebrar de ânforas no silêncio,

Um tumulto surdo, um ruído

De um mundo grávido de um tempo sem senso.

 

A sociedade, uma madre em contrações desencontradas,

Arqueja sob a pressão de um feto de névoa,

Não pare um futuro, mas dores emprestadas,

Um parto de sombras que a si mesma nega.

 

Qual é a queixa da alma coletiva, sem causa aparente?

É a náusea do vazio, o luto por um Deus que não morreu,

Mas que se perdeu na torrente

De um amanhã que se prometeu… e não nasceu.

 

São dores de parto de um ser ainda informe,

Uma gestação de ferro, fogo e algoritmo,

O útero do tempo à beira de um deforme

Nascido que não é neto, nem é legítimo.

 

A placenta é de écran, o cordão é de fibra ótica,

A luz que nos guia é um fluxo de ansiedade.

A nova maneira de ser, criança caótica,

Não traz o leite quente da humanidade.

 

Traz o frio do silício, a promessa de um paraíso estéril,

O abraço de um algoritmo, vasto e distante.

É um parto criativo, sim, mas de um ser tão sério

Que confunde a sua alma com um software errante.

 

Por isso a queixa ecoa, cega e obstinada,

Não contra a fome ou a guerra, males de outrora,

Mas contra esta angústia mal desenhada,

Este vazio que à mesa se senta e devora.

 

É o luto pelo Homem que fomos, a agonia

Do rosto que se dissolve no pão da existência.

A nova maneira de estar não é um novo dia,

É a noite iluminada pela própria ausência.

 

E no entanto… há a centelha, a dor que é génese,

Neste abortar de mundos, há um verbo ténue a crescer.

A própria sombra que nos cobre talvez nos revele

Que só criando o abismo o podemos vencer.

 

A queixa é o primeiro hino deste estranho nascimento,

O útero do caos é criativo, ainda que cruel.

Talvez da noite do não-sentido, brilhe um firmamento

Onde a alma, finalmente, encontre o seu papel.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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HINO À CONCEIÇÃO FERIDA, MAS LIBERTA

(Em Honra das “Conceições” que rompem o Silêncio)

Não do granito ou do bronze se faz este monumento,
Mas da matéria frágil e eterna da memória,
Da coragem que arranca, com o próprio sofrimento,
A erva daninha do segredo e da falsa glória.

Falas de uma criança que a inocência lhe foi roubada,
Em um tempo de véus, de silêncios cúmplices e pesados,
Onde a culpa, à rédea solta, andava disfarçada
Em temores rezados, em dogmas mal-usados.

Mas da semente podre, enterrada na escuridão,
Brota, por fim, um caule de luz, tortuoso e santo,
É a voz que se liberta da própria perdição,
É a lança que transpassa o mais espesso manto.

Aos catorze anos, a consciência, ferida bruta,
Um desgosto de morte, um abismo por dentro.
A alma, uma paisagem absoluta e dissoluta,
Onde até Deus parece ter-se ausentado no centro.

Mas eis o acto sagrado, o milagre mais puro:
Não a revolta estéril que consome e queixa,
Mas a paz que se tece sobre o antigo muro,
O perdão que não absolve, mas que liberta e deixa.

A dor não parte, faz-se cicatriz, geografia,
Mapa de um naufrágio que a alma sobreviveu.
Já não é ferida aberta, é sabedoria,
É o preço que se pagou por ser Luz que nasceu.

E assim, Conceição, tua voz, suave e forte,
É o hino das almas que quebraram a algema.
Não cantas a dor, cantas a sorte
De teres encontrado, em ti, o supremo sistema.

 

Cada testemunho é um raio a rasgar a noite,
É um “não” que ecoa nos porões da humanidade.
É a recusa da corrente, o fim do aperto,
É a verdadeira: na própria dignidade.

Por isso, esta poesia é uma vela acesa,
Em honra da criança ferida, da adulta sábia.
A tua libertação é uma nobre empresa
Um canto de guerra contra a mais torpe mentira.

Hoje, não és a que calou. És a que fala.
E ao falares, quebras os ferrolhos do medo preso.
A tua luz, sobre a podridão, se aviva e se iguala
À coragem dos santos, dos justos, dos verdadeiros íntegros.

E nada, jamais, apagará esta chama.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O ESCÂNDALO DO ABUSO SEXUAL INFANTIL NA ALEMANHA E EM PORTUGAL

A Invisibilidade que dói: 16.354 Casos na Alemanha e 1.041 em Portugal

Os números vindos da Alemanha são alarmantes: em 2024, mais de 16 mil crianças foram oficialmente registadas como vítimas de violência sexual. São estatísticas frias que escondem dramas quentes e insuportáveis. Três quartos destas vítimas tinham menos de 13 anos, a maioria meninas, enquanto os suspeitos são sobretudo homens: 95%. Os dados oficiais são a ponta do icebergue. O abuso sexual infantil vive do silêncio e da vergonha, que impedem muitas vítimas de falarem, como alerta a psicóloga infantil alemã Ursula Enders.

Nos últimos dez anos, o número de casos confirmados não parou de crescer. Em 2014 eram pouco mais de 14 mil, em 2023 ultrapassaram 18 mil. O que mais preocupa não é só o crescimento: é o facto de que, ano após ano, a sociedade se habitua à estatística e não se indigna como deveria.

A realidade portuguesa

Em Portugal, a situação não é menos preocupante. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2024 foram registados 3.237 crimes contra menores, dos quais 1.041 correspondem a abuso sexual infantil. As vítimas são maioritariamente meninas (79,6%), enquanto os suspeitos são homens em 94% dos casos (1).

Um problema global, não apenas alemão ou português

Ainda que estes números se refiram especificamente à Alemanha e a Portugal , é fundamental sublinhar que o abuso sexual infantil é uma realidade mundial. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 em cada 5 mulheres e 1 em cada 13 homens afirma ter sofrido algum tipo de abuso sexual durante a infância.

Ou seja, o que se verifica na Alemanha e em Portugal também acontece, em maior ou menor escala, noutros países, inclusive no Brasil, onde casos semelhantes têm vindo a ser revelados com frequência. Um problema crucial é o facto de problemas ou questões não noticiadas com relevância nos media são considerados não existentes na sociedade nem para os vindouros porque o que conta são as fontes e estas são o noticiado.

A cegueira da sociedade e a responsabilidade dos media

A violência contra crianças é talvez o maior tabu da nossa era. Preferimos não olhar, não falar, não mexer em feridas que expõem falhas familiares, institucionais e políticas.  Muitos casos de abuso sexual com crianças dão-se no ambiente familiar e de amigos. É mais fácil fingir que não vemos. É mais cómodo acreditar que são “casos isolados” e não um fenómeno estrutural.

O tema é delicado e muitas vezes evitado, mas o silêncio social e institucional não é neutro, ele só protege e favorece os agressores. Cada omissão, cada desvio de olhar, cada desculpa serve de escudo para que crimes continuem a ser cometidos.

Também o jornalismo não pode fugir à sua responsabilidade. Com demasiada frequência, a cobertura mediática do abuso infantil transforma-se em mais uma notícia de choque que dura 24 horas e desaparece no rodapé. O ciclo noticioso privilegia o sensacionalismo, mas raramente se aprofunda nas causas, nas falhas das instituições, na falta de apoio às vítimas.

Em vez de iluminar as sombras, grande parte dos media limita-se a acender fogos de artifício momentâneos para captar leitores. Mas uma sociedade que se alimenta apenas de títulos fortes sem se deter na essência do problema acaba por se tornar cúmplice da sua perpetuação. O resultado é uma sucessão de títulos que chocam, mas pouco transformam.

A responsabilidade não é apenas dos governos ou das escolas, mas também da comunicação social e dos cidadãos. Denunciar, escutar, apoiar e exigir políticas eficazes são passos que cabem a todos.

Uma questão de dignidade e urgência de uma mudança

O combate ao abuso infantil não se resume a estatísticas nem a reportagens esporádicas. É preciso investir em mecanismos de prevenção e de denúncia eficazes e acessíveis, em programas de educação que ajudem crianças a reconhecer situações de risco, e em apoio psicológico que não revitimize quem já sofreu.

O abuso sexual infantil não é apenas um crime, é uma violação brutal da dignidade humana, que deixa marcas profundas e muitas vezes irreversíveis. A defesa das crianças deve estar acima da proteção de imagens institucionais ou familiares.

Enquanto a sociedade preferir olhar para o lado e continuar a tratar o abuso sexual infantil como uma vergonha escondida em vez de um crime hediondo a ser combatido, estaremos todos, sociedade, política e comunicação social, a falhar com aqueles que menos se podem defender. Precisa-se de uma mudança de consciência colectiva. É urgente assumir que defender a infância é defender o futuro e para isso necessita-se um jornalismo consciente, políticas sensatas e sociedade engajada que possam quebrar o silêncio que protege o abuso.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O número, porém, vai muito além das estatísticas policiais. O mesmo estudo do INE estimou que cerca de 176 mil adultos entre os 18 e 74 anos sofreram abuso sexual antes dos 15 anos. Destes, mais de 70% nunca falaram com ninguém sobre o que aconteceu; apenas 6,6% chegaram a recorrer a entidades oficiais.

“Os números mostram que continuamos a ter um problema de subnotificação gravíssimo. A criança muitas vezes não encontra um adulto em quem confie para revelar o que sofreu”, afirmou a diretora executiva da UNICEF Portugal, Beatriz Imperatori. Segundo estatísticas policiais (INE): Em 2024, registraram-se 3.237 crimes contra menores, com 1.041 denúncias de abuso sexual infantil (32,2%) e 1.033 casos de violência doméstica (31,9%)

Cerca de 176 mil pessoas entre 18 e 74 anos relataram ter sido vítimas de abuso sexual na infância (até 15 anos); entre as mulheres, prevalência de 3,5%; homens 1,1% ine.ptDiário de Notícias.

A UNICEF Portugal calcula que até 140 mil crianças podem ser vítimas de abuso sexual infantil, segundo projeções com base nos dados da OMS Observador.

Portugal está entre os piores da Europa em proteção jurídica às vítimas. Os prazos de prescrição são considerados inadequados, comparativamente a países com medidas mais protetivas ObservadorExpresso.

 

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