Natal – A Compreensão cósmica de Deus, Homem e Mundo

O Cosmos evolui no Sentido da Natureza de Cristo

 

António Justo

Aproxima-se mais um Natal no tempo. Um escândalo! Deus torna-se mundo e Homem depois duma grande gestação que se seguiu à Palavra de Deus inicial que produziu o “Big Bang” do universo e se foi tornando, cada vez mais, visível, atingindo o apogeu no Filho do Homem. Em Jesus Cristo une-se a divindade e a criação (poder e vulnerabilidade); os opostos tornam-se parte duma realidade maior que ultrapassa a visão dialética e bipolar habitual. O JC torna-se a interpretação de Deus e do mundo: é não só a sua metáfora mas também a sua realidade; ele reúne e resume a corporeidade, a matéria no Jesus homem e a divindade no Cristo. O divino apresenta-se aqui numa dimensão física visível e numa dimensão espiritual invisível: é mundo e transcendência ao mesmo tempo.

 

Com as dores da evolução, o espírito expressa-se no espaço e no tempo (cosmos) à semelhança do desenvolvimento do ser humano no ventre da mãe durante a gravidez. JC é o “início” e  “o primogénito de toda a criação” (cf. Paulo aos Colossenses); com Ele e nEle a divindade incarna já antes de toda a criação. A divindade torna-se pai/mãe no Filho, gera e cria por amor permanecendo na união do criar e dar à luz (revelar) parte de si mesmo (a sua dimensão cósmica). JC já resumia nele a divindade e a criação antes do pecado original. Daqui ser óbvio não se acentuar demasiado a espiritualidade do pecado original como fundamento da incarnação divina (como advertem teólogos). Para João Duns Escoto o pecado assume uma realidade secundária em relação ao amor. A religião do cristão é o amor e o amor expressa-se na bondade.

 

O universo é o alfabeto e a sintaxe da Palavra inicial (No princípio era o Logos, a Palavra, a Informação) donde tudo surgiu e se manifesta. JC é a revelação de Deus nas suas dimensões material e imaterial. “No princípio já existia o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava, no princípio, com Deus; tudo começou a existir por meio d’Ele, e sem Ele nada foi criado” (Jo 1, 1-3).

 

A criação traz, assim, em si o gene divino e o germe da evolução tendo chegado à maturidade física que comporta o seu florescer no espírito, na natureza do Cristo. Em JC temos a ideia e o acontecer duma Realidade ao mesmo tempo visível e invisível. É aquilo que a liturgia realiza na eucaristia, antecipando nela a realidade final, a transubstanciação da matéria no espírito, num processo de Alfa e Omega, como JC já antecipou.

 

Teilhard de Chardin compreende o cosmos inteiro como Cristocêntrico numa espécie de consagração transubstancial da realidade. Bento XVI fala do sinal da ” Eucaristia, comunhão com Cristo e entre nós” e Joao Paulo II acrescenta: “A liturgia cristã deve ter uma orientação cósmica. Tem que, por assim dizer, orquestrar o mistério de Cristo, de facto, com todas as vozes que estão à disposição da criação” (Ecclesia de Eucaristia). Com isto, chama a atenção não só duma espiritualidade transcendente mas também duma espiritualidade imanente (inerente ao cosmos). Esta será a dimensão a aprofundar numa fase mais mística do cristianismo e que virá dar resposta aos novos tempos.

 

Deus torna-se mundo e Homem em Jesus Cristo (processo evolutivo do Alfa para o Omega); JC ao resumir em si o mundo e a divindade espelha nEle a pessoa e o universo no seu processo de divinização. Deus dá hoje continuidade ao processo de incarnação que tinha iniciado e realizado em Jesus Cristo ao iniciar a criação. Os movimentos cíclicos e lineares convergem em cenários de uma mesma realidade que se expressa nas espiritualidades natalícia, pascal e pentecostal. O ciclo da natureza e o ciclo litúrgico tornam-se metáforas duma mesma realidade em via.

 

No processo evolutivo, à hominização segue-se a natureza de Cristo. O Natal (incarnação) provoca uma verdadeira revolução do pensar racionalista e sentimentalista, abrindo horizontes para panoramas e dimensões impensáveis. Não podemos acentuar demasiado o aspecto pedagógico-didático da liturgia natalícia em detrimento da realidade essencial teológica e mística que se resume no mistério da Trindade e no processo de incarnar e ressuscitar.

 

O Natal, embora incorporado no negócio do consumo, na concorrência e no sentimentalismo, é, no tempo, aquela parte do tempo que aponta para a justiça e para paz. O calendário litúrgico, tal como as estações do ano, expressa metaforicamente a realidade da vida, e consequentes diferentes nuances.

 

Urge uma actual compreensão e vivência do mundo, do homem e de Deus. A desmitologização do mundo expressa no cristianismo pressupõe a desmitologização do espiritual, para se poder compreender a realidade integral que é Jesus Cristo. Urge dar-se a desmitologização de Deus, do homem e do mundo para se sentir o fluir do divino no humano numa interligação de Pai no Filho, de Filho no universo na unidade do Paráclito.

 

A incarnação é um mistério que pode ter várias abordagens também no sentido de dar resposta aos problemas actuais apresentados pelas novas impostações teológicas e pelas ciências físico-naturais. Uma das impostações será a de que Deus não encarnou em JC porque Deus estava ofendido com os pecados do mundo mas também porque, por amor, na sua relação trinitária, ao tornar-se mundo e homem se submete à evolução, à cruz do mundo a caminho do Cristo. Deus ao revelar-se em Jesus Cristo revelou o ser do Homem e do mundo também.

Estamos chamados a realizar o JC.

 

Com este Deus que se declara por nós e em nós, há que renascer para realizar o Natal.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

A Vida desafia-te no Outro

O que é que a Vida faz de ti e que queres fazer da tua Vida?

 

António Justo

Há meses encontrei um par de amigos embebidos um do outro: Ele esbelto e nobre, todo leão, ela jeitosa e distinta, fazia lembrar uma gata persa. Viveram alguns meses primaveris mas já se nota neles o desgaste rotineiro, com o nevoeiro outonal a apontar para um inverno já sem folhas e com poucos vislumbres de nova primavera. Os dois são personalidades nobres e extraordinárias, jovens ainda! Como todos, sofrem porque não notam que o que querem mudar e combatem no outro é a própria parte (polo) ainda oculta que cada um de nós traz em si, sem se aperceber dela. Homem e mulher são dois polos duma mesma realidade: o Homem integral, a humanidade!

 

Por vezes, perdem-se no jogo das escondidas, num tactear temeroso de interpretação recíproca de gestos e intenções. É certo que o gato, quando quer o carinho de alguém, não se vem logo pôr no colo da pessoa. Primeiro começa por encostar-se às coisas que se encontram em redor dele, para se fazer notar, à espera que se lhe passe a mão, para, poder então, prostrar-se a seus pés. Neste rodeio esconde o seu orgulho e satisfaz a necessidade de maneira formal.

 

Depois das intimidades primaveris estão a acentuar a parte superficial (fenomenológica) do ser (o ego), num jogo fatal de distanciamento e aproximação no tapete do pensamento. Ela ama-o profundamente mas tem medo de ser desiludida duma imagem de homem distante; ele ama-a também mas tem medo da desilusão duma imagem de mulher distante. Chego a ter a impressão que os dois se vingam, um no outro, da mãe (da mulher e do homem) em reparação duma infância inocente perdida. Adoram a mãe em actos de feminidade e masculinidade distorcidas. Nos intervalos lambem as feridas. Enquanto o cordão umbilical subsistir, maior será o desejo de liberdade e maiores serão as estratégias inconscientes para se não libertar da mãe (da fixação num só polo). O corte do cordão umbilical levará à construção dum eu não dependente, dum eu que integra o outro nele mesmo. Doutro modo este será sempre um obstáculo a uma união que se tornaria, inconscientemente, num obstáculo à simbiose primeira e que se quer manter à custa duma autonomia simulada. Na relação, nuns acentua-se mais a necessidade de se definirem pela demarcação, noutros pela simbiose.

 

Os dois sofrem de dores que por mim passaram e passam: as dores que geram a diferença das estações e deixam a voz do vento (tempo) nos corações. Ele sofre porque a queria mas nota que ela resiste a ser à maneira como ele a gera: à sua imagem e semelhança ou pior ainda à imagem e semelhança de suas ideias e ideais. No seu sofrer, ele refugia-se nas alturas intelectuais da águia, cada vez mais distante da natureza e mais queimado pelo sol da razão, não se apercebendo dele próprio, devido a tanto ver.

 

Ela, hipersensível, sofre praticamente da mesma razão. Só que desce ao profundo dos sentimentos e, encharcada de tanta emoção, por vezes, pouco vê além dela, devido ao nevoeiro emocional que a envolve.

 

Se não fosse o problema comum, realizariam neles o paraíso terreal antes da queda de Adão! Um problema conhecido de cada um, numa vida de espreita atrás do tempo à espera do próprio momento. Os dois sofrem como cães de orelhas pendentes e de desejos castigados, e fingem coragem e soberania de um perante o outro: aquela soberania construída que os impede de se encontrarem porque ainda não descobriram os opostos a descobrir, neles mesmos. Concebem a vida e o outro como dia com sol sem amanhecer nem anoitecer. Não seria oportuno adiar a vida numa concepção. Também não chega viver um dia de cada vez! De facto, o nosso futuro pode ser atropelado pelo presente e afogado na cisma de porquês e de soluções!

 

Na ressonância da vivência quero descer à cave da vida e, contigo homem contigo mulher, fazer uma caminhada que é vossa e minha. Quando falo de ti, és tu e ele, ela e tu, e eu também! Em nós se juntam os polos opostos dum acontecer mais abrangente mas que persistimos em esquecer! Esquecemos a lei da complementaridade duma realidade maior  e de que somos uma parte!

 

Para possibilitares o verdadeiro encontro com ele/ela, terás de te concentrar no teu âmago e deixar de viver na e da distracção para te poderes reconhecer no todo e consequentemente nela/nele também. Ao encontrares-te no todo já “tens” o outro que então descobres em ti. Ele deixa de ser objecto, desejo ou projecção. Aí no encontro descobres a humanidade, a tua plenitude, passando a sentir o prazer da ressonância da feminidade e da masculinidade (do eu e do tu no nós), tudo em ti mesmo: os polos que pareciam antagónicos ao serem reconhecidos como parte essencial de ti mesmo geram novas energias e uma criatividade de auto-realização. A mesmidade ilimitada que surge da vivência da essência de si, de Deus e mundo no próprio centro, o eu-nós espiritual, entra na ressonância da relação pessoal e tudo compreende e supera. Então torna-se natural reconhecer a própria vulnerabilidade e nudez e deixar-se envolver e entregar ao outro; então torna-se natural perdoar e pedir perdão, desculpar e pedir desculpa; o perdão limpa e purifica o nosso espírito e fomenta a maturidade e a metanoia. As feridas causadas pelo querer ter razão revelam-se então como sombras que encobrem o outro e não passavam, muitas vezes, de formas de autopunição. Urge pedir perdão também a nós mesmos para podermos reconciliar os opostos e assim viver em paz connosco e com os outros. Torna-se importante pensar e questionar o próprio pensamento, para o poder então sentir. Torna-se importante ordenar a hipersensibilidade para se poder integrar a racionalidade do outro. Como se vê, somos todos muito iguais e muito diferentes; somos constelações onde acontece e se cruzam o eu, o tu e o nós.

 

Contas com o soalheiro da vida alegre mas não com o escuro da dor. A dor, porém, é a brisa que te leva para lá do tu e do eu, o lugar onde o tempo descansa e se perscruta a eternidade. Quando chegas a esse lugar, o passado e o futuro descansam para dar lugar ao brilho da luz imortal a cintilar no teu interior. Quando a chuva cai e o vento norte zune no teu ser, procura descer as escadas da meditação até ao teu interior. Uma vez lá, sentes o calor da energia divina a subir em ti. Então os nevoeiros do medo, da agressão começam a evaporar-se como o orvalho em manhã risonha. A paz e a alegria penetram em ti e tu emerges num agora eterno. Então as preocupações, desejos e receios não passarão dum bater distante de ondas à superfície dum mar profundo. Nesse oceano a minha alma ganha asas, chora, fala e canta e leva-me com ela ao cimo da montanha donde avisto o meu corpo, o meu ego, e sinto uma força maior que o puxa.

 

Na dificuldade, reservo alguns momentos para mim e começo por inalar a força positiva, a graça divina, que sinto a soprar em mim. Então o meu eu profundo e superior (ipseidade) – a minha permanência e a subsistência do mundo em mim – ilumina as dificuldades. Passo do pensamento e das sensações para o estado da intuição. Aí na cave do meu ser surge a fonte do bem e a energia da afirmação que transforma a disposição negativa em humor positivo fazendo reconhecer e sentir o aroma e o colorido da vida. Aí inspiro o bem, o belo e o amor num exercício de autossugestão que me leva a sentir o amor universal. Passadas as camadas do ego entro no meu âmago que participa do ser divino, o meu eu espiritual. Neste estado da minha ipseidade brota a vida eterna, a sabedoria e a força – a vida divina envolta no meu ser terreno.

 

Para embarcar e me compadecer com o outro com Deus e com o universo, não chega a introspecção, o discernimento; também é necessária a fé: a força positiva ascendente. No fluxo dos acontecimentos também o JC (Jesus) desceu aos infernos onde se encontram os indefesos e desamparados para os levar ao bem. Também eu, também tu descemos com ele para nele erguer a vida.  A experiência da paciência revela que tudo passa e que a graça, a benevolência, tudo sustenta. O desânimo leva-nos a olhar para o chão, prendendo-nos a ele. Fomos, porém, feitos para andarmos direitos e quando caímos nos levantar. Se, por vezes, nos encontramos encerrados na caverna, ao interiorizarmos a paciência do silêncio, notaremos o sol que nela entra e nos puxa para o alto.

 

O desapego das ideias e das coisas, como ensinavam os padres da igreja, ajuda a suportar a bagagem dos medos, desejos e preocupações que a vida traz consigo. Ao descermos ao interior da natureza entramos em sintonia com o universo reconhecendo nela e em nós o sol e a sombra dele num jogo alegre com o destino. Se as sombras da frustração desanimam, o perdão dá consolação e paz. A água da vida com as suas ondas, que à primeira vista nos parece avassalar e empurrar para a margem, também nos suporta se tentarmos mergulhar no seu interior.

 

O sol brilha para todos. Quanto mais abrirmos as folhas do nosso ego (autoestima exagerada), dominando-o, mais o sol penetra e dá cor à folhagem da nossa vida fazendo aquecer e pulsar o nosso coração. Então os estames brotam do nosso gineceu, o pólen voa e a seiva corre. A sombra das ideias negativas, as preocupações materiais e espirituais afrontam-nos e muitas vezes nem notamos que o que traz o dia é o Sol.

 

Em tempos escuros, entro no silêncio do templo e, aí, aceito as dores do corpo e das emoções e, ao orar, esses laços se desfazem passando a sentir uma realidade nobre. Então as tempestades das ideias observadas do interior perdem as forças das suas ondas e o intelecto transforma-se num mar calmo. Aí já não guio a vida mas a vida guia-me em mim. No meu interior abre-se uma porta que dá para o jardim do silêncio onde vive a sabedoria. Dele surge a força que arreda a dor. Chamaria a esse lugar, o jardim da Trindade onde o material e o espiritual, a tristeza e a alegria se encontram em acção inspirada e não na reacção. Uma vez chegado ao átrio do silêncio notas todas as forças em oração e sentes os entretons e riqueza de bemóis e sustenidos para lá das vozes do ego. Aí no teu interior sentes o “Reino de Deus”, a verdade em ti. Então, sentado à margem da ipseidade já longe das lutas do ego ouves o rumor do mar e do tempo a dar consolação. A natureza levanta-se e anda e seu coração brilha e pulsa no Sol que chama toda a flora a erguer-se e a segui-lo. Então Deus fala, tu e ela, ela e tu, nós, com Deus, participamos do mistério. Deus beija a terra no Sol e beija o Homem na inteligência. Então no encontro com a natureza, Deus reza em nós, para lá do nosso estádio de deserto, savana ou floresta virgem.

 

A dor e as dificuldades são a nossa escola. Quando à noite me envolvo no universo, apagam-se as luzes do meu orgulho e a nuvem da humildade cobre o deserto do meu ego. Na fraqueza sinto o surgir da força universal que me suporta e traz ao colo. Sinto então a energia das ondas em mim, o outro lado da calma. As ondas e o movimento não deixam que a água do meu oceano apodreça. Sim, o sal da vida é doloroso e o desenvolvimento é esforço, mas imagina a água do mar sem sal nem movimento… O azedo faz parte da vida; ele é o sal que a tempera e lhe proporciona duração.

 

Tenho de procurar a verdade tal como o botão procura o sol no verde para poder brilhar no colorido das pétalas. O que muitas vezes espero do outro é simplesmente a satisfação do meu ego, aquilo que o rebaixa a ele e me opia a mim. Tal como o verde das folhas se perde para ressuscitar nas cores da flor assim deve morrer o meu ego para poder ressuscitar na realidade do novo Adão (o meu eu profundo e nobre). Uma vez transformado o ego, encontro-me no chão da divindade onde se encontram as pessoas da trindade: ela, tu e eu, no nós abrangente do Paráclito. Aí a dor passa a ser o tempero e o movimento a relação entre incarnação e ressurreição. (Para mim, a Trindade é a fórmula da realidade toda numa). À desilusão na vida emocional e à dor na vida corporal segue o louvor (agradecimento) na vida espiritual. A cruz apenas me acorda da matéria para o espírito. É necessidade inerente à vida onde o sol brilha e Deus nos sustém. Quanto mais alto fica o monte do calvário mais se avista da vida. A felicidade não se encontra ao nível do pensamento porque este é alérgico à dor e esta encontra-se no seio da natureza tal como o sangue no nosso corpo.

 

A vida é feita de dor e alegria, como o dia contem a noite. Dor e alegria são mais que experiência; são condição vital. A fuga à dor é uma força instintiva do ego; é prisão à concupiscência sem compreender a necessidade da prisão do ter pena de si mesmo. Por trás dos acontecimentos há energias. Muitos ideais religiosos pretendem uma reacção positiva a diferentes situações. Autonomia e autoestima são valores de inter-relacionamento numa realidade do nós em que floresce o tu e o eu.

 

As bofetadas do destino estão em relação com o ego, a zona inferior do ser. A chave para se apagar as dores exteriores encontra-se no interior do coração. A força e a vontade exercitam-se resistindo à fraqueza.

 

Não reajas ao primeiro estímulo ou à primeira ideia; espera um pouco, conta até dez, não resignes. Se sentes ódio, imagina o sol do perdão que abre o horizonte. Sofre com o outro a dor que ele talvez ainda não sente. Tem compaixão – essa qualidade de sofrer e se alegrar com a natureza no outro. Se te queres superar, ora; na oração – também na oração secular – encontras a ressonância do todo no louvor e no perdão.

 

Há dias, uma pessoa amiga de 35 anos, em S. João da Madeira, pedalava numa bicicleta, quando seu coração deixou de bater. Caiu para o lado, deixando dois filhos, de três e cinco anos, uma mulher e uma grande casa. A dor subiu às casas deixando, banhadas em lágrimas, a família e amigos. O meu amigo Toninha “desceu aos infernos” banhado em lágrimas para depois “subir aos céus” e nos poder receber com um sorriso, a nós que lamentávamos a morte do seu filho.

 

A dor extrema leva-nos ao conhecimento último sobre a realidade da vida. No centro do eu profundo, o instinto e o ego são iluminados. Nestes momentos nem a religião apresenta solução para o mistério da vida, apenas ajuda a recuperar energias para novas etapas num processo de contínua mudança que pressupõe um contínuo repensar e metanoia. Em momentos trágicos, só o espírito pode mover as energias latentes em nós. Humildade e paciência são o plinto para se superar a frustração, o medo e a dúvida. As ventanias do destino obrigam-nos a agarrar-nos ou a deitar-nos ao chão para depois nos erguermos. É a lei da vida. Também as rajadas do Outono tiram as folhas velhas das árvores para darem lugar a novas.

 

Resta-nos a generosidade e a compaixão. Faz bem a quem te faz mal. Ao perdoar, domestico o próprio ego. Na compaixão lavam-se as feridas da lembrança e regeneram-se as lágrimas engolidas. “Perdoai, como nós perdoamos”, diz o mestre da Galileia. Endurecimento é lei da matéria mas não do espírito. É preciso mudar a configuração da vida para poder mudar-nos a nós e mudar a sociedade.

 

Como a natureza segue o sol também nós temos de formar a vontade, uma vontade superior com uma meta teleológica a atingir. Para isso teremos de começar por nos perguntar o que queremos fazer da vida e o que a vida tem feito de nós. Para seguires a vontade superior teremos de depor as armas do ego, que são as armas da convicção e do querer ter razão numa realidade descontextuada. Teremos de entrar na ressonância universal. Para isso, além de procurar o bem é necessário entrar no relaxe corporal e espiritual, exercitando a fé integral. A resistência encontra-se em nós procurando fazer passar toda a energia da vida pelo pequeno fio de resistência que é o nosso ego (eu inferior). O ego serve-se das muletas do pensamento e do sentimento filtrando tudo à sua medida, encrustando a dor. Debaixo das ondas da dor descansa imperceptível a vida interior.

 

É preciso penetrar para lá das crustas físicas, mágicas ou mentais que constituem as órbitas do ego, para poder entrar em esferas superiores na ressonância da compaixão com o universo e com Deus que constitui o centro da ipseidade (eu nobre e profundo). Através do caminho da introspecção que conduz à vivência interior, o corpo e o espírito entram em sintonia começando tudo a fluir no amor.

 

Para facilitares o acesso aos reflexos da graça e à paz interior coloca-te numa posição agradável, inspira profundamente (respiração ventral) o sol e o amor e deita para fora a treva, expira os cuidados que tens em ti. Mergulha na energia divina, ela está em ti, está em tudo e cura tudo. Corpo e espírito mesclam-se um no outro. O corpo é expressão do espírito tal como a natureza é expressão do espírito universal. Tudo surge do espírito e se encontra a caminho dele. O universo vive em contínuo dar à luz, tu e eu, nele, também. A Terra regista no seu ser as diferentes regiões naturais/climáticas e também os ventos com as suas altas e baixas pressões que contribuem para um equilíbrio de afirmação e repouso a caminho de nova fase. Também as pessoas variam entre o entusiasmo e a depressão registando nelas as diferentes mudanças. Constatado este fenómeno comum à natureza e ao estado de alma das pessoas, há que intervir agindo para se não deixar ir na enxurrada de apenas reagir.

 

Amiga, amigo, desce à cave, despe-te da roupagem do ego que te não deixa sentir o calor e a maciez da pele do outro. Confia e confessa-lhe teus entusiasmos e mágoas. Desnudado e paciente transformarás os ferimentos do outro, modificarás aquelas dores que te fazem sofrer a ti e ao outro; elas transformar-se-ão em alegria para ti no outro. Em baixo, no chão da vida, nu experimentas a energia universal. Então sentes a energia do movimento de rotação e translação a convergir em ti e te descobrirás, com o outro, a caminho do ponto Omega de Teilhard de Chardin. Aí se junta a energia masculina e a energia feminina num só ser, o ser adulto. Então as ideias negativas, que são o veneno do sentimento e do pensamento criam novos espaços novas atitudes, salvando-vos um ao outro. Então os géneros não se juntarão para se afastarem. Um não quererá mudar o outro; não será mais professor um do outro, mas sim aluno um do outro. Um é a oportunidade existencial do outro para se poder desenvolver.

 

Desce à cave mas descobre, ajoelhado (a), em oração, na nudez assumida, a causa da resistência dum ao outro que impede a mudança para uma nova acção. Pela nudez passa e corre a água salutar que em vós jorra.

 

Enquanto o ego for movido apenas pelas forças centrípetas da inteligência e da emoção o eu adulto e o outro serão desvirtuados. Então seríamos meteoritos, que embora brilhantes, se encontram em queda livre, à margem das forças ordenadas nas órbitras da criação, faltando-lhe a ligação ao espírito do todo que tudo sustém (trindade!).

 

O Filho do Homem veio em Jesus e no Cristo e nós realizamo-lo também. Nele e em nós se reúne a deidade à criatura. Esta é a perspectiva: agir, ser senhor/a, e não apenas reagir como faz o escravo/a. Até a Terra reconhece que não é autónoma, reconhece e dá lugar ao Sol no seu ser. Fazemos parte duma ordem universal e do mistério para o qual importa orientar o nosso saber e sentir. Se entrares em ti, no âmago do ser, o espírito te guiará e não o ego. Não te tornes dependente; tens a gene do divino. Aceita a ordem universal a que pertences, não te tornes satélite e menos ainda meteorito. Não te sobrecarregues nem sobrecarregues o outro. Cada dia traz, para cada qual, a sua carga e esta já é suficiente.

 

O fatalismo tal como a liberdade da vontade são verdades condicionadas. Não podemos andar sem meta. Como o dia, trazemos em nós o sol e a noite, a alegria e a dor, a transitoriedade e a eternidade. Nós somos o sentido do ser!

 

Antes de tentares mudar alguém ou criticar uma situação ou nega-la pergunta-te primeiro qual é o ensinamento que ela te quer dar. Admite as leis da vida. Não fujas nem fiques na câmara escura do teu ser. Reconhece a luz. Se te orientares pelo espírito as mazelas perdem o brilho que o ego lhes empresta. O bem vence sobre o mal embora aparentemente pareça o contrário.

 

A dor duma pessoa centrada no ego (em si mesma) é mais forte porque não tem sentido. Só o tempo a apaga. O que se encontra nas esferas do espírito ultrapassa o tempo, conduz a uma maior consciência, uma compreensão integral dum todo complementar; nela se experimenta o sentido profundo da vida que não se pode confundir com o sentido dos remos que a empurram.

 

A dor pode purificar o ego egoísta no sentido duma identidade superior. O ego identifica-se no acontecimento e perde-se na percepção do mesmo. As vivências e experiências são oportunidades para dominarmos os acontecimentos sem nos tornarmos vítimas deles. Para isso, é necessário andar de braço dado com a vida no bem e no mal, para ir mais além.

 

Se desejas mudança em ti terás de mudar o teu ambiente, se desejas a mudança do outro tens de te mudar a ti primeiro. Sem mudança não há futuro e o presente não passa de recordação! A decisão é tua.

 

Quanto às feridas que uma pessoa tem é necessário deixá-las cicatrizar, doutro modo, quanto mais se arranha nelas mais elas sangram e se apoderam de ti. Se se torna difícil colocar os vestidos no cavide, por outro lado, também a nudez não é inocente…

 

Se queres ser tu, tenta pensar e agir a partir do nós! Nele fomos criados e a ele voltamos! De resto, “ama e faz o que queres” (como dizia já Santo Agostinho)!

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

A Alma da Europa sofre – O seu Corpo também

QUINQUAGÉSIMO ANIVERSÁRIO DO CONCÍLIO VATICANO II

António Justo

Há 50 anos (11 de Outubro 1962) a Igreja Católica apostou no aggiornamento. João XXIII convocou os bispos de todo o mundo a reunirem-se em Roma, em concílio (2.400 bispos de todo o mundo, acompanhados de 200 teólogos e 100 observadores doutras confissões cristãs, cf. HNA de 15.10.2012).

 

Na abertura do Concílio, o Papa João XXIII deixou o trono em que era transportado e seguiu a procissão a pé.

 

O Vaticano II começou por reformar a liturgia passando o sacerdote a celebrar a missa de cara virada para a comunidade. A língua litúrgica (latim) deu lugar às línguas vernáculas. A primeira ordem maior – Diácono – precedente da ordenação do padre e da consagração de bispo, passa a ser acessível a homens casados. Intensifica-se o diálogo com outras confissões cristãs (ortodoxos e protestantes) através do movimento ecuménico. Os judeus passam a ser vistos como irmãos mais velhos dos cristãos.

 

Com o concílio a Igreja procurou reconciliar-se com o mundo moderno reconhecendo a liberdade religiosa e empenhando-se no diálogo com outras religiões. O reconhecimento da Igreja católica da liberdade religiosa fundamenta-se no Novo Testamento e no facto de cada ser humano, segundo a doutrina cristã, (imagem e filho de Deus) ser portador do gene divino e como tal a sua dignidade ser intocável e ter liberdade de consciência. A igreja institucional precisou de muito tempo para reconhecer na prática, os valores cristãos que a revolução francesa secularizou. Facto é que uma religião como o Islão, que não reconhece a dignidade humana ao indivíduo, não permitindo consequentemente a liberdade religiosa à pessoa, critica o catolicismo de se ter comprometido demasiado com o modernismo e acusa a “imoralidade” ocidental como consequência da liberalização.

 

Desde o Concílio tem havido grandes discussões e controvérsias entre a ala conservadora e a ala progressista da Igreja. Em águas agitadas da História, em momentos de transição, como aqueles em que nos encontramos, não é fácil chegar-se a compromissos na base da consideração das duas alas entre si. Um problema grande para a eclésia é o facto de muitos dos seus filhos prescindirem da comunidade e se arrogarem a apresentar o seu conceito de igreja como um conceito absoluto (no caso um absolutismo contra outro), quando segundo a mística católica se deve pensar e agir não só a partir do eu mas especialmente a partir do nós (cf. Trindade). Deparamos, por vezes, com uma tendência absolutista por parte da estrutura e um individualismo absolutista por parte de muitos dos seus críticos. De que há falta são personalidades fortes dentro da eclésia. Por todo o lado se encontram indivíduos célebres aplaudidos e feitos por esta ou aquela ideologia sem preocupação pela comunidade, que como o individuo é fraca, precisando os dois de ajuda. A ordem do dia para uns e outros poderia ser: ter compaixão uns dos outros na empresa da metanoia individual e eclesial!

 

De facto, os conservadores, se não o dizem podem pensar o seguinte: o que os progressistas exigem do Vaticano já se encontra praticado pela igreja evangélica e esta parece ter ainda mais dificuldade em congregar gente no serviço religioso do que os católicos. Por outro lado, se a Igreja Católica se aproxima mais da prática protestante isso corresponde, ao mesmo tempo, distanciar-se da Igreja Ortodoxa e das outras religiões. Por outro lado, o conservadorismo e autoritarismo reinante entre os muçulmanos têm ajudado os maometanos a afirmar-se nos meios seculares europeus. Também se observa nos meios progressistas (Europa e USA) uma mentalidade racionalista por vezes à margem da fé! Uma razão sem fé é fria e uma fé sem razão é escura. A desarmonia já se encontra no ser de cada pessoa. Para uns a necessidade de salvação manifesta-se numa aspiração individualista e para outros numa ideia colectivista. A situação da igreja institucional não é de invejar. Dará erros se se orientar para o conservadorismo e errará se se movimentar para o progressismo. O único elo que dará consistência a uma igreja diferenciada é o amor. Sempre que o amor falte na relação seja da parte institucional ou da parte individual, perderam as duas partes a razão, porque o que mantem a relação entre o tu e o eu é o nós (o paráclito). Deixa de haver acção para se passar à reacção e a reacção fomenta a entropia.

 

A ideologia torna-se cada vez mais forte, querendo uma minoria europeia e americana impor a sua mundivisão como a medida da renovação sem considerar a visão doutras igrejas cristãs fora do Ocidente. Muitas vezes parece confundir-se ideologia com fé. Por outro lado seria possível uma igreja petrina forte em que as igrejas locais tivessem mais poder de iniciativa.

 

Um outro problema institucional é o facto de, no cristianismo, um bispo por poder sacramental estar à frente duma igreja e poder continuar igreja mesmo separando-se da Igreja mãe. (Em 1970 o bispo Marcel Lefebvre não aceitou a celebração da missa em vernáculo fundando a Fraternidade Sacerdotal Pio X que exige o regresso às práticas anteriores ao Vaticano II). O Papa para os não perder tem-se esforçado dando-lhes a mão, mas ao fazê-lo descontenta aqueles que querem uma igreja mais ao modo do mundo moderno. Isto torna mais difícil as conversações e os consensos. Por isso até uma minoria de bispos pode condicionar a tomada de decisões a nível do Vaticano. Também a mim me custa verificar que a Igreja Católica não dê mais um passo abrindo o diaconado às mulheres. Um presbiterado, demasiado masculino, não se encontra muitas vezes preparado para um mundo que embora de comportamento macho afectado, é, na sua alma, feminino.

 

Parece ser óbvio que a Igreja petrina se abra mais no sentido da Igreja joanina.

O catolicismo, primeiro modelo e ideal global de comunidades orgânicas complementares, tem a consciência de ser uma comunidade de crentes (Communio) no mundo e não uma cultura que se quer impor ao mundo.

 

 

O desenvolvimento da personalidade humana inerente ao cristianismo é único numa fenomenologia das culturas. Naturalmente que uma religião que fomenta o Homem adulto não pode comportar-se como outras culturas que o querem súbdito.

 

É doloroso verificar-se como a Igreja Católica é atacada, quando ela continua a ser a garante da memória da Boa Nova que dá consistência a um mundo ocidental desorientado. Uma cultura, uma civilização precisa, para subsistir, não só da masculinidade da política e da economia (corpo) mas também da feminidade da religião (alma). Portugal atingiu o apogeu da sua história no momento em que melhor soube unir os dois elementos (corpo e alma) no seu agir (Formação da nacionalidade e Descobrimentos).

 

 

António da Cunha Duarte Justo

Antoniocunhajustogmail.com

www.antonio-justo.eu

Fanatismo religioso disciplina o Modernismo secularista

O Estado protege Criminosos e negligencia os Cumpridores da Lei

António Justo

A maneira como a política e a sociedade reagem à provocação de caricaturistas e à violência islâmica favorece a confusão das mentes. Uma arte banal e de mau gosto quer provocar os sentimentos religiosos de pessoas crentes, mostrando Maomé nos braços duma mulher nua, o Papa de nádegas nuas, Jesus como homossexual, etc. Quer-se desviar a atenção das pessoas dos problemas reais para discussões paralelas, servindo-se assim os extremistas muçulmanos e uma economia liberalista agressiva e desumana, como se os valores do Ocidente se reduzissem à liberdade de expressão ou à famigerada tolerância. Nos baixios de sociedades em desgraça domina a satisfação baixa do rir-se uns dos outros.

 

No que diz respeito à avaliação da liberdade de expressão na arte, a sociedade ocidental usa dois pesos e duas medidas. De facto, um Islão militante, consegue conquistar compreensão e até respeito pelas manifestações violentas contra a sua difamação, como se vê na discussão pública e na reacção da política. A violência e o medo, daí resultante, determinam a lógica e a argumentação pública. A avaliar por comentários políticos, a gravidade não vem do acto em si mas das possíveis reacções a ele. A arbitrariedade dos argumentos a favor e contra ultrapassa a razão e a ideia de liberdade.

 

Chega o cinismo duma caricatura, o fanatismo de „Innocence of Muslims“,ou a ganância duma editora que, para atrair as atenções, publica uma caricatura de Maomé na certeza que as mesquitas movimentarão (às sextas-feiras, depois das orações rituais) enormes massas, chegando aí a serem legitimados actos de violência criminosa.

 

Há um vídeo anti-islâmico. Há também muitos filmes e caricaturas anticristãos. Por exemplo, aqui na cidade de Kassel a “Caricatura” tem uma exposição de caricaturas. Numa delas Deus Pai diz para o filho Jesus na cruz: “Eh tu, eu fudi a tua mãe!” Os responsáveis de “Caricatura”, apesar do protesto escrito de cristãos, continuam a exibir tal caricatura em nome da arte e da liberdade de expressão.

 

A publicação de caricaturas ridicularizadoras do maometanismo é considerada perturbação da ordem pública por ferir os seus sentimentos religiosos; a ridicularização de símbolos cristãos não é relevante. O mesmo público, que condena a acção provocadora de caricaturistas ofensores do Islão, acha normal e até sinal de liberdade a difamação de símbolos cristãos. Será que se pensa que os cristãos não têm sentimentos religiosos ou que são demasiado tolerantes?

 

Se o radicalismo e a violência passam a ser o critério de orientação para avaliação e decisão na sentença pública, então a política e a opinião publicada dá a perceber que os cristãos para serem tomados a sério e ouvidos, teriam de se tornar violentos e radicais. Dado a política tomar mais a sério a violência/medo do que a atitude pacífica descrimina a agressão pela positiva e a atitude cristã pela negativa. No mundo ocidental chegou-se ao extremo de quem nega as suas fontes (greco-judaico-cristãs) e difama o cristianismo é considerado progressista e defendido como representante da modernidade.

 

Um secularismo impúdico ao apoderar-se das democracias e dos órgãos de Estado dá cada vez mais margem ao extremismo, numa tática de submeter a razão ao medo e ao oportunismo. A perversidade do pensamento e da moral encontra-se na ordem do dia e agindo em nome duma democracia medrosa e envergonhada. Nela parece valer cada vez mais a máxima: direito recebe-o quem perturba a paz pública ou os lóbis parasitas que se assenhorearam dos Estados!

 

Naturalmente que aqui está mais em jogo do que a mera liberdade de expressão!

 

Ao fanatismo do “Innocence of  Muslins”, segue-se o fanatismo de massas maometanas; à tolerância cristã, nas sociedades ocidentais, segue-se o abuso do fanatismo secular.

 

Por outro lado, Estados de cultura árabe estão habituados a mandarem na sua terra ao ponto de incendiarem igrejas, perseguindo crenças não maometanas, sem que alguém os moleste por isso. Além disso querem mandar na casa dos outros sob o manto da hegemonia da religião. A reacção da política e dos Média, bem como a intervenção da Nato nas suas regiões, tem-lhes dado razão.

 

O abuso com filmes e com caricaturas contra a religião cristã tem sido protegido e querido pela política ocidental. Agora chegam estes estrangeiros a chamá-la à reflexão. Será um abuso eles quererem impor a sua ordem na casa dos outros?

 

Também é um facto que o secularismo tem abusado e engordado à custa do sentimento religioso cristão. O medo do poder secular da Europa perante o sentimento religioso muçulmano irá fazer aplicar leis anti-difamatórias da religião, de que indirectamente aproveitarão os cristãos. Os de fora vêm impor respeito pela religião! E de que maneira! Pelos vistos o braço secular parece entender mais de violência do que de paz!

 

Encontramo-nos perante um paralelismo intrigante: depois dos Descobrimentos as vítimas de perseguições religiosas na europa emigraram para a América em fuga ao fanatismo reinante; essa mesma Europa vê hoje o seu liberalismo extremo questionado pelo fanatismo árabe. Há que procurar uma nova estratégia de diálogo sem recorrer à blasfémia, à difamação, à exploração nem a grosserias; segundo a desleixada máxima cristã: na humanidade reside a divindade! Cada pessoa crente ou descrente é filho de Deus!

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

antoniocunhajusto@gmail.com

A nova Ordem social e humana a implementar

O Mestre da Galileia inicia um novo Eixo da História

Deus não encarna numa Cultura mas no Homem

 

António Justo

“Mestre, vimos um homem a expulsar demónios em teu nome e procuramos impedir-lho porque ele não anda connosco…” – “Não o proibais… Quem não é contra nós é por nós…”. “Se alguém escandalizar algum destes pequeninos…melhor seria… o lançassem ao mar”. Se a tua mão…, se o teu pé…, se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena…” Mc 9,38-43.45.47-48 (1)

 

Dois pontos de referência: o Homem é mais que ele mesmo, é tornar-se.

O velho Adão (Homem) significa a separação de Deus; o novo Adão (Jesus Cristo) significa a união nEle. O mestre da Galileia explica a diferença aos seus discípulos.

 

Para se ter acesso intelectual a este texto é necessário ter-se em conta o contexto social em que foi proferido. O texto enquadra-se na disputa que havia entre os Judeus defensores da tradição antiga de Moisés e os Judeus seguidores da Boa Nova de Jesus (N T). As disputas eram por vezes violentas e escandalosas. Era o embate duma tradição autoritária institucionalista e legalista, fechada em si mesma (AT – aqui o Homem é apenas objecto, destinatário de salvação) com uma visão radicalmente nova, aberta a todo o ser humano, em que o Homem é agente (NT- aqui o Homem é sujeito activo, receptor e emissor de salvação – possui o gene divino) sendo, nesta, o Homem e Deus o centro de tudo, num processo de evolução humana até à estatura do protótipo Jesus Cristo (JC). (2) Deus não encarna num livro mas no Homem. (3).

 

Um outro elemento do contexto está na discussão, entre os discípulos, de quem entre eles seria o maior. Não tinham percebido a nova maneira de estar e ser na nova ordem humana e social JC. Nela a dignidade vem de baixo, surge do servir, do interior onde se encontra o germe divino a desenterrar numa atitude de louvor a Deus bem condensada no Magnificat.

 

A atmosfera de competição religiosa, inveja, intolerância e do escândalo provocado levam Jesus a ter de explicar, de forma clara, o que ali estava em jogo: duas mundivisões quase antagónicas na maneira de entender o mundo, Deus e o Homem (de notar que no AT havia a vocação messiânica que desagua no JC, o problema estava nas diferentes facções e vivências; ao falar aqui de AT refiro-me à lei petrificada e alienatória que obriga as pessoas a terem medo e a andarem de cabeça baixa). Também os seus discípulos se embrenhavam nos conflitos, por vezes, ainda com o espírito velho e isso provocava escândalo entre os fiéis mais frágeis, aos “pequeninos” na fé. De facto, os discípulos queriam reservar para si a patente JC e construir muros, tal como os “fariseus„ faziam. Ainda não tinham compreendido que a porta de acesso ao divino e ao humano é o Homem no JC e não uma mera doutrina/lei.

.

Jesus emprega uma linguagem simbólica e usa nela as imagens de expressão da época.

Embora o radicalismo das imagens pareça ser uma hipérbole, as metáforas usadas querem incutir no discípulo a seriedade e a radicalidade da nova maneira de ser e definir a Realidade e o Homem (democracia humana radical – eclésia). Nas metáforas, aqui empregadas usa-se o órgão pela função que desempenha (método de comunicação muito usado na Bíblia). As mãos, os pés fazem aquilo que se vê e que é natural a partir duma visão antiga legalista, opressora da pessoa e da liberdade individual. Por isso é preciso cortar radicalmente com a visão/olho e os meios/pé e mão que levam à sua realização. Na lei há uma mão (agir velho), um pé (submissão: porque Jesus é contra o domínio lava os pés dos discípulos), um olho (visão/mentalidade velha), que não pode ser assumido na Boa Nova; chegou a hora de usar o olho divino.

Jesus não manda lançar fora os dois olhos, as duas mãos, os dois pés na Geena. Sabe que a realidade se expressa de maneira bipolar e por isso escolhe exemplos de órgãos duplos. Isto porque a pessoa consta de duas componentes, a materialista e a divina. Trata-se aqui de deitar fora a parte má de nós. Aquela que nos impede a salvação e o acesso ao bem. Na nova visão do mundo iniciada em e por J C há uma dimensão trinitária, não apenas a dualista. Todos são chamados a sacrificar algo. O sacrifício por maior que seja ainda é pequeno comparado com o mais importante que é o reino de Deus e a tragédia da catástrofe que seria tornar-se lixo.

 

Também não chegam as obras porque também estas podem acontecer numa relação de objecto-sujeito e não de sujeito-sujeito (A ortodoxia deve ceder a uma ortopraxia relacional pessoal). Esta implica uma relação sujeito-sujeito (à imagem da relação entre Jesus e o pai no JC). O Homem novo é fundamentalmente desobediente ao ambiente porque é filho de Deus e não da lei.

 

O Filho do Homem quer reiniciar a criação e estabelecer uma nova ordem e uma nova mentalidade em certo paradoxo com a tradição. O que estava em questão não era a passagem duma crença para outra nem duma ideologia para outra. O que estava em questão era a destruição dos muros elaborados para a subjugação do Homem e em benefício de alguns. Tudo o que prejudica o desenvolvimento do Homem deve ser sacrificado. As coisas não têm valor se não servem o Homem. A grande viragem axial da História iniciada pelo JC é o reconhecimento (consciência nova) que o novo Homem se encontra no centro do ser, na divindade. Agora não se trata de descobrir Deus fora porque ele se encontra dentro, como se verifica no JC. Tarefa do Homem é integrar em Deus a sua parte de fora. Por isso o Cristianismo é muito mais que uma religião, não podendo, por isso, ser reduzido a uma cristandade, nem deixar-se abusar tornando-se preparador de ovelhas submissas para uma sociedade política e económica que se expressa mais pela exploração do Homem do que pela sua libertação.

 

A mudança (metanoia) não pode acontecer sem o corte total com a maneira de pensar e agir normal (habitual). A dor que custa o cortar com o passado, com o homem velho, não é nada em comparação com a nova vida. O Homem novo passa a ser fonte de vida, deixando de beber a água menos límpida trazida por outras vias/mentalidade patriarcalista proveniente duma sociedade de tribos ou de ideologias arrogantes. A pessoa nova é filha de Deus e não apenas adepta ou súbdita! A filiação divina concede a todo o Homem, por natureza, a dignidade de participar na divindade e tornar-se também obreiro de salvação. As estruturas exteriores são condicionalismos necessários mas a purificar também. O Homem, para entrar nesta nova ordem do Homem e da criação (novo eixo da História, nova infra e supraestrutura), terá que mutilar muito do passado e iniciar uma mudança de atitude. O Homem novo já não se restringe à verdade empacotada na roupagem da lei ou da cultura porque a verdade acontece na pessoa livre e sem medo de Deus nem do diabo. O valor da lei e da cultura, se não é contra o Homem serve de referência, podendo tornar-se numa pedagogia/liturgia de iniciação. Todos nós precisamos duma referência e esta implica também o reconhecimento da eclésia (Deus, a Realidade não é só pessoa mas também comunidade!); se não fosse a Igreja com o seu pecado, por muito estranho que pareça, (até o espírito precisa dum corpo limitado!) a cristandade não teria passado dos primeiros séculos e da vivência de pequenos grupos. Através da culpa e nela conseguiu afirmar-se no mundo entre sociedades também elas a viver da culpa (“Oh felix culpa”- reconhecia Paulo!) Sem a culpa teríamos perdido a memória! Ela faz-nos conscientes e abre-nos a porta de entrada para o JC. O seguimento do JC exige a auto-renúncia (deixar o homem velho) para assumir a atitude do JC e assim se tornar no sal da terra. Por isso é preciso cortar o lixo em nós.

 

Geena era a lixeira de Jerusalém; o fogo dessa fogueira era alimentado pelos restos (lixo) não aproveitáveis, aí lançados pelos moradores da cidade.

 

Jesus, nestas conversas com os discípulos, procura iniciá-los na nova mística (no novo Adão) que está a irromper na nova concepção da realidade na natureza JC e na sua comunidade. Ele está muito preocupado com o escândalo que uns e outros dão aos “pequenos na fé” ao defenderem posições numa práxis ainda do velho Adão.

 

Jesus corta com um Deus senhorial, que legitimava, consequentemente, todos os senhorios sociais e humanos. O lugar de acontecimento divino não é já a sinagoga, a lei nem a moral de costumes. O lugar do acontecer divino passa a ser o Homem, a terra. Deus desce à terra (encarnação!) e não ao templo nem a uma cultura, como era dantes (deslegitimou toda a cultura ou ideologia que se arroga para si o monopólio da divindade; neste sentido, também atitudes senhoriais da igreja petrina, e especialmente o Islão são um regresso a um “antigo testamento” legalista). Esta é a grande revelação do cristianismo. Deus entra no mundo pelo Homem, pelo JC e o acesso ao divino e ao humano é agora o Homem, através do seu protótipo e da natureza JC. As instituições, as leis, os gurus e as autoridades perdem a sua relevância. O ser humano, na convergência do JC atinge agora a sua maioridade, deixa de ser criança e de ser escravo do exterior. Nos nossos genes trazemos a divindade e a materialidade, temos uma personalidade múltipla. Daí a necessidade duma aprendizagem pedagógica. Por vezes o espírito encontra-se enterrado mesmo no fundo de nós. Necessita da ajuda dos irmãos (eclésia) e do Espírito Santo para adquirir consciência e realizar a natureza JC. A dignidade não vem do cargo nem do serviço mas do servir com a consciência de ser verdadeiramente um membro da família de Deus a realizar o Seu reino. Não há mestres, todos estão vocacionados a ser caminho, verdade e vida em serviço e interacção com o JC. Mesmo aquele que se usa de Jesus para expulsar os diabos, se o faz no seu espírito isto é suficiente porque o novo reino, não se confina à pertença a este ou àquele grupo, é uma atitude de tudo em todos num esforço comum de assumir a natureza JC. Na resposta que deu aos discípulos, Jesus condena a sua mentalidade de arame farpado, apontando para a tolerância do bem noutros ambientes. Não é relevante o religioso ou o profano, qualitativo é o serviço do Homem, ao Homem à medida do JC. Há muitos cristãos anónimos que actuam no espírito de Cristo e muitos cristãos registados que não entenderam o espírito (natureza) de Cristo, isto é, a realidade que são nEle. Há que aceitar a diferença, todos nos encontramos a caminho… A nova ordem não se delimita pelo muro das definições ou pertenças mas pela consciência da filiação divina. A nova orientação não é o templo nem a lei mas o Homem e em todo ele se encontra enterrado um tesouro a descobrir.

 

A nova ética é estar em serviço, não servindo nem sendo servido. Agimos todos para o bem na tarefa de realizar o JC em nós e no mundo. O JC não pretende substituir um sistema antigo por outro sistema. Ele sabe que os sistemas se definem pelo poder que legitima a violência entre si e contra terceiros. Por isso o JC aposta apenas no Homem, na pessoa humana, que é vítima de si mesma, das estruturas, da lei e até da moral. (Esta é uma razão porque a Igreja apela à transformação do homem a nível individual não se pondo à frente de revoluções) Na nova ordem do mundo e do Homem não há uns a dar ordens e outros a cumprir, nele todos são filhos divinos em atitude de servir uns aos outros no espírito de uns nos outros. O ajudar o outro é ajuda a mim na construção do nós. Se todos os filhos do rei são príncipes, todo o ser humano é príncipe na realeza divina. Por isso não pode haver escravos nem senhores, apenas filhos. Não se trata de se procurar a salvação mas de salvar-se salvando em comunhão com o JC no amor do Paráclito.

 

Com o JC o Homem alcançou a sua maioridade e plenitude (transformação do velho Adão no novo Adão), tendo de se regenerar a partir de dentro, numa caminhada do Jesus para o Cristo. No cadinho da nossa vida teremos de expulsar o lixo, aquilo que nos impede de resplandecermos a divindade.

 

Quem entra na relação com JC encontra-se na fonte da vida que é o Paráclito, passando este a agir nele. JC quebrou os muros do eu para mergulhar no nós, na divindade, onde cada pessoa assume a consciência de todas as pessoas numa imanência transcendente (corpo místico e realidade trinitária).

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

 

(1)                 Para Marcos o acesso a Jesus Cristo só é possível mediante uma mudança radical de atitude e mentalidade, uma visão espiritual (ver com o olho de Deus) porque, num mundo que vive sobretudo de exterioridades e da afirmação pelo contrário, a identidade do Messias encontra-se oculta, precisando duma pedagogia especial, duma iniciação (catarses do intelecto e da prática) para se poder chegar a ela (evolução do Adão velho para o novo Adão). O JC encontra-se na intimidade do céu com a terra, por isso é preciso subir ao céu para poder compreender a terra. Os discípulos, ainda mal iniciados, discutiam acerca do céu e da terra mas principalmente a nível de intelecto e da velha mentalidade (olho do domínio) sem a “vivência” da fé que parte da intimidade/unidade (reino de Deus) e não da divisão.

(2)                 Resumindo: A mentalidade semita de estrutura autoritária tribal representada num Deus distante e legalista (Moisés, AT) com a subjacente concepção de Homem escravo, objecto de salvação, é contrariada pela nova atitude judaica expressa no JC que reconhece em Deus o pai e em cada Homem um filho de Deus e como tal sujeito de salvação; esta mundivisão desautoriza as instituições e as leis que se afirmem no sustentáculo da velha mentalidade. Esta nova consciência de ser e estar no mundo é de tal modo revolucionária que levou os historiadores a considerar o JC como eixo da História. De notar que apesar de 2000 anos passados ainda prevalece nas pessoas e nas instituições a velha mentalidade. A “democracia de filhos de Deus” em que cada Homem é realmente “príncipe herdeiro”, continua, duma maneira geral a ser uma utopia cristã.

(3)                 Deus não encarna num livro, numa língua, numa cultura mas no Homem. O centro do acontecimento não está na Bíblia, no Corão, no Templo, na nação, no costume, no chefe mas no Homem, filho de Deus. A lei, a tribo, a nação, a cultura não podem subordinar o Homem individual. Cada ser humano, como filho de Deus faz parte duma realidade maior! A sua dignidade é intocável (Daqui os direitos do Homem). A incarnação/inlibração de Deus no Corão constitui um retrocesso histórico; por isso continuam a subjugar o Homem à sua cultura. Com JC a referência de pensamento religioso passa a ser uma pessoa e não um abstrato, um constructo. O organigrama de pensamento e social tem de ser elaborado ao contrário, pondo a pirâmide ao contrário. Pensar o eu a partir do nós, do nós divino.