Do que se fez e do que falta fazer
António Justo
A canção de Jeca Afonso, “Grândola Vila Morena”, usada na Rádio Renascença como palavra de ordem para dar início à revolução, expressa o ideal da liberdade e da fraternidade, que como sonho nunca poderá ser totalmente cumprido. Quarenta anos depois da canção, apesar da abertura e do desenvolvimento havido, é preciso relembra-lo e coloca-lo na ordem do dia.
Outrora, na origem da Revolução de Abril, o MFA – um movimento de anticolonialistas e idealistas de esquerda – dava expressão à crise do colonialismo e às lutas ideológicas entre o imperialismo soviético e o imperialismo americano. Hoje, o mesmo país, tornou-se, de novo, o rosto da crise socioeconómica e cultural do mundo ocidental (ver Repensar a Revolução em www.antonio-justo.eu).
Portugal, na falta de agir próprio, foi também vítima do estado do clima das potências mundiais, devido ao seu enquadramento nos centros de interesses internacionais (URSS-USA, Europa, Nato). O que aconteceu em Portugal em contextos próprios, acontece hoje, de maneira mais descarada, na Síria, na Ucrânia, etc.. Tudo em nome da defesa de interesses regionais mas a servir os grandes imperialismos internacionais.
O golpe militar que derrubou a ditadura de Salazar viu-se indirectamente legitimado pelo apoio que o povo lhe deu; corria entretanto perigo de se tornar numa ditadura militar, no sentido de Vasco Goncalves, dado a realidade das forças populares e burguesas portuguesas não serem unívocas, tal como acontecia dentro do MFA entre o ideólogo Vasco Goncalves leal a uma ideia comunista extrema (gonçalvismo) e o ideólogo Melo Antunes com os pés mais assentes na terra portuguesa que, embora socialista, era adverso do socialismo soviético.
O general Vasco Gonçalves, de ideologia comunista, era, com Rosa Coutinho e Otelo Saraiva de Carvalho, um dos líderes do Movimento Forças Armadas (MFA) que encabeçou vários governos provisórios e tinha o intuito de instalar em Portugal uma ditadura popular. À frente do V governo provisório o “companheiro Vasco” conseguiu determinar a nacionalização da CUF, Setenave, Covina, Pirites Alentejanas, Petroquímica, Amoníaco Português, Nitratos de Portugal, bancos, seguros, transportes públicos e dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo e implementar a reforma Agrária.
Na altura a Europa temia e tremia com o desenvolvimento da política portuguesa. A Nato não ia permitir que dentro do seu seio se criasse uma nova Cuba. A intervenção indirecta mas maciça dos USA e estados europeus, através do apoio a Soares e às forças moderadas do 25 de Abril, possibilitou a contra revolução (do Verão Quente) que aplainou o caminho para a integração de Portugal no mundo ocidental.
A partir daí a revolução deixou de ser um processo para se tornar num credo! Hoje a bancarrota de Portugal também dá razão aos revolucionários de então, dado ter falhado e a contra-revolução da democracia partidária também. Daí a desorientação e a complicação do enredo em torno da revolução. Apesar dos hinos e louvores inegáveis à mudança histórica, depois de 40 anos de revolução, Portugal não se encontra economicamente melhor em relação ao grupo de países europeus de então menos produtivos mas que também se desenvolveram apesar de não terem tido revolução. Portugal entre a cólera e a peste: de um lado o imperialismo ideológico marxista e do outro o imperialismo económico (USA). Duas perspectivas intragáveis para um país pequeno como Portugal com um corpo pequeno na Europa e o coração no mundo.
O intuito de revolucionários influentes e do MFA era instituir uma sociedade socialista (à imagem de Cuba e da União Soviética em nome de interesses populares.
Portugal, embora se encontrasse em posição militar vantajosa na guerra colonial, optou por um processo de descolonização que não fosse neocolonialista mas cometeu o erro de abandonar as colónias a outras forças/ideologias colonizadoras.
Vasco Goncalves e Melo Antunes eram os ideólogos das forças armadas. A 7.04.75 o MFA tinha-se decidido pelo socialismo/comunismo. Melo Antunes e o grupo dos nove (membros do Conselho da Revolução: Vasco Lourenço, Canto e Castro, Vítor Crespo, Costa Neves, Melo Antunes, Vítor Alves, Franco Charais, Pezarat Correia e Sousa e Castro) conseguem uma tomada de posição política pluralista própria, contra os radicais do MFA em torno da ala comunista de Vasco Gonçalves, ao tornarem público o documento dos nove (6 de agosto de 1975) ao presidente da república general Costa Gomes. Ramalho Eanes e muitos outros líderes militares apoiaram o documento. Costa Gomes, homem de esquerda, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro também apontava para uma terceira via.
O Documento dos nove (Melo Antunes, Vasco Lourenço, etc.) foge ao controlo do MFA no sentido de impedir o socialismo e de enveredar por uma terceira via que não a capitalista nem a socialista. Ao ser questionado sobre as razões de “O Documento dos nove” não querer que se seguisse um modelo de sociedade socialista de tipo soviético, Vasco Gonçalves avisa:“pergunto: que sinais de modelo soviético haveria nas conquistas alcançadas? Não vieram todas elas a ser integradas na Constituição de 1976, com a aprovação do Presidente da República, do próprio Grupo dos Nove, do PS e do PPD, além do Partido Comunista e do MDP/CDE?”
Vasco Gonçalves refere no livro „Vasco Gonçalves – Um General na Revolução”: “Recordo ainda que o New York Times, em Setembro de 1975, noticiava que a ajuda americana ao PS para combater o Quinto Governo seria canalizada por intermédio da CIA, por meio dos partidos socialistas e dos sindicatos sob sua influência da Europa ocidental. Segundo a imprensa da época, o Presidente Ford disse que a operação tinha custado apenas dez milhões de dólares.” E cita que Carlucci (CIA) «foi um protector das forças democráticas, designadamente do PS e de Mário Soares». Os EUA estavam preocupados porque do futuro de Portugal dependiam os seus interesses estratégicos em três continentes.
Datas críticas do processo revolucionário
A 28 de Setembro de 74 organiza-se uma manifestação da “Maioria Silenciosa” contra as expropriações, etc apoiada pelo Presidente General Spínola; Otelo Saraiva de Carvalho do COPCON opõe-se e são organizadas barricadas nas estradas de acesso a Lisboa. Spínola é obrigado a demitir alguns generais conservadores e demite-se também.
O apoio do povo ao golpe de estado do 25 de Abril conduziu ao “Processo Revolucionário em Curso”(PREC), que constava do período que iria até à aprovação da Constituição Portuguesa, em Abril de 1976. A extrema-esquerda colada ao PREC e formada pelo MDP/CDE e a UDP, de vez em quando aliadas ao PCP, queriam implantar uma república popular. Em 1975 a grande maioria dos 250 Deputados da assembleia Constituinte pertenciam ao PS, PPD e CDS, e defendiam a implantação de uma Democracia constitucional de cariz semipresidencialista.
A 11 de Março de 75, um grupo revolucionário quer eliminar militares agrupados em torno do General Espínola. A 11 de Março Spínola assume o comando tentando um golpe de estado contra-revolucionário mas falha.
O 25 de Novembro (Verão quente de 1975) designa o “golpe militar” em que as forças moderadas militares conseguem impor-se às forças militares radicais de esquerda, iniciando-se assim a contra-revolução dos moderados.
Com os militares moderados apoiados pelo PS e do PPD obtiveram o apoio tático do PC. Este confirmou que não convocaria manifestações para essa altura; os militares mais afectos ao PS conseguem também marginalizar mais de 1000 camaradas militares ganhando assim força contra os (‘gonçalvistas’) e contra a Esquerda Militar Radical (‘otelistas’). No dia 24 são cortadas as estradas de acesso a Lisboa. Várias personalidades, entre elas, Mário Soares, deslocam-se para o Porto ao Quartel Militar Norte na espectativa de um plano contra-revolucionário previamente estabelecido. O presidente da república decreta o estado de sítio na área da Região Militar de Lisboa, sendo aprisionados soldados de alta patente da extrema-esquerda revolucionária. O Regimento da Polícia Militar da Ajuda rende-se tendo havido 3 mortos. Melo Antunes declara na RTP que o PCP: “é indispensável à democracia”. Consolida-se o regime partidário. No dia 27 os Generais Carlos Fabião e Otelo Saraiva de Carvalho são destituídos, respectivamente, dos cargos de Chefe de Estado-maior do Exército e de Comandante do COPCON; Ramalho Eanes passa a ser o Chefe de Estado-maior Geral das Forças Armadas e o COPCON é integrado no Estado-maior e a Rádio Renascença é devolvida à Igreja. Em consequência de manifestações contra a prisão de Otelo e outros militares, são mortas quatro pessoas e outras feridas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Golpe_Militar_de_25_de_Novembro). A partir daqui a incompatibilidade ideológica que se encontrava nas casernas, entre os grupos das forças armadas, passa para a sociedade na luta entre os partidos. PS, PPD e CDS acusam o PCP de estar envolvido nas insurreições de 25 de Novembro.
Entretanto os cravos murcharam e, com eles, o sonho. Passaram-se os tempos dos fogos-de-artifício e o sonho da cancão de Abril, agora nas carruagens dos partidos, continua a ser música, por vezes, de embalar. Só a bandeira portuguesa parece ser desfraldada, por alguns, com mais força! O cenário é pintado com cores mais escuras. Hoje tudo berra mais alto porque a realidade ensombrece os sonhos. O povo português iniciou a revolução sem saber que ia sozinho para a festa. Uma revolução feita por utopistas num Portugal incardinado na Europa (e não num oceano – Cuba), não poderia ir longe. A União Soviética, a Europa e a América também não permitiam uma terceira via: tal como a ideia de Salazar de um império lusófono não podia ter sucesso, num mundo dividido entre os interesses soviéticos e os interesses americanos.
Hoje encontramo-nos numa crise que, em grande parte, não é nossa mas que temos de aguentar e expiar porque por muitas saídas que tivéssemos em mente a situação enquadrante é esmagadora: o capitalismo liberal internacional e o socialismo não permitem uma terceira via. Uma perspectiva digna de sonho, no sentido de se inovar uma terceira via, seria uma união, no sentido de uma confederação, entre os países lusófonos o que pressuporia um longo caminho e, a princípio, menos progresso imediato mas mais humanidade e felicidade (continua no próximo artigo “A Revolução marxista e a Contra-revolução moderada”)
António da Cunha Duarte Justo
Formado em Ciências da Educação (Português e História)
www.antonio-justo.eu
Muito bom texto!
Fiquei um pouco estarrecido com a riqueza de detalhes, uma vez que a história de Portugal passa-nos longe, e vemos que continua cheia de acontecimentos. Lendo o texto imaginei exatamente o desfecho sugerido pelo sr. Antonio Justo, o qual reproduzo;
“Uma perspectiva digna de sonho,no sentido de se inovar uma terceira via seria uma união, no sentido de uma confederação, entre os países lusófonos o que pressuporia um longo caminho e, a princípio, menos progresso imediato mas mais humanidade e felicidade.”
Ora, mas é exatamente isso que nos cabe tornar realidade, para que deixe de ser sonho. Esta via será tão forte quanto seus paises conseguirem reduzir suas fragilidades. Considerando que uma nação não se desenvolve e se sobressai diante de outras por acaso, mas por forças pensantes que o conduzem a tal situação , algo da complexidade de uma grande confederação transoceânica lusófona levaria um tempo ainda maior, no entanto, hoje há condicionantes que não podemos desconsiderar e que fazem muita diferença: há mais e melhor conhecimento e tecnologia acumulados, o sentimento de pertença à lusofonia é cada vez maior, muitos de nossos governantes tem desenvolvido uma visão que sozinhos em um mundo onde as conexões são cada vez mais sedimentadas (acordos de cooperação, de livre comércio, etc) tem os conduzidos à percepção de que é melhor incrementar a cooperação onde temos mais facilidades e sem dúvida a lingua nos é grande facilitador.
Assim, acredito haver uma terceira via, mas terá que levar em consideração as atuais e será em alguma delas que nascerá, pois do nada fica difícil nascer algo. Com todo seu saber, não terá Portugal um papel central nesse processo?
Abraço aos participantes,
Vilson
in Diálogos Lusófonos, 24.04.2014