MÚSICA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: O SOM QUE ACOLHE OU AFASTA

Da calma ao caos: como o rasto sonoro invisível dos nossos dias influencia o nosso humor, o nosso consumo e o nosso bem-estar

Vivemos numa era de pouco silêncio. O ruído de fundo tornou-se uma constante, da azáfama do trânsito aos ecrãs que falam, dos cafés às praças públicas. Neste panorama, a música surge como uma dupla face: pode ser uma companhia que acalma ou uma invasão que agride. A fronteira é ténue. Quando o volume sobe demasiado ou os graves fazem tremer as paredes, o prazer transforma-se em incómodo. O som, afinal, tem o poder de moldar comportamentos, estados de espírito e até decisões de consumo (1). A questão que se coloca é: como podemos usar a música para criar espaços mais acolhedores e harmoniosos?

O Ritmo Certo para Cada Lugar

A chave está na adequação. A mesma música que anima uma festa pode ser tormento num hospital. O sucesso da experiência sonora depende de entender o espaço e o seu público.

Nos Centros Comerciais, o objetivo é incentivar a permanência. Estudos indicam que música clássica suave ou instrumental relaxante cria uma atmosfera de calma, convidando os clientes a circular sem pressa (2). Pelo contrário, batidas agressivas de techno ou pop alto geram cansaço e ansiedade, antecipando a hora de sair.

Em Restaurantes e Cafés, o sabor também é sonoro. Estilos como jazz suave, bossa nova ou música acústica facilitam a conversa e permitem saborear a refeição (3). Já a música alta e ritmada força os clientes a elevarem a voz, criando um ambiente de fadiga que prejudica a experiência.

Nos Hospitais e Unidades de Saúde, o som deve ser um aliado da cura. Música clássica, sons meditativos ou da natureza demonstraram acalmar pacientes, reduzindo a ansiedade (4). Qualquer som alto ou com graves marcados deve ser evitado. Curiosamente, até a pecuária beneficia: vacas produzem mais leite com música clássica (5). Se o efeito é tão poderoso nos animais, no ser humano é ainda mais evidente.

Nos Espaços Públicos, como praças ou jardins, a música deve ser um pano de fundo discreto e inclusivo. Música neutra, tradicional instrumental ou ambiental são boas escolhas. O problema reside nos sons graves agressivos e no volume excessivo, que se transformam numa imposição para todos, inclusive para os vizinhos.

Em Casamentos e Festas, o equilíbrio é crucial. Música clássica ou coral marcam momentos solenes com dignidade, enquanto pop, tradicional ou rock leve podem animar a pista de dança, se o volume for moderado. O excesso de colunas e graves desconfortáveis pode transformar uma celebração num incómodo. Muitas vezes, são animadores sem formação adequada que, tal como o cozinheiro, se tornam os “senhores da festa”, ditando um ritmo que nem todos conseguem acompanhar.

O Verdadeiro Vilão é o Volume e os Graves

Mais do que o estilo musical em si, são o volume elevado e os graves profundos os principais causadores de conflito. Estas frequências têm um poder invasivo único: atravessam paredes, vibram no corpo e impõem-se a quem não as escolheu. Os mais afetados são frequentemente os mais vulneráveis: pessoas sensíveis, idosos, crianças ou doentes que, no seu direito ao descanso, se veem a braços com uma invasão sonora com impactos comprovados na saúde (6).

Música como Ferramenta de União e não de Divisão

A música é uma das forças mais poderosas de união humana. Quando usada com critério, pode e deve ser uma ferramenta de bem-estar e inclusão. Numa sociedade já marcada pelo stresse e pela aceleração, não precisamos de estímulos sonoros agressivos, mas de sons que promovam a harmonia, o encontro e a permanência.

A boa música de ambiente é aquela que não se impõe, mas que transforma positivamente a experiência de quem a ouve. É tempo de elevar o padrão e exigir profissionalismo e respeito pelo bem-estar coletivo. Afinal, como defende o autor, merecemos mais do que a lógica do “para quem é bacalhau basta”.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo

Notas de Referência:

(1) North, A.C., & Hargreaves, D.J. (1998). The Social and Applied Psychology of Music. Oxford University Press.

(2) Milliman, R.E. (1982). Using Background Music to Affect the Behavior of Supermarket Shoppers. Journal of Marketing.

(3) Caldwell, C., & Hibbert, S.A. (2002). The Influence of Music Tempo and Musical Preference on Restaurant Patrons’ Behavior. Psychology & Marketing.

(4) Chanda, M.L., & Levitin, D.J. (2013). The Neurochemistry of Music. Trends in Cognitive Sciences.

(5) Alworth, L.C., & Buerkle, S.C. (2013). The Effects of Music on Animal Physiology, Behavior and Welfare. Lab Animal.

(6) WHO (2018). Environmental Noise Guidelines for the European Region. World Health Organization.

 

Estilo / Som Efeito no Sistema Nervoso Impactos Positivos Impactos Negativos (excesso/volume alto) Contextos Ideais
Clássica (ex. Mozart, Bach) Ativa sistema parassimpático → relaxamento Acalma, melhora concentração, pode favorecer produção de leite e vínculos afetivos Pouco impacto negativo salvo desagrado pessoal Estudo, leitura, hospitais, centros comerciais
Meditativa / New Age Reduz cortisol, regula respiração, induz estados alfa Relaxamento profundo, melhora sono, útil em ansiedade Pode induzir sonolência em excesso Yoga, meditação, salas de espera, retalho
Pop / Música ligeira Estimula ligeiramente sistema simpático Humor positivo, familiaridade, sociabilidade Pode distrair em excesso ou ser repetitiva Centros comerciais, rádios, eventos sociais
Rock / Metal Forte ativação simpática, descargas de adrenalina Catarse emocional, energia, identidade de grupo Stress, irritabilidade, fadiga auditiva Concertos, ginásios, não recomendado em repouso
Tecno / Eletrónica (baixos fortes) Estímulo motor intenso, ritmo rápido → excitação Energia, incentivo a dançar, sensação de fluxo corporal Stress, insónia, pressão arterial elevada, ansiedade Festas, clubes, ginásios
Ruído urbano (trânsito, obras) Ativação simpática involuntária (stress) Nenhum (exceto habituação em alguns casos) Stress crónico, distúrbios de sono, irritabilidade – (melhor evitar)

 

O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS 

(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, ao ser confrontado em férias com o triste latir dos cães)

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pêlo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu:

«Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras.

«É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor:

«Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu:

«Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite.

«Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
https://poesiajusto.blogspot.com/2025/09/o-concerto-dos-caes-acorrentados.html

A RESSONÂNCIA DO “OBRIGADO”

O outono pintava de ocre e carmesim os jardins do antigo sanatório, agora convertido em residencial para seniores. O Dr. Eduardo Almeida, neurologista aposentado, observava a paisagem da varanda do seu quarto. O seu mundo, outrora palco de diagnósticos certeiros e intervenções precisas, reduzia-se agora àquele espaço e àquela vista. Um frio interior, um “cortisol” da alma, como ele próprio, irónico, definia, mantinha-o num estado perpétuo de luta surda contra a irrelevância. A sua mente, treinada para o cepticismo científico, via a vida como uma sucessão de reações bioquímicas, onde conceitos como “gratidão” lhe pareciam placebos para mentes fracas.

A sua rotina era solitária. Até que, numa tarde, um novo habitante chegou à residencial. Apresentou-se como António. Trazia consigo uma serenidade palpável, uma luz nos olhos que contrastava com a penumbra do lugar. António fora educado num mosteiro na sua juventude, e trazia consigo hábitos antigos.

Todas as noites, pontualmente às nove, António parava à porta do Dr. Almeida. Não impunha a sua presença, mas simplesmente ali ficava, com um sorriso tranquilo.
– Boa noite, Doutor – dizia ele, com uma voz que era uma carícia.
O Dr. Almeida limitava-se a anuir com a cabeça, num gesto seco. Mas António insistia, gentilmente.
– Hoje, o sol entrou pela minha janela e aqueceu o chão. Fui grato por esse momento de graça. E o Doutor, teve algum instante pelo qual se sinta agradecido?

Eduardo revirava os olhos. “Instantes de graça?”, pensava. “A única coisa pela qual poderia ser grato é que a minha artrose não doeu tanto hoje.” Mas a persistência serena de António começou a criar uma fenda na sua armadura. Ele lembrava-se do texto que lera sobre gratidão, daquelas ideias que considerara “pensamento positivo”. No entanto, algo no tom de António ecoava aquelas palavras: “a energia da gratidão dá saúde e amplia os nossos próprios horizontes”.

Uma semana depois, num dia particularmente cinzento, o Dr. Almeida, movido por um impulso que não conseguiu decifrar, murmurou em resposta:
– Bom, a sopa… a sopa estava quente. – Soou ridículo aos seus próprios ouvidos.
O rosto de António, porém, iluminou-se.
– Que belo motivo! O calor que nutre o corpo e a alma. Boa noite, Doutor. Durma em paz e grato.

Naquela noite, pela primeira vez em anos, Eduardo adormeceu sem a habitual ruminação de pensamentos negativos. A simples admissão de um pequeno conforto, por mais ínfimo que fosse, operara uma magia subtil. Era como se uma serotonina espiritual, daquelas de que falava Emmons, lhe tivesse sido ministrada.

Os dias transformaram-se. A prática do “Boa Noite” tornou-se um ritual. Eduardo começou a procurar, conscientemente, motivos de agradecimento: o canto de um pássaro, a memória remota de um caso médico bem-sucedido, a gentileza de uma enfermeira. A sua “antena” interior, até então sintonizada na frequência estática do desdém, começou a captar os “sinais electromagnéticos e espirituais” de beleza à sua volta. A sua perceção da realidade alterava-se, reescrevendo, como sugeria o texto, uma memória ancestral que sempre o inclinara para o pessimismo.

O clímax desta transformação deu-se numa manhã de Natal. O salão comum estava decorado, mas o ambiente era da melancólica obrigatoriedade. O Dr. Almeida, sentado num canto, observava os outros residentes, muitos deles mergulhados no seu isolamento. Então, viu António. Com a mesma serenidade de sempre, António aproximava-se de cada um, não para oferecer um presente material, mas para lhes sussurrar algo ao ouvido. Em cada pessoa que ouvia aquelas palavras, observava-se uma mudança: os ombros relaxavam, um sorriso tímido brotava, os olhos marejavam. A gratidão tornava-se presente como uma lua que ilumina o caminho na noite.

Intrigado, Eduardo esperou que António se aproximasse.
– O que estás a dizer-lhes? – perguntou, em voz baixa.
António fitou-o, e os seus olhos pareciam conter a luz de todas as estrelas da noite de Natal.
– Estou apenas a agradecer-lhes.
– Agradecer? O quê? Mal os conheces!
– Agradeço-lhes simplesmente por existirem. Por fazerem parte deste todo. Por estarem aqui e me permitirem partilhar este espaço e este momento com eles. É o meu exercício do “Dia da Boa Morte” (1): agradecer a vida que nos é dada, hoje, agora, intensamente.

António pousou a mão no ombro de Eduardo.
– E a si, Doutor, quero agradecer profundamente.
Eduardo ficou estupefacto. Surpreendido por ter sido agradecido. Ele, que se considerava um fardo, um homem amargo no outono da vida.
– A mim? Pelo quê, pelo amor de Deus?

António sorriu, num gesto de pura e simples fraternidade.
– Por me ter ouvido. Por ter aceitado o meu “Boa Noite”. Por ter permitido que eu praticasse a minha gratidão consigo. A gratidão, para ser completa, precisa de ser partilhada. Precisa de um outro para quem se direcionar. Você, ao aceitar o meu agradecimento, tornou-o real. Foi o recipiente que permitiu que a minha gratidão se manifestasse no mundo. Por isso, sinto-me em dívida consigo. Obrigare (2). Sinto-me ligado a si.

O Dr. Almeida não conseguiu conter as lágrimas. Compreendeu, naquele instante, a dimensão espiritual daquela virtude. Não era uma mera transação de favores; era uma força de ligação, uma ressonância do amor que unia as almas. Ele não era um mero recebedor, mas um elemento vital no circuito da graça. A gratidão de António não o colocava numa posição inferior, mas elevava-os a ambos, criando um laço de fraternização inexplicável.

Naquela noite, o Dr. Eduardo Almeida foi quem procurou António. Parou à sua porta, e com uma voz embargada, mas firme, disse:
– António, boa noite. Hoje… hoje sou grato por ti. Sou grato por teres surpreendido esta alma velha e céptica com o teu “obrigado”. Iluminaste a minha noite.

E, sob a luz prateada da lua, que como uma lâmpada divina clareava as sombras da dúvida, os dois homens trocaram um olhar. Não havia juízo, não havia análise, não havia bem nem mal. Havia apenas, tal como o texto previra, a calorosa, luminosa e amorosa ressonância energética que tudo inundava. Eram, finalmente, gratos e portanto, finalmente, felizes, por lhes ser dada a graça do reconhecimento de interdependência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Alusão ao hábito que tínhamos nos Salesianos de uma vez por mês fazermos o “Exercício da Boa Morte”. O “Dia da Boa Morte” refere-se ao “Exercício da Boa Morte”, uma prática espiritual mensal introduzida por São João Bosco para preparar a comunidade e cada um para o encontro com Deus no momento da morte.  Isto incentivava a revisão da vida através do exame de consciência, a organização pessoal de modo a deixar o nosso interior e exterior em ordem.

(2) A palavra “obrigado” deriva do latim obligatus, particípio do verbo obligare, que significa “ligar”, “atar” ou “ficar preso por uma obrigação”. A palavra dirigida uma pessoa que é com que um comutador que liga, “estar ligado”

Gratidão além de virtude é um remédio eficaz: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/gratidao-alem-de-virtude-e-um-remedio-eficaz

A VILA E O OCEANO: UM BRAMIDO NOS AREAIS (Conto filosófico)

Numa pequena vila de pescadores, três amigos discutiam à beira-mar.

Pedro, o Poeta, olhando o horizonte:

– Para mim, o mar é tudo. O mar é os peixes, as ondas e até a areia molhada. Se tudo é mar, então tudo é divino. Isso é o panteísmo: não há fora, só há mar.

Joana, a Céptica, balançou a cabeça:

– Mas se o mar é tudo, até o peixe podre seria divino. Isso não pode ser certo.

António, o Velho Pescador, sorriu e respondeu:

– Eu penso diferente. O peixe vive no mar, mas não é o mar. O mar é maior que ele. O peixe está no mar, o mar está no peixe, mas o mar não se reduz ao peixe. Isso é o panenteísmo: tudo está em Deus, mas Deus é mais que tudo.

Joana arregalou os olhos:

– Então o mar envolve e sustenta, mas não se confunde com os peixes?

Pedro repensou:

– E nós, onde ficamos?

O silêncio dos três era uma concha que ampliava o rugir do mar, e naquele som das vagas mergulharam numa epifania muda de que Deus é o mar, mas é também o além-mar; um oceano sem margens onde todos os significados se dissolvem e renascem. A noite, encimada por uma lua solene, tecia claros e escuros não apenas na paisagem, mas nos recônditos dos três corações, ainda assombrados pelo bramido que confundia a criação com o Criador, deixando-os a balancear os seus espíritos entre o divino no mundo e o mundo no divino. E, ainda que o diálogo lhes houvesse trazido alguma claridade, Pedro sentiu naquela noite uma maré de ideias em redemoinho, que arrebatou consigo o seu sono.

No dia seguinte, à tardinha, os amigos voltaram a conversar.

Pedro, insistiu:

– Mas se o mar é Deus, eu sou só uma gota sem importância.

António, sorriu e respondeu:

– Não, Pedro. Para nós cristãos o mar verdadeiro é trinitário. Ele não é solidão sem forma, mas comunhão viva. O Pai é como a fonte que gera as correntes, o Filho é o rio que mergulha no mar e nos leva de volta, e o Espírito é a água que circula em todos os peixes e ondas.

Joana, refletiu:

– Então cada um de nós é peixe vivo nesse mar, único, mas ligado aos outros. O mar envolve-nos, mas não apaga a nossa forma. Não somos gotas perdidas, mas pessoas chamadas pelo nome.

António concluiu:

– Exato. Se a Joana fosse apenas gota dissolvida, não haveria amor, nem responsabilidade. Mas porque é pessoa em inter-relação, tem valor e dever. O oceano trinitário não apaga quem és, faz de ti parte de uma dança maior, sem perderes a tua voz.

Os três calaram- se diante das ondas.

Já não era apenas um mar (1).

Era um mistério de amor que os chamava pelo nome e os envolvia, sem jamais os apagar.

António da Cunha Duarte Justo

 

Pegadas do Tempo

(1) Assim, o panenteísmo cristão mostra-se como uma visão do mundo em que Deus está em tudo, mas tudo é chamado a viver em comunhão pessoal com Ele. Diferente do panteísmo, que apaga a pessoa na totalidade, o panenteísmo trinitário preserva a liberdade, a dignidade e a responsabilidade humana diante do cosmos. O mistério trinitário pode ser visto como a chave de leitura da existência: uma “fórmula da realidade” que sustenta o mundo, valoriza a pessoa e orienta a história para a plenitude em Cristo. Para os cristãos, Cristo é como a ponte: Ele mergulha no mar connosco e leva-nos para o coração do oceano infinito. E o Espírito é como a água que circula em cada peixe, mantendo-o vivo.

Ver artigo sobre o assunto: O OCEANO EM NÓS em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10306

PEGADAS DO TEMPO

Não sou só um núcleo, um simples ser,
Sou um verso que o mundo veio escrever.
Antes do berro, no silêncio uterino,
Jazia o fado, um destino divino.

O tempo-espaço, primeira masmorra,
Que liberta a alma e a segura por fora.
Dois seres, um laço, um íntimo desvelo,
Plantaram em mim o futuro no efémero.

Depois veio o mundo, com seus muitos braços,
Normas, culturas, risos e embaraços.
A educação, tecedora de grilhões,
Moldou meus contornos, cosendo opiniões.

Sou Geografia, sou História e Arte,
Sou um mapa de sinais a abrir-se em parte.
Sou Filosofia, sou Política e Mística,
Uma teia de campos que me classifica.

Leio os sinais de trânsito do enquadramento,
As barreiras do corpo, do social lamento.
E aprendi que não basta a inteligência pura,
É preciso esperteza na seara escura.

Para ser a onda que do mar se ergueu,
A rosa única que o jardim teceu.
Há uma tensão no que é tido por normal,
No aceitável, no posto no jornal.

Quem questiona, na margem fica,
Mas sem margem, o centro nada significa.
É no conflito, por mais que doa,
Que a vida avança, que a alma brota e voa.

Não se confunda a Alma com a paisagem,
Não se reduza o Eu a uma miragem.
Que o Ego sozinho é grão de areia fina,
Que o vento leva e nada determina.

A verdadeira essência, sabedoria antiga,
É partir do Eu, mas rumo ao divino
Do Nós, da comunidade, do chão compartilhado,
Onde o ser é Pessoa, em amor entrelaçado.

E assim se forma, na luz e na sombra,
A Pegada do Tempo que me assombra.
Sou eu mesmo e o outro, circunstância e vontade,
Na vastidão do ser, buscando a liberdade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo