Natal é uma Realidade com Simbologia universal

Através do Natal no Lugar da Convergência

António Justo

Natal é o dia do nascimento de um “rei” tornado menino. Este foi um acontecimento histórico, e ao mesmo tempo um evento transcendente e simbólico. Jesus é um segredo de amor, o Deus escondido que vai nascer nas trevas da noite. Não podia nascer de dia porque o nosso dia anda deslumbrado com o fogo mercantil, como mostrou já na expulsão dos vendilhões do templo. O véu daquela noite encobre a luz do verdadeiro dia. Aquela noite é uma noite-dia uma noite feliz a germinar a vida e a dar à luz o futuro.

Jesus quis nascer numa gruta, numa caverna onde os animais, à maneira daquele tempo, se abrigavam. O rei divino não foi nascer na casa do rei nem no templo; ele é a origem de todo o nascimento.

Se observarmos a vida, com olhar atento, notamos que muitos eventos e a própria natureza são, ao mesmo tempo, realidade e metáfora, a apontar para outras dimensões. Ao observarmos a noite e o dia, as estações do ano, a interdependência de estrelas e planetas, os estados do tempo e das nossas emoções, notamos, por trás de tudo isto, um traço divino comum. Natal é o evento de Belém e conjuntamente pode ser o evento do nascimento para nós e para o mundo na gruta do coração, o seio da concepção. Em cada um se encontra um presépio, uma fenda na rocha, pronta a mostrar Aquele que se fez um de nós.O nosso Menino na gruta, é uma luz que vem do chão; é a manhã da neblina a desembrulhar a terra e o céu.

A gruta, a caverna é símbolo da profundidade da criação e da alma. Tal como a árvore, símbolo da vida, mantem as suas raízes escondidas no solo, que é seio a dar à luz e regaço a receber. 

A criança divina surge numa caverna e com ela a energia cristã que, do fundo das catacumbas, leveda a cidade. Conseguiu furar a crosta terrestre, fazer uma fenda, uma amolgadela na superfície onde podemos mergulhar para reaver o mistério da vida. Neste sentido, os monges cristãos, dos começos do cristianismo, com saudades da vida, tornavam-se anacoretas, vivendo no deserto e em grutas. No seguimento da voz que vem do deserto cancelavam a vida do dia-a-dia para fazerem uma experiência de transformação. Aí, nas areias do deserto sentiam os passos de um povo em peregrinação à procura da gruta prometida e donde surge a vida plena. Deserto é o lugar das perguntas e das respostas, o tempo intermediário e preparatório onde nasce a fé para o Natal do tempo aberto. Dele irradia o sol do optimismo, o início da época da graça para toda o ser.

Na gruta ouve-se a voz do coração e a alma a ressoar. Angelus Silesius chamava ao coração a Câmara do Rei, a caverna de ouro.

Jesus nasce numa caverna e é, no fim, colocado num túmulo cavernoso. O divino encontra-se na caverna, o ventre maternal. A caverna, tal como o inconsciente são escuros, são o lugar do oculto. Quem não tem medo desce à escuridão da noite e lá encontra a luz.

Em cada pessoa se encontra um rei, um infante divino prisioneiro, à espera de atendimento e que se lhe abra a porta. O rei é um símbolo de Deus. A criança é por vezes um símbolo da nossa ipseidade (eu interior), do nosso professor interior. Jesus, na idade de 12 anos, instrói os doutores no templo. Também se revela na caverna do templo entre as pedras do intelecto e da ciência.

Aí, todos nós, doutores da lei, somos chamados a tornar-nos “pobres de espírito”, para sermos libertos (do desejo de poder do ego = Herodes) e assim podermos reconhecer o Emanuel e descobrir-nos a nós na pobreza divina. Todo o mundo, nas cores dos reis magos, vem reconhecê-lo a Belém.

Na metáfora da fuga da sagrada família para o Egipto, Jesus repete e recapitula nEle a História de Israel que regressa à casa paterna. No presépio encontram-se o antigo e o moderno, o Egipto e os reis magos (culturas/religiões do mundo).

Por trás de mitos encontra-se verdade nas suas facetas real, histórica, filosófica, religiosa, e mística.

Naquela noite, naquela gruta se junta o presépio da vida. A estrela como destino dos pontos cardeais reúne no presépio toda a criação. Os reis magos prestam-lhe homenagem com ouro (símbolo da realeza) incenso (da espiritualidade) e mirra (da imortalidade). O boi e o burro com o seu bafo condensam o calor da natureza para aquecer o Menino. Será também um burro que o levará para o Egipto e o trará triunfal a Jerusalém. Os anjos com a humanidade simples tudo canta e dá glória ao Deus Menino.

Francisco de Assis ao desnudar-se perante o pai, já conhecia a luz que vem da caverna (presépio). Lá se encontra a vida toda. Por isso, Francisco fomentou a representação do presépio com seres vivos numa harmonia primordial.

O Deus Menino libertou toda a natureza. Ele liberta tudo: o Homem, os povos e também os animais. Por isso Francisco chamava irmãos aos passarinhos, ao burro, à vaca; à vaca dócil e ao burro que por vezes insiste em que lhe respeitem a vontade. Também os animais de exploração agrícola têm o direito ao encontro e ao respeito da espécie. Também neles brilha a luz de Belém.

Em psicologia o burro é símbolo do corpo e da intuição; perante o perigo, logo ele reage e dá sinal. Francisco já dava o nome de burro ao seu corpo. Este reage à voz interior mesmo quando a vontade é dura e a tenta abafar. Quando se ignora a voz da alma, podem aparecer doenças, que são o toque de sino a lembrar que é tempo de ceder, tempo de descer à gruta para ouvir o ressoar da sua voz. A intuição é a voz do coração onde a sabedoria reside. Por vezes, atrelados ao cadeado do calendário, dançando ao ritmo dos afazeres, não se nota que o burro deixou a vida, já anda à rédea solta a dar coices à vida quando o seu mal é Burnout, Bordaline, falta de silêncio ou de carinho.

Natal é o luar onde converge o passado e o futuro, a realidade e o sonho, o desejo e a recordação. É uma realidade à maneira do tempo, impressa na alma da pessoa e dos povos, a querer transcender o tempo e o calendário. É uma maneira de ser, um estado de alma, a reunir a alegria e a tristeza de crianças e adultos, de seniores e jovens, de crentes e ateus, à procura do fulgor de um menino recolhido em Belém. Lá bem dentro de nós, à lareira do presépio, na magia do momento, crepitam desejos e preocupações a mostrar as chamas de um lume mais fundo…

O presépio revela-nos Deus a dizer que o nosso calor, a nossa frieza, a nossa justiça e injustiça são da nossa competência e responsabilidade porque surgem quando deixamos de ser presépio sem lugar para nascer o Deus Menino em nós. O nosso sentimento de justiça tem a ver com as coisas em nós resolvidas ou não resolvidas. Exigir de Deus uma sociedade justa seria exigir dele que nos tivesse criado como pedras sem eu nem tu, sem a diferença do mistério. Um tal Deus seria um deus das ideias, à nossa semelhança, um Deus ideia criado por nós. Um tal mundo perfeito seria um estado sem lugar para sonho, nem para alegria nem tristeza. Como poderia existir a alegria sem a sombra, sem a tristeza que lhe dá contorno? Como poderia haver o mar do sentimento sem a terra da razão que o sustem?

O Deus Menino vem à luz na gruta e não na praça pública. Ele está em nós e só se realiza quando nos descobrirmos presépio a revelar o salvador do mundo. Quando ele nascer em mim e em ti, então o mundo será uma aldeia em festa. Vamos todos à festa, a gruta é a direcção.

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio.justo.eu

NELSON MANDELA – UMA LENDA NOS MEANDROS DO PODER

Uma voz da Consciência no Deserto

António Justo

 

Com Nelson Mandela, a voz da África produziu um eco harmónico no mundo, na luta contra o racismo (regime-apartheid) e no fomento de uma sociedade arco-íris mais justa.

 

Nelson Mandela encarna o grito de África pela libertação e justiça; é um luzeiro que se apaga na idade de 95 anos, a 05.11.2013, sendo ao mesmo tempo filho e pai da África do Sul.

 

O condutor da revolução dos negros contra a ditadura dos brancos filiara-se em 1944 no movimento da resistência ANC (African National Congress). Tinha o objectivo de criar uma África do Sul em que a cor do rosto não contasse, propagava a desobediência civil pacífica e o ataque às infraestruturas do regime branco.

 

Com o massacre de 1961, do regime branco contra os negros, em que a polícia matou 69 demonstrantes pacíficos e perante a proibição do ANC, Mandela radicaliza-se e funda o grupo militante “Lança da Nação”. O “inquietador” Mandela protela aqui a sua atitude de paz e torna-se assim o líder da ala armada do movimento de libertação ANC.

 

Em 1962 é aprisionado, sendo posto em liberdade, 27 anos depois, pelo presidente de Klerk em 1990; este declara ao mesmo tempo o fim do Apartheid e levanta a proibição do ANC. Em 1993 Mandela e de Klerk recebem o prémio nobel da paz. Em 1994 Mandela foi eleito presidente da república e em 1999 renuncia ao poder e distancia-se da política. No seu mandato, preocupara-se com a reconciliação e desenvolveu projectos e iniciativas de repartir terras e distribuir casas baratas aos negros pobres.

 

A política parece não ter espaço para heróis da liberdade nem para pessoas honestas e sinceras. Numa África constituída por sociedades paralelas não se torna fácil a governação. A insatisfação surgiu ainda na presidência de Mandela e aumenta cada vez mais.

 

O governo-ANC que durante os últimos 19 anos tem liderado os destinos do país e que prometera postos de trabalho, igualdade e o fim da pobreza depara-se com a insatisfação generalizada de negros e brancos. Mais de 50% dos jovens encontram-se desempregados e as infraestruturas da nação em mau estado. É lamentável que o ANC confirme hoje todos os clichês dos preconceitos de racistas brancos.

 

A corrupção e a falta de consciência democrática escurecem o futuro da África do Sul. O actual presidente, com quatro mulheres, embora tivesse sido companheiro de Mandela na luta, lidera o país no meio da corrupção.

 

Mandela certamente que entrará no rol da História de grandes homens como Luther king, Ghandi, Oskar Schindler e Aristides de Sousa Mendes.

 

Mandela foi influenciado pelo amigo de longa data Walter Sisulu, testemunhando: “Nasci para ser um governante, devido à minha ascendência, mas Sisulu ajudou-me a perceber que a minha verdadeira vocação era servir o povo”. Tentou ser sempre livre provando esta qualidade num momento em que o poder o queria comprar, respondendo: “só as pessoas livres podem negociar”.

 

O legado político de Mandela não encontra terreno fértil nos meandros do poder. Resta esperar que a África não só produza políticos como Mandela mas que volte a produzir grandes homens da cultura como Agostinho de Hipona e Tertuliano.

 

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

Programa papal – Um Modelo também para a Lusofonia?

A Igreja não é “uma pequena capela” é “uma casa para todos”

António Justo

Um latino-americano mete mãos à obra de reformar uma estrutura europeia de feição demasiado nórdica, demasiado burocratizada. Um novo estilo de vida irá revolucionar o mundo. O Papa Francisco parte de uma perspectiva do mundo para a Europa/Vaticano e já não da Europa para o mundo. Será este o ponto de viragem iniciador da alternativa ao velho mundo?

Em entrevista à revista Brotéria, Francisco apresenta um “programa da Igreja” à altura do tempo. A sua opção pela entrevista, como forma de se comunicar, revela, no seu género, uma mudança paradigmática de relacionamento orientada para o povo, com um programa a partir da base (orto-praxia) e já não orientado para os intelectuais na sua forma típica de encíclica.

O Papa Francisco quer uma Igreja virada para a cura corporal e espiritual da humanidade em geral e das pessoas em particular! Ela é fermento e está para as pessoas que sofrem e não para se perder em lutas ideológicas porque também a doutrina está para servir. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campo após a batalha”. O lema é “curar feridas… começar por baixo… primeiro é preciso curar as feridas sociais”. O cristianismo não é uma ideologia mas uma visão/espiritualidade que deixa liberdade à pessoa: “Não deve haver nenhuma interferência na vida espiritual pessoal”.

Na sua perspectiva, a Igreja não deve continuar a falar continuamente sobre divórcio, gays, lésbicas, aborto e métodos de prevenção conceptiva. A sua missão principal é misericordiosa (caridade), ser e estar para as pessoas pobres e sofredoras e para os falhados, numa palavra, curar feridas. “Não julgues e não serás julgado”, dizia o Mestre. Na prática há demasiados pregadores da moral e não da vida!

O Papa quer uma mudança da perspectiva de reflexão e de orientação. O olhar passa a ser focado na base da pirâmide e não no vértice. Consequentemente as reformas serão conseguidas de baixo para cima e já não ordenadas de cima para baixo. Esta estratégia é benigna, possibilita o crescimento e evita divisões na Igreja. Imaginemos que Francisco, partindo duma posição sobranceira, ordenava a abolição do celibato. Certamente surgiriam logo muitos bispos que provocariam uma cisão na Igreja. Uma Igreja, permeável, que começa a renovação de baixo para cima, cresce organicamente sem necessidade de intervenções revolucionárias. As revoluções favorecem os revolucionários que como o azeite ficam sempre ao de cima da sociedade. A verdadeira revolução humana é Jesuína em que quem tem razão perde aparentemente.

As afirmações e atitudes do Papa levam a concluir que o importante é que cada um siga o seu caminho do amor amando à sua maneira. A sociedade e especialmente a Igreja não devem ser um campo de batalha de esquerda nem de direita. A Boa Nova deve ser o Sol do sistema humano. O amor é anterior à lei e esta deverá centrar-se na busca da justiça. Será importante depor a samarra dum clericalismo burocrático e moralista longe do povo, para se passar a arregaçar as mangas na vinha do Senhor!

O Papa não aposta no jogo dos pensamentos proibidos, é um pastor que pensa em público e quer uma discussão livre dentro da Igreja e da sociedade. Um Papa assim será uma bênção para a Igreja e para a humanidade. Para a Igreja porque a centra no que é importante, no bem das pessoas. Para a humanidade, porque ao ser o expoente máximo da estrutura mundialmente mais global, dá o exemplo de modelos de comportamento a serem seguidos pela classe política e suas instituições.

Francisco ao reafirmar que a Igreja não é apenas “uma pequena capela” mas sim “uma casa para todos” realça o seu universalismo e admoesta aqueles que a querem ver reduzida à própria capelinha. O Cristianismo considera “o outro”, “o samaritano„ como parte integrante de si mesmo e respeita as muitas alternativas de acesso e de interpretação da realidade. Por tudo isto ganha razão a afirmação de sociólogos americanos que, numa afirmação metafórica, diziam que, quando as instituições mundiais entrarem em derrocada, o catolicismo lhes sobreviverá 400 anos.

Querem-se cristãos sem a farda da moral

A sociedade como a Igreja, por mais nobre que seja a sua ética, está sempre condicionada às pessoas e ao espírito que cada época produz. Estas albergam em si o bem e o mal, próprios da pessoa e de cada época. Por isso, mais que ensombrar o pensamento com a crítica ao passado, interessa dar-se graças pelas pessoas luzeiro, de cada época, que conseguem aproximar-se mais da verdade, do bem e do belo no sentido da pessoa e do bem-comum. Para o fomento duma cultura positiva de paz, vai sendo tempo de se passar da crítica destrutiva de pessoas azedas para uma estratégia de fomentar apreciações de pessoas mais benignas e benevolentes.

Naturalmente que agora surgirão os moralistas e burocratas da praça a exigir que a instituição declare esta ou aquela atitude como norma quando isso, no foro da igreja, pertence à responsabilidade e à consciência individual. Por um lado condenam a fixação da Igreja em normas morais e por outro lado exigem que a Igreja declare canonicamente o exercício de certas práticas (aborto, eutanásia…) como objectivas. As ideologias apostam, por um lado na radicalidade dogmática e por outro num subjectivismo puramente anárquico; querem a igualdade do bem e do mal, uma indiferenciação analfabeta que exclua o que poderá ser verdade e o que poderá ser erro. O que quer que o Papa diga continuará a ser aviltado, como diz o provérbio popular: “Preso por ter cão e preso por não ter cão”. Cada um faz a guerra que lhe convém. Os eternos aborrecidos nunca se darão por contentes, querem a imposição de atitudes a partir do cume da pirâmide quando Francisco, no sentido da “ecclesia semper renovanda” sugere que partam ‘democraticamente’ das bases.

Já passaram os tempos da europa bárbara que precisava de ser domesticada com a acentuação na lei e no juiz. “O confessionário não é instrumento de tortura, mas o lugar da misericórdia”, indica o Papa. Francisco quer pastores que, sem farda moral, se encontrem com a pessoa na rua, no seu meio. Em direcção a um certo funcionarismo eclesial diz: “O povo de Deus quer pastores, não clérigos que actuam como burocratas ou funcionários do governo”.

 

Este Papa, de expressão latina, é uma bênção e uma oportunidade para se começar a pensar sobre uma mudança de rescrito cultural e uma metanoia espiritual. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campo após a batalha”.

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

Marcel Reich-Ranicki – O Papa da Literatura alemã morreu

Dos Homens de Caracter que a Democracia não tem produzido

 

António Justo

Marcel Reich-Ranicki morreu a 18.09 em Frankfurt aos 93 anos. Ele, que chegou a estar no campo de concentração nazi (Gueto de Varsóvia), tornou-se no grande advogado da literatura alemã e no crítico literário mais influente na Alemanha que inspirou profundamente, durante dezenas de anos.

 

De personalidade indomável e divertida, era o homem de caracter da vida pública onde a coragem tinha residência; polémico e controverso, com esquinas e cantos, não fugia à luta.

 

Escritores e editores chegavam a ter medo dele. Reich-Ranicki dizia de si “ nunca me encaixei no meu ambiente”. Antes de ler um livro, a que ia fazer a crítica, vestia um fato e punha a gravata. Para ele “o crítico não é um juiz, é o Ministério Público ou a defesa”.

 

Recebeu muitos prémios de literatura mas, quando a TV alemã em 2008, em sessão com a presença de vários canais e de toda a prominência cultural germânica, lhe atribuiu o prémio pelo seu programa “O Quarteto Literário”, Reich-Ranicki, durante a sessão live, subiu ao púlpito e declarou: “Não aceito este prêmio”, porque não se sentia bem na companhia de outros galardoados pela TV e que ele considerava duvidosos.

 

O programa “O Quarteto Literário” fez dele uma estrela de TV e contribuiu para que a literatura, com exigência, descesse a meios não consumidores de cultura.

 

Confesso que quando perdia algum programa dele ficava triste. No horizonte da TV e da cultura quase só se encontra relva sem árvores onde os pássaros da nossa fantasia e dos nossos ideais possam pousar para descansar e ganhar forças para novo voo. Na nossa cultura cada vez se torna tudo mais rasteiro, dificultando, às camadas jovens, a possibilidade de levantarem voo para novos horizontes.

 

No dizer do presidente alemão Gauk  “Marcel Reich-Ranicki, a quem os alemães queriam exterminar, após a barbárie, possuía a grandeza, de lhes abrir novos acessos para a sua cultura”.

 

A sua autobiografia “Minha Vida” pertence à categoria dos livros mais vendidos (bestseller) e onde se pode verificar a crueldade dos nazis e a influência do mal no ideário espiritual duma nação.

 

Morreu um homem da casa, um homem da cultura europeia; uma personalidade que aguentou os ventos do oportunismo e do pensar correcto que lava o cérebro duma maioria de actores da tribuna da nossa cultura.

 

Num tempo de cultura predominantemente rasteira irreflectida e em que a antiga burguesia cultural se proletariza, é importante lembrar pessoas de caracter como esta, para que a Democracia não produza apenas pessoas que, como papagaios, se repetem umas às outras orientadas pela opinião pública ditada pelo pensar correcto.

 

É melhor um Homem com defeitos do que uma sociedade indiferente e defeituosa sem Homens

 

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

Estratégia do colonialismo económico – Suborno cultural

Repensar a Democracia bruta sem Base nem Heróis

 

António Justo

 

O colonialismo económico é um polvo que adapta a sua cor ao sistema político e cultural. Actualmente tornou-se mais forte que a cultura: antes procurava miná-la e agora passou a determiná-la. Tornou-se abusador da Democracia na sua guerra contra as culturas.

 

Para tal, a ética política deixa de ser fundamentada nos valores culturais para ser determinada apenas pela economia liberal de mercado. Consegue-o impondo o pragmatismo/utilitarismo como filosofia política e de vida. O povo encantado dança a sua música, ao ritmo da flauta mágica do mercado.

 

Tornamo-nos todos espectadores de uma guerra, até hoje inaudita, a guerra das elites económicas contra as culturas. Na velha sociedade a burguesia determinava o andamento cultural; na actual são os novos-ricos que determinam o que se há-de acreditar e fazer. A maquinaria económica globalista destrói, por um lado, a dinâmica das estruturas sociais e culturais nacionais e, por outro, desestabiliza os Estados intervindo neles através do fomento da concorrência terrorista seja a nível de grupos subversivos seja a nível de produtos económicos. As sociedades dão continuidade à cultura da guerra, já não a nível de guerras declaradas entre nações, mas numa grande guerra económica liberal de guerrilhas ao serviço de alguns.

 

 A nossa democracia nasceu sob o prelúdio ideológico da guerra fria; pretendia abandonar um colonialismo suave e entrou no colonialismo rijo europeu, de cunho cada vez mais americano e universal. De colonizadores passamos a ser colonizados, primeiro por ideologias e depois pela Europa central que acabou com a nossa independência nacional (imperialismo da Troika: oligarquia europeia e mundial!).

 

A cultura é sistematicamente minada por uma política de legionários estrangeiros, bem pagos, que de patriótico só têm o sorriso. Modificam os nossos padrões de vida no sentido do liberalismo económico das grandes economias sem alternativas de sobrevivência honrada para os pequenos. Antes da opção da economia pelo globalismo, ela vivia principalmente da exploração da classe operária dentro do próprio país e da sua disciplinação através do recurso à imigração; com o globalismo e o seu instrumento Euro, a economia opta pela estratégia da exploração económica e social dos Estados. A estratégia de desestabilização político-económica e cultural dos países tem-se mostrado muito profícua para um capitalismo pragmático apiado, a nível estratégico, por um socialismo indutivo generalizado, também ele destrutor do sistema de valores culturais transmitidos e da coerência social dentro dos estados. Actualmente, grande parte do que se apresenta como desenvolvimento consequente da cultura ocidental, revelar-se-á como seu cangalheiro. A Aliança despercebida, em via, de capitalismo e marxismo como modeladores do pensar político correcto, revela-se altamente eficiente no seu sentido, tendente a idealizar o sistema chinês (nova forma de poder político integradora de capitalismo e socialismo). Com a cajadada na ética cultural enfraquecem os Estados de cultura e ao mesmo tempo fomentam a guerrilha entre as classes operárias e burguesas dos diversos países. Transfere a exploração da classe operária para a exploração dos Estados. A nível social interno, roubam a dignidade às crianças e aos velhos e transformam os cidadãos em pedintes de trabalho. O pragmatismo do mercado financeiro aproveita-se do nosso sistema partidário, todo ele demasiado reaccionário e fixado ainda nas filosofias do século XVIII e XIX. Quer esquerda quer direita são portadoras dum gene capitalista e socialista desumano que os atrela à economia.

 

As elites levedam a massa de modo a ser cozida no seu forno

 

O proletariado e as pequenas burguesias mantêm-se atraídos a espectáculos de feira, deixando-se distrair em discussões e campanhas que têm como objectivo desestabilizar o seu inconsciente cultural e deste modo desenraíza-los e disponibilizá-los para a aceitação das leis dum mercado anónimo e bárbaro. A elite do dinheiro e do oportuno consegue proletarizar a mentalidade de forma que esta reconheça, como não adequado, tudo o que aponte para a formação de personalidades e vontades com a capacidade de reconhecer não só a linha do horizontal como também a linha do vertical com componentes da dimensão real (intelecção e pragmatismo).

 

Assim, no autocarro da democracia insurgem-se grupos contra heróis e santos porque a sua presença e aura seria uma afronta à igualdade da massa democrática que se quer insegura, proletária, de cabeça baixa, sem horizonte nem Sol. O destaque reserva-se para o acidental dum vedetismo culto que se finge sem culto no firmamento da economia. A democracia quer-se “esclarecida e moderna” e, para tal, burla-se a massa mudando o nome às coisas e criando uma ética negativa negadora da comunidade e da verticalidade. A admiração e a gratidão, própria de amimais superiores já não parecem adequadas a uma massa que se quer não levedada, numa democracia bruta a viver só ao nível das necessidades vitais primárias. Esquece-se que até no reino irracional há valores superiores, valores de sintonia e solidariedade que brilham como o Sol no horizonte da caminhada.

 

Aquando da morte de Lawrence Anthony, que dedicou sua vida a salvar elefantes, deu-se um fenómeno insólito. Elefantes selvagens, pressentindo o falecimento do seu amigo, a muitos quilómetros de distância, deixaram a reserva, pondo-se a caminho da casa dele durante dias. Dois dias depois da morte de Lawrence (7.03.2012), 31 elefantes, em duas manadas, chegaram à sua residência sul-africana depois de terem andado 20 Km. Ficaram, dois dias sem comer nem beber, a fazer o luto pela morte do amigo; depois de prestada a homenagem voltaram para a selva. O reconhecimento e a gratidão não diminuíram a honra dos elefantes, pelo contrário, prestigiou-os, elevando-os à categoria de humanos.

 

Porque há-de o brilho duma outra pessoa ensombrar o meu brilho? Uma sociedade temperada com o adubo da concorrência facilmente se deixa ofuscar pelo fumo da inveja. Palavras como, virtude, sacrifício, caridade, missão, respeito, Deus, são enxovalhadas por questionarem o pensar propagado pelo pragmatismo hedonista corrente. Naturalmente que também as palavras estão sujeitas a evolução e há palavras distintas como a palavra mártir que são desacreditadas pela prática dos “mártires” muçulmanos suicidas que se matam matando. Esta é, porém, a negação da ideia de sacrifício que implica entrega amorosa pelos outros. A existência de pessoas respeitadoras da atitude de cada um, mas dedicadas ao voluntariado, ao serviço dos mais necessitados em hospitais, bairros pobres, missões, etc. parece incomodar pessoas que optam por estilos de vida mais orientados para o gozo imediato. A ideologia vigente não tolera, fora dela, luzeiros, porque prefere viver da banalidade do quotidiano irreflectido esquecendo que a natureza também tem lugar para os outros.

 

As boas obras têm uma aura respeitadora enquanto as más têm uma força arrastadora para o mal. A reflexão crítica que, por vezes, se levanta contra heróis, quer desconhecer as diferentes fases de desenvolvimento de cada individualidade. É óbvio que senhores de sucesso dúbio não gostem que se louve o sucesso alcançado servindo.

 

Uma ideologia irreflectida opõe-se ao heroísmo porque vê nele um ataque ao status quo, à igualdade democrática e ao princípio da comparticipação, como se a igualdade jurídica acabasse com as diferenças dentro da espécie ou do género. Também a democracia tem produzido muitas vítimas: as vítimas anónimas da concorrência desleal, de bens, de armas e da discriminação. Onde há vítimas precisam-se salvadores! Não precisamos de nenhuma casta que seja divinizada. Todos nós trazemos connosco o gene divino mas isso não significa que haja uma inclusão de igualdade pela rasoura como se não fossemos todos dignamente diferentes e como se a diferença não fosse um valor consagrado pela natureza. É óbvio que cada pessoa tem o direito moral a uma atitude interior de poder actuar ou não segundo requisitos morais. O dissenso deve originar-se em relação ao mal e não ao bem. A lógica dos críticos acerbes do heroísmo teria como consequência a desistência de todo o desporto e até de qualquer investigação científica que desse origem a um prémio Nobel. No desenvolvimento da identidade individual e da identidade de sociedades haverá sempre a rivalidade de incongruências a humanizar. No que toca ao heroísmo também há muita exploração dos sentimentos humanos em todas as eras. O facto de cada pessoa ser igual perante a lei não a iliba da diferença pela positiva ou pela negativa. A paz precisa de heróis porque se encontra embotada sob o manto duma democracia com políticos imunes sem rosto, demasiado iguais, e dum povo de rosto cada vez mais igual porque lavado na lixivia cultural da massa. Não se trata de defender aqui um modelo de sociedade antiga de caracter mais voluntarioso nem de condenar uma sociedade moderna permissiva; trata-se de reflectirmos para melhor podermos ser nós a decidir, sem os superegos antigos ou modernos, na construção dum mundo, cada vez, melhor.

 

A inveja e o individualismo parecem, por vezes, justificar a sacarificação da cultura à massificação de ideias leves e a uma proletarização de atitude e de espírito. A nossa democracia representativa tem muitas coisas boas, mas padece da falta de heróis do bem-comum: falta-lhe rebeldes da democracia (também de sindicatos e patronatos) que interfiram no processo, de modo a poder dignificá-lo. Para progredirmos, será indispensável repensar a nossa cultura em termos de restauração dos valores culturais pilares do nosso imaginário, cientes que a consciência individual e social precisa de contínua actualização (renovação). Ela tem sido devastada sistematicamente pelo barbarismo irresponsável de dançarinos dum pragmatismo engravatado ao serviço dos empertigados do poder. Para já precisamos de santos profanos e sagrados, de grupos fortes defensores da cultura, precisamos de pessoas da acção, que melhorando se melhorem. Os heróis da democracia não se encontram na mó de cima mas na mó de baixo. No sentido duma cultura cristã, herói não é o que ganha mas o que perde. Enquanto não entendermos esta lógica, a História continuará, cada vez mais na mesma, com a maior parte da sociedade a trabalhar para uma minoria abusadora e cínica.

 

Não chega uma ética pragmatista natural e económica: precisamos da matéria e do espírito como precisamos da comida e do ar para podermos viver; a primeira finalidade duma ética política será a cultura do bem-comum; uma ética respeitadora da alma da cultura numa tensão responsável, entre o velho e o novo, entre biótopo e cosmopolitismo, possibilitadora de uma motivação fundada e teleológica. Os interesses individuais precisam dum sistema que os integre.

 

Torna-se urgente uma política da justiça acompanhada duma política da verdade. Encontramo-nos a grande velocidade no retrocesso cultural. Deixar de acreditar na cultura, na solidariedade, na fé e no amor é voltar aos tempos bárbaros.

 

António da Cunha Duarte Justo

 

www.antonio-justo.eu