Islão entre Religião e Projeto Político

Uma Análise Crítica

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução

A compreensão do Islão enquanto fenómeno civilizacional requer uma análise que transcenda a mera dimensão religiosa e interesses globalistas. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre as dimensões política, social e psicológica desta tradição, não com o intuito de denegrir, mas de examinar objetivamente as suas estruturas de poder e a sua relação com o indivíduo e a sociedade. Trata-se de reconhecer que o Islão constitui, simultaneamente, uma religião e um sistema político-jurídico completo, com implicações profundas na organização político-social e na relação entre instituição e pessoa humana.

A Dimensão Político-Institucional do Islão

O Islão distingue-se de outras tradições religiosas pela sua natureza intrinsecamente política. Desde a sua fundação, Maomé não foi apenas um profeta religioso, mas também líder político, militar e legislador. Esta fusão entre din (religião) e dawla (Estado) permanece central na cosmovisão islâmica, onde a Sharia não é apenas código moral, mas sistema jurídico completo que regula todas as esferas da vida pública e privada.

Esta característica confere ao Islão uma capacidade singular de mobilização social e estruturação política. A Ummah (comunidade de crentes) não se define apenas por laços espirituais, mas constitui uma entidade político-religiosa transnacional que transcende fronteiras e nacionalidades. Esta dimensão comunitária, quando instrumentalizada, pode gerar uma dependência mental profunda, onde a identidade individual se dissolve na identidade coletiva religiosa.

Mecanismos Psicossociais de Subordinação

A estrutura institucional islâmica estabelece uma relação específica entre o crente e a autoridade religiosa. O indivíduo encontra a sua dignidade e legitimidade social primariamente através da pertença à Ummah e da submissão (islam significa literalmente “submissão”) aos preceitos estabelecidos pela tradição e interpretados pelas autoridades religiosas.

Este modelo cria uma dinâmica psicológica particular. A dependência mental da estrutura religiosa pode gerar uma massa moldável que, simultaneamente, se sente vulnerável enquanto indivíduo, mas empoderada enquanto parte do coletivo religioso. Esta tensão resolve-se frequentemente através da projeção: complexos de inferioridade histórica ou socioeconómica são sublimados na convicção de pertencer à “única religião verdadeira e superior”, conferindo ao crente um sentimento de superioridade espiritual que compensa frustrações materiais ou políticas.

Esta dinâmica psicológica pode justificar, aos olhos do crente, uma postura agressiva face a outras tradições religiosas, percebidas como inferiores ou desviantes. A guerra contra os “infiéis” (kuffar) torna-se então não apenas legítima, mas nobre, isto é, uma missão sagrada conduzida por uma certeza inabalável que, em casos extremos, pode assumir características delirantes.

O Terrorismo Islâmico expressa uma Ambição Globalista

O terrorismo de matriz islâmica distingue-se de outros terrorismos pela sua natureza absoluta e declaradamente universalista. Enquanto outros movimentos terroristas possuem objetivos territoriais ou políticos circunscritos, o extremismo islâmico fundamentalista opera com uma lógica globalista, aspirando ao estabelecimento de um califado mundial onde a Sharia seja lei universal.

Esta ambição não é marginal ou periférica ao pensamento islâmico, mas conecta-se com conceitos teológicos centrais como dar al-Islam (território do Islão) e dar al-Harb (território da guerra), que dividem o mundo em duas esferas: aquela onde vigora a lei islâmica e aquela que deve ser conquistada ou “pacificada”.

Importa sublinhar que esta visão extremista não é partilhada pela totalidade dos muçulmanos, mas encontra respaldo em interpretações literalistas e tradicionais de textos fundacionais, o que explica a sua persistência e capacidade de recrutamento. E é um facto que o islão não inclui uma teologia interpretativa de o Coroa dado este ser considerado escrita direta e literal divina e como tal imutável circunscrevendo-se propriamente a uma jurisprudência. Terroristas são por vezes vistos como os verdadeiros intérpretes dos interesses islâmicos, o que leva, por vezes, até muçulmanos moderados a não intervir para não entrarem em contradição com suras do Corão.

A Conivência Política Ocidental

Paradoxalmente, sectores significativos da elite política europeia têm demonstrado uma tolerância seletiva que favorece a expansão da influência islâmica, mesmo quando isso implica o enfraquecimento das tradições cristãs autóctones. Este fenómeno, aparentemente contraditório, torna-se compreensível quando analisamos as afinidades estruturais entre certos modelos políticos contemporâneos e a organização islâmica da sociedade.

Para políticos orientados por agendas centralistas e pela realpolitik, o modelo islâmico de subordinação do indivíduo à instituição apresenta vantagens evidentes. O Islão oferece um paradigma de cidadão submisso, onde a autonomia individual está subordinada à autoridade religiosa (e, por extensão à autoridade política). Este modelo contrasta com a tradição cristã ocidental, particularmente na sua vertente católica e protestante, que assenta no conceito de soberania da consciência individual.

As elites políticas europeias, desejosas de consolidar estruturas de poder supranacionais e de criar cidadãos mais “administráveis”, encontram no Islão um aliado inesperado. Daí a tendência para idealizar o domínio islâmico histórico na Península Ibérica (Al-Andalus), enquanto se caracteriza como “agressiva” a Reconquista cristã, invertendo os papéis históricos de conquista e recuperação territorial.

Cristianismo e Islamismo: Duas Antropologias Políticas contrárias

A diferença fundamental entre o Cristianismo e o Islamismo reside nas suas respetivas antropologias e na relação que estabelecem entre indivíduo, instituição e transcendência.

O Modelo Islâmico: Dignidade por Pertença

No Islão, a dignidade da pessoa deriva fundamentalmente da sua pertença à Ummah e da sua submissão aos preceitos religiosos. O indivíduo não possui autoridade ou dignidade intrínsecas que precedam ou transcendam a instituição religiosa. A sua identidade e valor são funcionais; ele é o que é (o seu ser define-se) enquanto membro da comunidade islâmica. (Por isso sociedades islâmica reservam-se limitações à Carta dos Direitos humanos).

Esta conceção tem consequências políticas profundas: o crente islâmico e a pessoa humana, não é soberano sobre as instituições, mas subordinado a elas. A autoridade flui de cima para baixo, da revelação divina através das instituições religiosas até ao crente individual, que deve obedecer.

O Modelo Cristão: Dignidade Ontológica e Soberania da Consciência

O Cristianismo, particularmente na sua elaboração teológica católica, tem uma antropologia radicalmente diferente. A dignidade humana (independentemente de ser cristão ou não cristão) não deriva da pertença institucional, mas da condição ontológica de “filho de Deus”, toda a pessoa tem uma dignidade intrínseca, inalienável, anterior a qualquer filiação institucional.

Esta concepção tem implicações revolucionárias: o cristão não é mero instrumento ou função da instituição religiosa, mas possui soberania própria enraizada na sua relação direta com Deus. A consciência individual torna-se, assim, instância suprema de discernimento moral, mesmo quando em tensão com as determinações institucionais.

O exemplo do sacerdócio católico ilustra esta peculiaridade da pessoa humana. Um padre, ao receber a ordenação, recebe poderes sacramentais que a própria Igreja não pode retirar-lhe. Se este sacerdote se torna dissidente, a Igreja pode proibir o exercício do seu ministério nas suas igrejas, mas reconhece que os sacramentos por ele administrados permanecem válidos, embora ilícitos. Esta distinção entre “válido” e “lícito” revela o reconhecimento de uma dignidade e poder que transcendem a instituição, residindo indelevelmente no indivíduo ordenado.

Este princípio da soberania da consciência, desenvolvido ao longo da história cristã encontra-se baseado no Novo Testamento que levou ao conceito moderno de direitos humanos inatos e estabelece o cidadão como soberano; esta ideia é profundamente perturbadora para sistemas políticos autoritários ou totalitários e também para as democracias partidárias. A China reconheceu esta situação razão pela qual o sistema quer ter mão na nomeação de bispos.

A Impossibilidade de um Cristianismo “Modernizado”

Dada esta estrutura antropológica, qualquer tentativa de “modernizar” ou “agiornare” o Cristianismo, no sentido de o tornar compatível com ideologias coletivistas ou de subordinar a consciência individual às instituições políticas, representa uma traição da sua essência.

O Cristianismo pode e deve adaptar-se aos contextos culturais (Zeitgeist) no que respeita a formas externas, costumes e linguagem. Mas não pode, sem se contradizer, abandonar o princípio da primazia da sua consciência e da dignidade ontológica da pessoa humana. Um “cristianismo” que reduzisse o crente a mero súbdito ou funcionário institucional ou que negasse a soberania da consciência deixaria de ser cristianismo.

Importa reconhecer que a maioria das massas, sujeitas à formatação social operada pelas elites através dos meios de comunicação e do sistema educativo, nem sempre compreende ou vive esta dimensão emancipadora do Cristianismo. A manipulação da opinião pública pode criar uma dissonância entre os princípios cristãos autênticos e a sua compreensão social, permitindo que até crentes se deixem seduzir por ideologias coletivistas incompatíveis com a sua própria doutrina e tradição. Ao fazê-lo abdicam da sua soberania intrínseca para se tornarem súbditos e peças meramente funcionais da máquina.

O Voluntário, o Involuntário e a Manipulação Social

A análise destas dinâmicas não pode ignorar a complexa relação entre o voluntário e o involuntário, o consciente e o inconsciente, nos processos de adesão ideológica e religiosa. Longe de uma oposição binária simples, estas dimensões frequentemente se confundem.

O involuntário constitui um campo fértil de confusão que atravessa mentalidades e dinâmicas culturais e sociais. Muitos aderem a determinadas visões do mundo não por convicção racional plenamente consciente, mas por condicionamento social, necessidades psicológicas não reconhecidas, ou pressão do ambiente cultural. Esta dimensão involuntária pode ser instrumentalizada por líderes religiosos ou políticos hábeis na manipulação de símbolos e narrativas.

O Islão, com a sua estrutura ritualística intensa (cinco orações diárias, jejum do Ramadão, etc.) e o seu sistema abrangente de prescrições comportamentais, cria um ambiente de condicionamento permanente que torna particularmente eficaz esta instrumentalização do involuntário. A repetição constante de atos de submissão tende a moldar não apenas o comportamento externo, mas a própria estrutura psicológica do crente, reduzindo progressivamente o espaço de autonomia crítica.

A Estratégia Política do Islão: Inteligência ou Esperteza?

Quando analisamos o Islão enquanto projeto político, torna-se evidente que estamos perante uma estratégia sofisticada, adaptável e pragmática. Mais que simplesmente inteligente, revela-se “esperta”, isto é,  capaz de instrumentalizar até a mentira em nome de objetivos superiores.

O conceito de taqiyya (dissimulação) e kitman (ocultação de verdade) em certas tradições islâmicas, particularmente xiitas mas também presentes no pensamento sunita, permite ao crente ocultar a sua fé ou dissimular as suas verdadeiras intenções quando a situação o exige. Mais controversamente, existe uma corrente interpretativa que considera que uma mentira em defesa do Islão pode ser moralmente legítima, mesmo virtuosa.

Esta flexibilidade ética fascina certos políticos ocidentais, habituados aos constrangimentos morais da tradição cristã e do humanismo liberal. Veem no pragmatismo islâmico um modelo de eficácia política desembaraçada de escrúpulos, adequado a um mundo competitivo e a uma realpolitik onde os fins justificam os meios.

O Imperialismo Mental Globalista

O fenómeno que assistimos é, em última análise, a convergência entre dois projetos globalistas: o Islão expansionista, que aspira ao califado universal, e o globalismo político-económico ocidental, que aspira a estruturas supranacionais de governação e a cidadãos desprovidos de enraizamento cultural profundo e de consciência crítica.

Ambos os projetos beneficiam da erosão das soberanias nacionais, da relativização das identidades culturais tradicionais (exceto a islâmica, que é simultaneamente promovida), e da formação de cidadãos submissos, conformistas, administráveis.

O moderno imperialismo mental procura criar uma humanidade homogénea, desprovida de resistências culturais profundas, facilmente mobilizável pelos meios de comunicação de massa e pelos algoritmos das redes sociais. Neste contexto, a tradição cristã, com a sua ênfase na dignidade individual e na soberania da consciência, constitui um obstáculo que precisa ser neutralizado.

A promoção do Islão nas sociedades ocidentais não deve, assim, ser compreendida primariamente como multiculturalismo genuíno ou respeito pela diversidade religiosa, mas como instrumento de uma estratégia mais ampla de desconstrução das tradições que sustentam a autonomia individual e a resistência aos projetos totalitários.

Entre Lucidez e Confronto

Esta análise crítica não pretende fomentar ódio ou discriminação contra muçulmanos enquanto pessoas. Cada ser humano, independentemente da sua tradição religiosa, possui dignidade intrínseca e direito ao respeito. Muitos muçulmanos vivem a sua fé de forma pacífica e são eles próprios vítimas do extremismo e especialmente as mulheres, consideradas estatualmente pessoas de segunda classe.

Contudo, a lucidez exige que reconheçamos as diferenças estruturais entre sistemas civilizacionais e as suas implicações políticas e sociais. O Islão, enquanto sistema político-religioso, apresenta características que o tornam pouco compatível com os princípios fundamentais da civilização ocidental moderna: separação entre religião e Estado, primazia da consciência individual, igualdade de género, liberdade de expressão e de religião (incluindo o direito de abandonar a religião).

Pretender que estas diferenças não existem, ou que são superficiais, constitui uma forma de cegueira voluntária que apenas beneficia aqueles que pretendem instrumentalizar o Islão para objetivos políticos. A verdadeira tolerância não exige que fechemos os olhos à realidade, mas que a confrontemos com honestidade, coragem e respeito pela verdade.

A Europa e o Ocidente enfrentam, assim, um duplo desafio: resistir à instrumentalização política do Islão por elites globalistas que procuram cidadãos submissos, e simultaneamente preservar os princípios de dignidade humana, liberdade de consciência e soberania popular que constituem o melhor da sua herança civilizacional; esta herança encontra-se profundamente enraizada, ainda que nem sempre reconhecido, na tradição cristã.

A resposta não passa pelo fechamento xenófobo ou pela intolerância religiosa, mas pela afirmação confiante dos nossos próprios princípios, pela exigência de reciprocidade (os muçulmanos que vivem no Ocidente devem respeitar os princípios fundamentais das sociedades que os acolhem, tal como se espera que os cristãos nos países islâmicos respeitem as leis locais), e pela recusa de qualquer cumplicidade com projetos totalitários, venham eles embrulhados em retórica religiosa ou secular.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O autor do artigo é um teólogo, pensador e analista social português, dedicado ao estudo das dinâmicas civilizacionais e religiosas contemporâneas.

 

MÚSICA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: O SOM QUE ACOLHE OU AFASTA

Da calma ao caos: como o rasto sonoro invisível dos nossos dias influencia o nosso humor, o nosso consumo e o nosso bem-estar

Vivemos numa era de pouco silêncio. O ruído de fundo tornou-se uma constante, da azáfama do trânsito aos ecrãs que falam, dos cafés às praças públicas. Neste panorama, a música surge como uma dupla face: pode ser uma companhia que acalma ou uma invasão que agride. A fronteira é ténue. Quando o volume sobe demasiado ou os graves fazem tremer as paredes, o prazer transforma-se em incómodo. O som, afinal, tem o poder de moldar comportamentos, estados de espírito e até decisões de consumo (1). A questão que se coloca é: como podemos usar a música para criar espaços mais acolhedores e harmoniosos?

O Ritmo Certo para Cada Lugar

A chave está na adequação. A mesma música que anima uma festa pode ser tormento num hospital. O sucesso da experiência sonora depende de entender o espaço e o seu público.

Nos Centros Comerciais, o objetivo é incentivar a permanência. Estudos indicam que música clássica suave ou instrumental relaxante cria uma atmosfera de calma, convidando os clientes a circular sem pressa (2). Pelo contrário, batidas agressivas de techno ou pop alto geram cansaço e ansiedade, antecipando a hora de sair.

Em Restaurantes e Cafés, o sabor também é sonoro. Estilos como jazz suave, bossa nova ou música acústica facilitam a conversa e permitem saborear a refeição (3). Já a música alta e ritmada força os clientes a elevarem a voz, criando um ambiente de fadiga que prejudica a experiência.

Nos Hospitais e Unidades de Saúde, o som deve ser um aliado da cura. Música clássica, sons meditativos ou da natureza demonstraram acalmar pacientes, reduzindo a ansiedade (4). Qualquer som alto ou com graves marcados deve ser evitado. Curiosamente, até a pecuária beneficia: vacas produzem mais leite com música clássica (5). Se o efeito é tão poderoso nos animais, no ser humano é ainda mais evidente.

Nos Espaços Públicos, como praças ou jardins, a música deve ser um pano de fundo discreto e inclusivo. Música neutra, tradicional instrumental ou ambiental são boas escolhas. O problema reside nos sons graves agressivos e no volume excessivo, que se transformam numa imposição para todos, inclusive para os vizinhos.

Em Casamentos e Festas, o equilíbrio é crucial. Música clássica ou coral marcam momentos solenes com dignidade, enquanto pop, tradicional ou rock leve podem animar a pista de dança, se o volume for moderado. O excesso de colunas e graves desconfortáveis pode transformar uma celebração num incómodo. Muitas vezes, são animadores sem formação adequada que, tal como o cozinheiro, se tornam os “senhores da festa”, ditando um ritmo que nem todos conseguem acompanhar.

O Verdadeiro Vilão é o Volume e os Graves

Mais do que o estilo musical em si, são o volume elevado e os graves profundos os principais causadores de conflito. Estas frequências têm um poder invasivo único: atravessam paredes, vibram no corpo e impõem-se a quem não as escolheu. Os mais afetados são frequentemente os mais vulneráveis: pessoas sensíveis, idosos, crianças ou doentes que, no seu direito ao descanso, se veem a braços com uma invasão sonora com impactos comprovados na saúde (6).

Música como Ferramenta de União e não de Divisão

A música é uma das forças mais poderosas de união humana. Quando usada com critério, pode e deve ser uma ferramenta de bem-estar e inclusão. Numa sociedade já marcada pelo stresse e pela aceleração, não precisamos de estímulos sonoros agressivos, mas de sons que promovam a harmonia, o encontro e a permanência.

A boa música de ambiente é aquela que não se impõe, mas que transforma positivamente a experiência de quem a ouve. É tempo de elevar o padrão e exigir profissionalismo e respeito pelo bem-estar coletivo. Afinal, como defende o autor, merecemos mais do que a lógica do “para quem é bacalhau basta”.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo

Notas de Referência:

(1) North, A.C., & Hargreaves, D.J. (1998). The Social and Applied Psychology of Music. Oxford University Press.

(2) Milliman, R.E. (1982). Using Background Music to Affect the Behavior of Supermarket Shoppers. Journal of Marketing.

(3) Caldwell, C., & Hibbert, S.A. (2002). The Influence of Music Tempo and Musical Preference on Restaurant Patrons’ Behavior. Psychology & Marketing.

(4) Chanda, M.L., & Levitin, D.J. (2013). The Neurochemistry of Music. Trends in Cognitive Sciences.

(5) Alworth, L.C., & Buerkle, S.C. (2013). The Effects of Music on Animal Physiology, Behavior and Welfare. Lab Animal.

(6) WHO (2018). Environmental Noise Guidelines for the European Region. World Health Organization.

 

Estilo / Som Efeito no Sistema Nervoso Impactos Positivos Impactos Negativos (excesso/volume alto) Contextos Ideais
Clássica (ex. Mozart, Bach) Ativa sistema parassimpático → relaxamento Acalma, melhora concentração, pode favorecer produção de leite e vínculos afetivos Pouco impacto negativo salvo desagrado pessoal Estudo, leitura, hospitais, centros comerciais
Meditativa / New Age Reduz cortisol, regula respiração, induz estados alfa Relaxamento profundo, melhora sono, útil em ansiedade Pode induzir sonolência em excesso Yoga, meditação, salas de espera, retalho
Pop / Música ligeira Estimula ligeiramente sistema simpático Humor positivo, familiaridade, sociabilidade Pode distrair em excesso ou ser repetitiva Centros comerciais, rádios, eventos sociais
Rock / Metal Forte ativação simpática, descargas de adrenalina Catarse emocional, energia, identidade de grupo Stress, irritabilidade, fadiga auditiva Concertos, ginásios, não recomendado em repouso
Tecno / Eletrónica (baixos fortes) Estímulo motor intenso, ritmo rápido → excitação Energia, incentivo a dançar, sensação de fluxo corporal Stress, insónia, pressão arterial elevada, ansiedade Festas, clubes, ginásios
Ruído urbano (trânsito, obras) Ativação simpática involuntária (stress) Nenhum (exceto habituação em alguns casos) Stress crónico, distúrbios de sono, irritabilidade – (melhor evitar)

 

ÁFRICA A CONTAS

Já se passaram sessenta anos na promessa solar,

mas a fome permanece fiel, constante a bailar.

A liberdade, dama nobre de fraque elegante,

vende o seu por parcelas, em prestações picantes.

 

Surgem doutores do mundo com gráficos na mão,

com juros, receitas e sábia lição.

“Ajuste estrutural!”  que palavra sonora,

corta raízes, a cultura já chora.

 

Espetáculo de cetim, algoritmos em dança,

povos viram figurantes numa falsa esperança.

A soberania, boneca delicada e frágil,

dança conforme a batuta, submissa e dócil.

 

“Para o vosso bem!” Assim soa, suave e claro,

“este neoliberalismo é vosso altar mais caro.”

Ah, mais pesado que o jugo colonial antigo,

pois lá restava um ser, aqui só inimigo.

 

Reina o capital, global e sublime senhor,

escavadora que enterra almas sem pudor.

Apaga identidade, esmaga todo canto,

em nome do “progresso”, vazio como pranto.

 

Não queremos crédito cego e tão pesado,

nem desenvolvimento em modelo copiado.

Queremos germinar da própria razão,

política que nasça da terra, sã tradição.

 

Como a Europa, outrora devastada e em guerra,

encontrou renovação em sua própria terra.

Mas África, dizem, não deve ousar tal coisa,

seu futuro é ser apêndice, eterna lousa.

 

Ó senhores do FMI, príncipes do banco,

vossa ajuda é corda embrulhada em papel branco.

Guardai planos, a magia fria e vazia,

deixai África criar seu próprio novo dia.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo, Arte crítica

O QUE NÃO SE FALA NÃO EXISTE!

Pois é, meus caros, que bela notícia!

Afinal de contas, a injustiça e a pobreza já são problemas ultrapassados, resolvemos não falar mais deles, e, como bem se sabe, o que não se fala não existe.

Agora, o verdadeiro progresso está em rearmar a Europa! Que alívio saber que os 800 mil milhões de euros que a UE planeia gastar em defesa nos próximos anos vão certamente tornar-nos todos mais seguros… principalmente contra a ameaça terrível de idosos sobreviverem com 250 euros por mês ou pensionistas portugueses que ousam receber pensões de até 500 euros. Em Portugal em 2024 havia 1,4 milhões de pensionistas que  recebiam uma pensão de velhice de até 500 euros, o que representava quase metade dos pensionistas da Segurança Social.

É claro que faz todo o sentido que Portugal gaste 6.256 milhões de euros em defesa até 2029, afinal, quem precisa de reformas decentes, serviços públicos que funcionem ou apoio social quando podemos ter mísseis mais modernos e tanques reluzentes?

O importante é manter as prioridades em ordem: primeiro, enchemos os arsenais; depois, talvez, se sobrar algum trocado, lembramos que há pessoas a viver na miséria.

Mas calma, não sejamos dramáticos! Afinal, o que é a pobreza perante a grandiosa estratégia geopolítica europeia?

Sigam em frente e não se esqueçam de apertar o cinto… mas só até 2029. Em compensação, sentimo-nos bem-comportados e esforçados em cumprir as estratégias de Trump em relação à NATO! Isso dá mais honra e lustro aos nossos engravatados quando se passeiam em Bruxelas!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A ENCRUZILHADA DO OCIDENTE ENTRE EMOTIVIDADE PODER E A CRISE AXIAL DA HISTÓRIA

A Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente

Vivemos um daqueles raros momentos da história em que a ordem mundial não se limita a adaptar-se, mas sofre uma transformação fundamental. Trata-se de uma crise de eixo – um ponto de viragem épico, no qual as estruturas de poder, os modelos económicos e as grandes narrativas civilizacionais são abalados. O Ocidente, outrora arquiteto incontestado da ordem global, permanece hoje numa espécie de paralisia emocional e estratégica – e, com isso, promove involuntariamente exatamente o mundo multipolar que procura impedir.

A Ascensão da Irracionalidade e a Falência das Elites

O mal-estar ocidental não é apenas de natureza económica ou geopolítica; é, acima de tudo, uma crise da razão e da cultura. As elites dominantes, alienadas do povo e do desenvolvimento orgânico e qualitativo do indivíduo e da sociedade, abandonaram os padrões da razão, da ponderação crítica e do espírito de cooperação e complementaridade. A liderança sóbria foi substituída por uma emocionalização perigosa e tóxica da comunidade.

Esta estratégia, que recorre a instintos sociais baixos, é um sintoma de pânico. As elites, movidas pelo medo de perderem o controlo da narrativa e o seu lugar privilegiado, intoxicam o espaço público. Isso resulta numa sociedade hipersensível e depressiva, incapaz de compreender as causas profundas da sua miséria e que se contenta em lamentar as suas consequências. O caso alemão é paradigmático: enquanto se desviam verbas incomensuráveis para a guerra e se acumula dívida nacional, as desigualdades sociais que atingem brutalmente idosos e jovens são ignoradas. O discurso público, em vez de tematizar estas opções, prefere o conforto da emoção.

O Palco Geopolítico: A Revolução Multipolar

Esta convulsão interna coincide com uma mudança histórica de proporções épicas. Talvez seja comparável à transição do feudalismo para o capitalismo nos séculos XV e XVI.

O capitalismo, fruto da revolução industrial, foi durante muito tempo um projeto exclusivamente ocidental. Hoje, porém, o Sul Global despertou do seu «sono medieval». Os países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros – estão a reformular as suas economias, sob o signo do capitalismo estatal. Este modelo, apesar das suas contradições, prova-se formidável na concorrência com o capitalismo ocidental de carácter fundamentalmente privado e financeirizado. O subsídio ocidental ao capitalismo liberal turbo não só enfraquece a espinha dorsal de uma classe média saudável, como também favorece formas artificiais de empresas, cujo único fundamento é o próprio capital. Nesta situação paradoxal, as elites destroem a sua própria base para satisfazer as exigências do sistema que elas mesmas criaram noutras paragens. Nesta situação as nossas elites autodestroem-se para conseguirem dar resposta ao sistema que impuseram ao submundo.

Perante este desafio, a resposta anglo-saxónica (EUA/UK) e europeia, canalizada através da NATO, não é de adaptação, mas de renitência e confronto. Em vez de reconhecerem os sinais dos tempos e buscarem uma colaboração Norte-Sul, agarram-se a velhas doutrinas belicosas da Guerra Fria. A insistência em ver o mundo através da lógica do “amigo-inimigo” e a camuflagem de interesses imperialistas sob o pretexto de “defesa de valores” só consegue uma coisa: fomentar a afirmação do mundo rival em termos de rivalidade, e não de colaboração.

A Esquerda Europeia: Perdida entre o Verde e a Guerra

A esquerda europeia, outrora garantidora de uma política social e humanista, perdeu a sua bússola; o centro político tem receio de revelar as suas próprias raízes. O caso do SPD alemão é sintomático: a sua associação à ideologização verde prejudicou a sua imagem de partido anchor da justiça social.

O movimento ecológico, originalmente com raízes locais e pacifista, também foi cooptado e transformado numa força moralmente belicista da geopolítica. Esta «ecologização» da política, longe de salvar a natureza, tornou-se um instrumento de emocionalização que cega ainda mais a sociedade. A esquerda, dependente desta agenda, tornou-se num parceiro involuntário de políticas que negam o seu próprio projecto de justiça social e paz.

A direita, por sua vez, perdeu a sua firmeza ao abandonar os seus fundamentos culturais. Seduzida pelas tentações da globalização liberal, escolheu o caminho da agressão em vez da cooperação entre os povos.

A União Europeia faz parte da Eurásia e se considerarmos o tempo em épocas, e não em períodos eleitorais de quatro anos, teremos que concluir que a Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente.

A Única Saída é a Razão e a Colaboração

O surgimento de figuras como Trump nos EUA não é a causa, mas sim um sintoma deste processo histórico em curso acelerado. São as dores de uma transição inevitável para um mundo multipolar.

O Ocidente tem apenas uma saída: afastar-se da mera emocionalidade e voltar à razão e ao senso comum político:

– Reconhecer a nova constelação de poder e negociar com o Sul Global de igual para igual.

– Abandonar a doutrina do confronto da NATO em favor da diplomacia e da cooperação económica.

– Reafirmar um discurso público objectivo, onde os media e os partidos priorizem o bom senso sobre a histeria.

– Reencontrar uma esquerda que volte a tematizar as causas da desigualdade sem abandonar o humanismo cristão, em vez de se limitar a gerir as suas consequências da desigualdade com emotividade.

A crise do eixo não marca um fim, mas sim um doloroso recomeço. O Ocidente pode revelar-se um obstáculo obstinado e, assim, acelerar o seu próprio declínio – ou pode redescobrir a razão e encontrar o seu lugar num mundo que já não é exclusivamente seu, mas que pode ser mais justo e equilibrado para todos. A depressão das sociedades ocidentais é o reflexo da doença das suas elites. A cura começa com a coragem de pensar com clareza.

A União Europeia faz parte da Eurásia. E se não medirmos o tempo em mandatos eleitorais de quatro anos, mas em épocas, então temos de concluir: a Eurásia é o palco decisivo que se torna a ponte entre o Oriente e o Ocidente.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo