PARA ALÉM DA MATRIZ MASCULINA

Uma análise crítica da dominância masculina nas estruturas sociopolíticas e a necessidade de reequilibrar os princípios feminino e masculino

Por António da Cunha Duarte Justo

 

Introdução: O Colonialismo Mental da Matriz Masculina

Neste ensaio procuro elaborar uma proposta de um modelo antropológico equilibrado com base no princípio da complementaridade.                                          A sociedade contemporânea encontra-se enredada num paradoxo fundamental: enquanto se proclama a igualdade de género e se celebram conquistas no campo dos direitos das mulheres, a estrutura profunda que organiza o pensamento, o poder e a economia permanece fundamentalmente masculina na sua essência. Este “colonialismo mental”, como aqui o designamo, não poupa homens nem mulheres, condicionando o desenvolvimento humano e social a padrões aparentemente arbitrários, determinados pelo zeitgeist de cada época, mas invariavelmente ancorados numa lógica de afirmação, competição e domínio.

O presente artigo propõe uma análise teórica, analítica e crítica da nossa matriz antropológica e sociopolítica, procurando não apenas diagnosticar o problema, mas apresentar um modelo alternativo que honre genuinamente tanto o princípio da feminilidade como o da masculinidade, não como categorias biológicas fixas, mas como dimensões complementares presentes em cada ser humano e necessárias ao equilíbrio social.

  1. Arqueologia da Diferenciação: Das Origens à Divisão do Trabalho

1.1. As Raízes Evolutivas da Especialização

Nos primórdios da humanidade, a divisão de tarefas entre caça e recolha estabeleceu padrões de especialização cognitiva e social que reverberam até hoje. O homem caçador desenvolveu capacidades de visão ao longe, pensamento abstrato e estratégico, capacidade de risco calculado e ação decisiva, características que designo como “masculinas”. A mulher recolectora especializou-se na atenção ao próximo e ao concreto, na gestão do espaço doméstico, na nutrição e no cuidado, as pressupostas características “femininas”.

Esta diferenciação inicial, produto de necessidades adaptativas, não era hierárquica, mas complementar. Duas leis evolutivas operavam em equilíbrio: a lei da afirmação seletiva (seleção natural, competição, domínio do mais forte) e a lei da colaboração (cooperação, inclusão, interdependência). Ambas eram necessárias à sobrevivência do grupo.

1.2. Da Deusa-Mãe ao Patriarcado: A Viragem Neolítica

No período neolítico, com o surgimento da agricultura e da pecuária, o culto da deusa-mãe testemunhava o reconhecimento da mulher como princípio de continuidade da vida, associada à terra fértil e à natureza. Esta fase representa talvez o último momento histórico de equilíbrio real entre os princípios feminino e masculino nas estruturas simbólicas e de poder.

Com o desenvolvimento da metalurgia, da guerra organizada e das primeiras estruturas estatais complexas, inicia-se a progressiva masculinização das estruturas de poder. O princípio masculino expresso em  afirmação, conquista, hierarquia e domínio, passa a colonizar todas as esferas do social.

  1. A Economia como Motor da Masculinização Social

2.1. Da Revolução Industrial à Era Digital

A Revolução Industrial marca um ponto de viragem crucial. A transição dos modelos agrícola e artesanal para a produção industrial em larga escala exigia cada vez mais mão-de-obra. As mulheres constituíam uma reserva estratégica, mas para serem integradas no mundo industrial, tinham de se adaptar à lógica masculina da produção: competição, eficiência, hierarquia rígida, separação entre trabalho e vida.

A pílula anticoncepcional, significativamente criada para as mulheres, não para os homens, simboliza esta instrumentalização: permitia às mulheres entrarem no mercado de trabalho nos termos masculinos, controlando a reprodução para não interromper a produção. A maternidade, princípio feminino por excelência, tornava-se um “problema” a gerir sob o princípio da masculinidade.

O pragmatismo e o utilitarismo substituíram progressivamente a filosofia, a religião e a ética social como fundamentos do pensamento coletivo. A sociologia tornou-se a pilar da democracia, mas uma democracia crescentemente reduzida à gestão pragmática e cosmética, orientada para resultados mensuráveis a curto prazo, numa lógica essencialmente masculina expressa também na funcionalidade e logaritmos.

2.2. O Marketing e a Instrumentalização da Feminilidade

Paradoxalmente, enquanto as estruturas se masculinizavam, o marketing descobria na sensibilidade feminina um filão a explorar. As mulheres, mais orientadas para o sentimento e para a dimensão relacional e do consumo (versus o foco masculino no propósito), tornaram-se alvos privilegiados da indústria e dos serviços. Mas esta “valorização” da feminilidade era, na verdade, mais uma forma da sua instrumentalização ao serviço do princípio masculino: o lucro, a expansão, o progressos ou seja, o crescimento pelo crescimento.

  1. O Princípio “Divide et Impera” Aplicado ao Género

3.1. A Falsa Dialética da Luta de Géneros

O antigo princípio político e militar “divide para reinar” (divide et impera) encontra na questão do género uma aplicação particularmente insidiosa. Tal como na luta entre ricos e pobres, a dialética entre homens e mulheres é frequentemente enquadrada em termos de conflito, competição e conquista de poder, numa palavra, em termos masculinos de carácter meramente sociológico.

Grande parte do ativismo feminista contemporâneo, embora animado por legítimas reivindicações de justiça, adota estratégias de luta de carácter extremamente masculino: afirmação agressiva, confrontação, conquista de territórios de poder. Esta contradição performativa, lutar pela feminilidade com armas masculinas, revela até que ponto a matriz masculina colonizou até os movimentos que pretensamente a contestam.

3.2. A Naturalização do Paradigma Militar

A naturalidade com que se discute hoje a introdução do serviço militar obrigatório também para mulheres constitui um sintoma revelador. O modelo militar, hierarquia rígida, obediência, violência organizada, sacrifício individual ao coletivo abstrato, representa a quintessência do princípio masculino. Que a “igualdade de género” se afirme através da integração das mulheres neste modelo, em vez de questionar o próprio modelo, demonstra o grau de internalização da matriz masculina. Também a mulher reduzida a mera funcionalidade.

  1. Mutilações Contemporâneas: Homens Efeminados e Mulheres Masculinizadas

4.1. O Mito da Feminização Social

Observamos hoje homens aparentemente mais “efeminados”, o que é frequentemente interpretado como sinal de feminização da sociedade. Esta leitura é duplamente equivocada. Primeiro, porque confunde efeminação (caricatura da feminilidade) com feminilidade genuína (princípio de integração, cuidado, relação). Segundo, porque estes homens não são agentes de uma mudança estrutural, mas sintomas e vítimas do zeitgeist, manifestações de uma crise de identidade masculina que não altera a dominância da matriz masculina nas estruturas de poder.

4.2. O Drama das Mulheres em Posições de Poder

Sintomaticamente, mulheres em cargos de liderança tendem frequentemente a ser mais agressivas, mais “masculinas” na sua gestão do que muitos homens. Este fenómeno não é acidental: numa estrutura masculina, as mulheres sentem necessidade de “provar” o seu valor adotando e exacerbando os códigos masculinos. É uma forma de compensação que, tragicamente, perpetua o sistema que as limita.

A verdadeira igualdade não virá de mulheres que se tornam “homens honorários”, mas da transformação das estruturas para que possam acolher genuinamente o princípio feminino.

  1. A Era Digital e a Intensificação da Masculinização

5.1. Hiperconexão e Individualização

A revolução digital, com a Inteligência Artificial, a automação, os Big Data e a biotecnologia, promete (ou ameaça) uma transformação sem precedentes. Paradoxalmente, num mundo hiperconectado, observamos uma intensificação da individualização (acentuação do ego), mais uma manifestação do princípio masculino (autonomia, separação, competição) em detrimento do feminino (interdependência, comunidade, cuidado).

A lógica algorítmica que domina a era digital é essencialmente masculina: análise, divisão, classificação, otimização, eficiência. Os próprios algoritmos reforçam soslaios de género existentes, perpetuando a matriz masculina em código.

5.2. A Crise da Visão a Longo Prazo

O modelo masculino dominante, focado na afirmação imediata e na conquista de objetivos a curto prazo, mostra-se crescentemente inadequado face aos desafios contemporâneos. As crises ecológica, climática e de sustentabilidade exigem precisamente as qualidades do princípio feminino: cuidado com o longo prazo, atenção aos efeitos sobre o todo, responsabilidade relacional, prudência.

A incapacidade das nossas estruturas políticas e económicas de responderem adequadamente a estes desafios não é acidental, é estrutural, produto da dominância da matriz masculina.

  1. Proposta de um Modelo Antropológico Equilibrado

6.1. Reconhecer a Bivalência de Cada Pessoa

O primeiro passo é reconhecer que cada pessoa, independentemente do sexo biológico, é portadora de características masculinas e femininas. A masculinidade (afirmação, análise, abstração, competição) e a feminilidade (integração, síntese, materialidade, tangibilidade: colaboração) não são propriedades de homens e mulheres, mas dimensões da psique humana (Aninus e Anima) e princípios organizadores da sociedade.

6.2. Reequilibrar as Estruturas de Poder

Em vez de procurar a “igualdade” através da adaptação das mulheres à matriz masculina, é necessário transformar as próprias estruturas para que valorizem genuinamente:

– Decisões a longo prazo (versus resultados imediatos)

– Cuidado e sustentabilidade (versus crescimento e conquista)

– Colaboração e interdependência (versus competição e autonomia)

– Concreto e local (versus abstrato e global)

– Processos e relações (versus objetivos e hierarquias)

6.3. Reformular a Educação e a Cultura

A educação deve cultivar conscientemente ambos os princípios em todas as pessoas:

– Capacidade de afirmação e de integração

– Pensamento analítico e sintético

– Competição saudável e colaboração

– Autonomia e interdependência

– Corpo e alma em diálogo de complementaridade

  1. Para Além do Zeitgeist: Liberdade de Pensar

7.1. “Conhece-te a Ti Mesmo”

O princípio socrático “conhece-te a ti mesmo” é aqui fundamental. Enquanto não reconhecermos conscientemente a colonização das nossas mentes pela matriz masculina, permaneceremos seus prisioneiros. O autoconhecimento individual e coletivo é a precondição da liberdade.

7.2. Criatividade e Inovação Genuínas

A verdadeira criatividade e inovação exigem liberdade de pensar para além dos padrões estabelecidos. Um modelo antropológico equilibrado, que honre ambos os princípios, seria genuinamente inovador; não no sentido do “progressismo globalista” (que é frequentemente mais uma forma de imperialismo da matriz masculina), mas no sentido de abrir possibilidades realmente novas de organização social.

  1. Conclusão: Rumo a uma Nova Complementaridade

A sociedade contemporânea encontra-se numa encruzilhada. A intensificação da matriz masculina, longe de nos conduzir a um futuro sustentável e humanamente satisfatório, está certamente a produzir uma era de “desumanização do humano”, um novo nomadismo desenraizado, uma crise ética de proporções sem precedentes.

A solução não passa por inverter simplesmente a polaridade, substituir a tirania do masculino pela do feminino, mas por reconhecer a necessidade de ambos os princípios numa relação de complementaridade genuína, não hierárquica.

Homens e mulheres, cada um com a sua particular combinação de características masculinas e femininas, precisam de estruturas sociais, políticas e económicas que valorizem essa riqueza em vez de a mutilarem. Apenas assim será possível um desenvolvimento verdadeiramente humano, nem exclusivamente masculino nem exclusivamente feminino, mas integralmente humano.

O desafio não é técnico, mas civilizacional: trata-se de re-imaginar a própria estrutura do poder, da economia e da organização social para além do paradigma da dominação. Trata-se, afinal, de realizar a promessa não cumprida da modernidade: uma sociedade de pessoas livres e iguais em dignidade, capazes de afirmação e de integração, de autonomia e de interdependência, de conquistar e de cuidar.

Este é o horizonte de uma verdadeira inovação antropológica, não a adaptação das mulheres ao mundo masculino, mas a criação de um mundo verdadeiramente humano.

O progresso verdadeiro não é apenas técnico, mas humano; não é apenas crescimento, mas desenvolvimento; não é apenas afirmação, mas também integração.

Considero urgente que os temas de que a ciência, a economia e a política se deveriam ocupar prioritária e criticamente seriam os seguintes: Matriz masculina, princípios feminino e masculino, complementaridade de género, antropologia social, crítica da modernidade, economia do cuidado, colonialismo mental, desenvolvimento humano integral.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

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NA FRESTA ENTRE O CORAÇÃO E O ESPELHO

Na vida, há quem, em nome do amor, se perca,
E há quem ame apenas por um eco na cave da alma.
Um falso amor, que é só espelho e máscara,
E um amor-negação, que a própria essência cala.

O mandamento é claro: “Ama o próximo como a ti mesmo”.
Mas como amar o outro, se em nós a fonte secou?
A caridade que a si mesma se devora
É um martírio vão, um sol que não aquece.

O bom cristão, a pessoa de bem, lapida a própria pedra,
Sem carregar a culpa alheia, pesada herança.
Ser gentil com o mundo, sim, mas também consigo:
O próprio rosto é a primeira imagem de Deus a salvar.

Proteger-se não é egoísmo, é acto de criação.
O autocuidado é o altar onde o espírito arde.
Alimentar a alma, para além do ego faminto:
Ter limites é traçar a fronteira do sagrado.

A bondade genuína sabe a hora do “não”,
Do afastamento tático de toda a sombra daninha.
O amor é fundamental, mas o amor-próprio é a base:
Só não se perde no outro quem em si mesmo se encontra.

O amor sábio é fortaleza, é limite que protege,
Reconhece que o cuidar de si é o primeiro mandamento
Para, com mãos cheias e não vazias, cuidar do mundo.

Pois a sintonia sem discernimento é um rio sem leito,
Inunda tudo e nada rega, é tão estéril
Como a dureza sem empatia, gelo e pedra.
A sabedoria, essa rara arte, habita no equilíbrio:
No centro exacto entre a entrega e a preservação.

António da Cunha Duarte Justo

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NO FOCO DAS RELAÇÕES

Sou feito de mim mesmo e em tudo o que me forma,
sou rio que nasce da fonte e no leito que o acolhe.
Entre o que sou, a minha ipseidade, núcleo ardente,
e o que o mundo exige que eu seja, tecelão implacável,
ergue-se o espaço sagrado do possível:
ser o que posso ser, no ser que habito.

Não sou essência isolada,
pedra muda no deserto do ser,
nem fruto cego do acaso,
folha que o vento arrasta sem memória.

Sou o intervalo vivo, entre os contrários:
trovão, silêncio, toque, vento e queda,                                                                                                                                                                                                                                    que em dança torno em voo e em canto novo.

Sou o instante grávido de sentido
onde a liberdade toca o destino
e ambos se olham, no gesto que os reúne:

flor que desabrocha à luz da mesma terra,                                                                    flor que desabrocha à luz da mesma terra,                                                                      sabendo o céu que a fez e a sustém viva.

Assim caminho, no meio do que me é dado,
nem servo das estrelas, nem dono da manhã.
Sigo no fio tenso entre o que herdo
e o que em mim refaço, autor e argila,
poema inacabado que me escreve.

Porque ser é mover-se,
verbo em combustão,
resposta à voz do mundo que pergunta.
E nesse jogo antigo, entre o que é eu
e o que me é outro, origem e infinito,
nasce o milagre humano do equilíbrio:

a liberdade que dança entre as correntes,
e faz delas asas que levantam.
No ritmo trino do que é dom e entrega,
amor que se reparte e se refunde,
círculo aberto ao eterno, pura relação.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

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TRATADO DAS ONDAS

(Da Lei da Vida e Seus Complementos)

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a vida é um mar de forças entrelaçadas,

Ondas que se erguem, ondas que se abraçam,

Leis que se completam, nunca separadas.

No atrito, a essência da união é gerada,

Na resistência, a pele do ser é lavrada.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Quantas tempestades, no lar, seriam sossego,

Se o olhar, em vez de acusar, fosse espelho cego

Para enxergar no outro a própria face manchada.

O problema que em mim começa, em mim se desfaça,

E não no outro, espelho da minha desgraça.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que os donos do poder, cegos em sua doutrina,

Trocam o diálogo por uma guerra fina,

Ondas humanas que sua dança despedaça.

Ignoram que a força que usam para domar

É a mesma que um dia os virá a devorar.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a onda que vem não é inimiga da ida,

Mas irmã que sustenta a maré da vida,

E na aparente guerra, o equilíbrio se enlaça.

Cada rugir de espuma, cada aresta lapidada,

É o preço da existência, a marca da jornada.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a força que nos define, que nos individualiza,

É a mesma que nos une, que nos harmoniza,

E o conflito é só a superfície que se escava.

No embate de vontades, na correnteza alterosa,

Nasce a consciência clara, serena e luminosa.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que as leis do mar e as leis da alma são iguais:

Não há onda sem mar, nem ser sem os seus laços,

E o que parece oposição são elos universais.

No alto mar da vida, no barco da razão,

São as ondas contrárias que dão à vela direção.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a vida se move em ritmos de complemento,

No ondular do tempo, no sopro do momento,

Toda a guerra é passageira, todo o atrito é um vento.

E quem se vê como parte do todo entrelaçado,

Encontra na resistência o sentido do abraço.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

A grande lei do mar, que a tudo rege e passa:

Ser é ser com o outro, na mesma dança e casa,

E a onda que hoje luta é a que amanhã abraça.

Pois a vida não é combate, é composição,

E a mais sábia vitória é a da compreensão.

 

António da Cunha Duarte Justo

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A CIDADE DAS ÂNFORAS VAZIAS

Ensaio literário sobre o tear do medo, tecido com os fios da máscara e o nó da denúncia

Era uma vez uma cidade já velha chamada Ânfora, cujas casas eram como ânforas gregas, belas, mas ocas, destinadas a guardar um vinho que já ninguém bebia. O ar, outrora preenchido pelo murmúrio das fontes e pelas risadas nas praças, tornara-se pesado, saturado de um silêncio que era menos paz e mais ausência provocadora.

Um dia, sem que se visse o inimigo, os Oleiros da Cidade, que outrora moldavam a vida comum, decretaram o Grande Recolhimento Domiciliário. Um “Cuidado Invisível” pairaria sobre todos, alegavam. Para nos proteger, disseram, é preciso que cada ânfora se feche sobre si mesma.

E assim foi; decretou-se estado de emergência e recolher obrigatório. As portas cerraram-se. Os rostos, outrora mapas de emoções, foram cobertos por véus de linho branco. Os olhos, as únicas janelas que restavam, aprenderam a desconfiar. Um sorriso, um cumprimento, um abraço, um aperto de mão, actos outrora inocentes, tornaram-se suspeitos, possíveis veículos do tal Cuidado Invisível.

O Oleiro-Mor, de seu nome Governância, em conluio com os Arautos, os contadores de histórias oficiais, começou a tecer uma narrativa de medo. O seu tear era a repetição, e o fio que usavam era o pavor. “Dividir para reinar”, sussurravam os sábios mais anciãos, recordando os velhos compêndios de poder e das elites. E a divisão veio: o vizinho denunciava o vizinho por não trazer o véu corretamente ou por o não trazer, desobedecendo assim ao regulamento de agendas globais e de seus administradores que em nome do globalismo tinham renunciado a ser governantes; o amigo afastava-se do amigo, temendo o hálito que outrora partilhava em confidências e em encontros sociais.

Até os Guardiães das Almas, os Sacerdotes do Deus-Homem, quebraram o seu próprio cânon. Acreditando servir a um deus maior, a Ciência dos Oleiros, fecharam os templos e proibiram o consolo do rito, esquecendo que a alma, essa verdadeira soberana, definhava de fome e solidão. A ânfora humana, fechada, começou a rachar.

Nesse tempo de exílio interno, uma jovem jardineira de almas, chamada Serena, começou a reunir um pequeno grupo no jardim abandonado da cidade. Não protestavam com gritos, mas com silêncio. A sua arma era a meditação, a sua bandeira era uma flor. Ofereciam crisântemos aos guardas de armadura que os observavam, e estes, por vezes, sorriam, confundidos por tal gentileza.

Num dia particularmente sombrio, Serena, para que as suas palavras chegassem mais claras aos corações, baixou o véu de algodão. Foi o suficiente para mover a trama institucional contra o peado cidadão. Dois guardas, outrora receptores das suas flores, avançaram. A alegoria da compaixão foi quebrada pela literalidade do decreto. Serena foi levada, acusada de “mau exemplo”. A sua ânfora pessoal foi violada pela mão do regulamento.

A multa foi pesada, mas um fio de solidariedade, tecido nas teias de uma Rede de Fios de Luz (que os Arautos desdenhavam), juntou o povo para pagar a dívida. Contudo, o estrago estava feito. A praça  jardim onde Serena ensinava a respirar foi-lhe retirada e os manifestantes da meditação obrigados a debandar. A lição era clara: até o acto mais pacífico de reconexão comunitária seria tratado como um crime de insubordinação.

Os Oleiros de toda a Europa sob o comando da feiticeira de Bruxelas, vendo a facilidade com que as ânforas dos seus reinos se isolaram e se voltaram umas contra as outras, aprenderam uma lição perigosa: o povo era de barro mais maleável do que julgavam. Tendo testado com sucesso os limites do seu poder em tempos de peste, sentiram-se habilitados a novos projectos. A máquina do poder unido untado com o brilho do medo tornara-se eficiente.

Assim, quando um novo conflito eclodiu nas terras distantes do Leste, os mesmos Oleiros, que nos privaram do abraço, começaram a falar em forjar armaduras para toda a cidade, transformando a Ânfora numa Fortaleza. O medo do vírus foi habilmente substituído pelo medo do estrangeiro. A linguagem tornou-se opaca, uma névoa que impedia o discernimento. A agressividade, cultivada durante anos de tensão doméstica, transbordou para as famílias, rachando jantares e envenenando laços.

A cidade de Ânfora nunca mais recuperou o seu riso. As pessoas haviam-se desabituado de confiar, de tocar, de partilhar o mesmo ar. A Democracia, outrora um mercado de ideias vivas, transformara-se num regime autoritário de gestão de crises, onde a única soberania que restava era a do medo. E as ânforas, cada vez mais ocas, ressoavam apenas com o eco sombrio de uma verdade que todos sentiam, mas que ninguém ousava pronunciar: que o maior contágio não fora o do vírus, mas o do poder absoluto, e que a mais nefasta das sequelas foi a perda da própria humanidade que alegavam proteger.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Complemento crítico:

Esta alegoria sobre as Medidas anti pandemia Corona Vírus toca em pontos críticos analisados por filósofos e cientistas sociais durante e após a pandemia (aqueles que não eram permitidos à luz das Câmaras de Televisão):

  1. A “Sociedade da Desconfiança”: O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, com o seu conceito de “medo líquido”, previu como o temor pode corroer os laços sociais. A alegoria dos vizinhos que se denunciam ecoa directamente os mecanismos de controle em estados totalitários, onde o cidadão é transformado em extensionista da vigilância estatal.
  2. A Biopolítica: O filósofo Michel Foucault forneceu o conceito de “biopoder”, o controle estatal sobre a vida biológica das populações (saúde, natalidade, etc.). As medidas COVID representaram um exercício sem precedentes de biopoder, onde os governos passaram a ditar como os corpos se podiam ou não relacionar. A submissão da Igreja na sua narrativa é um exemplo claro: até a autoridade espiritual foi suplantada pela autoridade biopolítica.
  3. A “Cognição Embodied”: A neurociência e a filosofia da mente mostram que o nosso “eu” não está apenas no cérebro, mas é construído através da interação com o mundo e com os outros, além da impregnação indelével do selo branco espiritual. A privação do toque, do contacto, do rosto inteiro, do riso partilhado, não foi uma mera inconveniência; foi uma mutilação do nosso ser-no-mundo. A alegoria da ânfora rachada representa este dano psíquico profundo.
  4. A Exploração da “Crise”: A politóloga Naomi Klein, na sua “Doutrina do Choque”, argumenta que elites políticas e económicas frequentemente exploram crises (reais ou percebidas) para impor políticas impopulares que, em tempos normais, seriam rejeitadas. A pandemia e, subsequentemente, a guerra, funcionaram como esses “choques”, permitindo uma reengenharia social acelerada e uma centralização de poder, tal como descreve.
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