Das formas do Pensamento Linear e do Pensamento Circular para o Pensamento Espiral
Para melhor compreendermos a razão de sermos como somos e de outros serem como são torna-se importante analisar-se as estruturas de pensamento próprias de cada cultura que se expressa em mentalidades distintas. Daí a importância de se distinguir os conteúdos dos embrulhos em que somos formatados. A tradição de “pensamento ocidental” e a de “pensamento oriental” apresentam conotações diferentes, mas encontram-se desde sempre numa relação de osmose e de aprendizagem comum tal como acontece com o indivíduo em relação ao seu meio ambiente. Naturalmente também há características diferentes que se afirmam comuns em filósofos e pensadores das duas vertentes. Há que prestar atenção para se não ser levado pelo preconceito capitalista nem pelo socialista.
A tradição ocidental de caracter mais “secular” enfatiza a lógica, a racionalidade e a análise numa visão dualista concentrada na observação da realidade usando, para isso, o processo da distinção que conduz à individuação, à definição do particular, do elemento, do indivíduo. A tradição oriental, por seu lado, enfatiza o caracter religioso dando maior destaque à intuição, contemplação e busca do conhecimento interior numa visão mais monista de interação das coisas como meras manifestações de uma única substância ou realidade.
Assim, para se compreender as diferenças de mundivisões e políticas do Ocidente e do Oriente terá de se ter em conta que o ocidente é mais individualista e o oriente mais colectivista; no Ocidente, especialmente a partir do renascimento e da reforma deixa-se de valorizar a comunidade para se acentuar a autonomia do indivíduo, os seus direitos e sucesso pessoal a que corresponde, no âmbito económico à criação do capitalismo, enquanto o pensamento do Oriente de mentalidade mais centrada no coletivo, na comunidade e nas relações interpessoais acentua o socialismo.
No que respeita ao moldar o tempo e a vida social, o Ocidente sente-se impulsionado pela linha linear de progresso, cuja aceleração lhe tem dado a hegemonia sobre o mundo, mas pela lógica a velocidade da aceleração chegará a um aceleramento que gripa o desenvolvimento da sociedade; daí o caminharmos no sentido de um beco sem saída. Por seu lado o pensamento oriental no que toca à moldagem do tempo está mais preocupado em dar forma ao momento presente correndo o perigo de se repetir numa circularidade que faz lembrar as estações do ano e que não dá resposta à evolução. Deste modo estaciona sem se preocupar com o desenvolvimento social (recorde-se os ciclos fechados das castas). Se o Ocidente exagera ao focalizar-se no progresso, o Oriente exagera ao fixar-se no viver o momento presente repetitivo e como tal circular descurando o aspecto linear do desenvolvimento. (É interessante verificar que enquanto no oriente um guru se apresenta como o ideal acabado, no ocidente o sacerdote permanece em peregrinação com o fiel a caminho da Realidade que é Deus). Estamos numa época da história que se encontra nas dores de parto e talvez estrebuche ainda pelo facto de nos encontrarmos historicamente no final de duas mundivisões que se combatiam para passarmos a uma visão integral, já não unilateralmente dualista nem monista, e entrarmos numa fase inclusiva que se expressará numa mundivisão mística que une a razão mental à razão do coração de que falava o grande filósofo e matemático Blaise Pascal.
O facto de o cristianismo e com ele o Ocidente adoptarem uma tradição linear ascendente fez com que o Ocidente se tornasse num condutor da história até à actualidade; outras sociedades de caracter monista mantiveram-se num caminhar repetitivo de recorrência de eventos; a deficiência do leste foi a negligência do aspecto da linearidade do tempo e com ele do progresso; a deficiência do ocidente vem do descuido da alma e a consequente decadência cultural, dado toda a civilização precisar de um tecto metafísico consistente que lhe proporcione sustentabilidade; a fixação na materialidade e no mecanicismo tem levado o ocidente a esgotar as suas forças na perspectiva económica e militar como garantes de domínio e de futuro e imperceptivelmente conduzir à implosão de uma cultura cuja sustentabilidade assentava na dignidade da pessoa humana.
Na Europa a ideia progressista já não convence; é unilateral e torna-se inutilizável ao gerar filhos deserdados a sentir-se cada vez mais estranhos na própria terra. Tudo tem um limite e aproxima-se o tempo de se voltar às origens e implementar a perspectiva holística que responda ao desenvolvimento integral da pessoa e da sociedade. Encontramo-nos num momento axial da História humana em que as camadas de consciência social mais desenvolvida aspiram a um novo layout de sociedade de caracter mais integral humano num processo de acentuar mais relações de complementaridade e menos de polaridade (apesar do estúpido conflito geoestratégico – extrema manifestação de polaridades – entre a OTAN e a Federação russa a desenrolar-se na Ucrânia) ; torna-se adequada uma mudança de paradigma para o Ocidente e para o Oriente numa opção de matriz civilizacional e social comum que una o pensamento linear (de desenvolvimento-evolução pessoal a caminho da ressurreição) ao pensamento circular (do retorno no carma da reincarnação) num modelo espiral que inclua o retorno e o totalmente novo (em linguagem teológica cristã, a concretização do Cristo Cósmico). Neste sentido encontra-se na fórmula trinitária da tradição cristã o modelo/fórmula da Realidade e como tal conciliador; nele se junta a linearidade temporal (a dualidade) ao caracter circular (monismo) oriental num holismo espiritual! Este poderia ser o caminho a redescobrir pela civilização ocidental para que não desapareça no bulício de tentáculos económico-militares à rebeldia de qualquer desenvolvimento orgânico.
No que diz respeito à gerência do tempo (tempo histórico), quer o Ocidente quer o Oriente, terão oportunidade de ir integrando de forma inclusiva as concepções de tempo Cronos e de tempo Cairós. A visão do tempo Cronos (tempo cronológico, sequencial, – tempo físico dos humanos) é limitadora amarrando-nos ao calendário: séculos, anos, meses, dias, horas, etc (1). A concepção do tempo Cronos (de caracter secular ocidental) deveria ser complementada/superada pela concepção do tempo Cairós (tempo de Deus, “tempo da graça” Efésios 5:15-16, que é o “momento certo” do acontecer especial que não se mede e é ao mesmo tempo pessoal e universal).
A actual acentuação do Ocidente no “viver o momento presente” tem a sua importância numa sociedade estressada pela ideia de ser forçada a progredir numa noção de tempo linear secularizado e por isso agir como mera reacção autómata de busca, numa forma de viver mais característico oriental (meditação e práticas de joga), mas sem a compreender. Buscadores deslocados de espiritualidade, correm o perigo de negligenciarem o aspecto linear do desenvolvimento no tempo (próprio do arquétipo ocidental) num arquétipo oriental correndo o perigo de vir a cair numa atitude de vida comparada à roda de hamster e deste modo tornarem-se em vítimas das rodas das duas civilizações. Os admiradores orientais da civilização ocidental correm por sua vez também o perigo de se autodestruírem pelo facto de contactarem sobretudo a vertente superficial da cultura ocidental (aquilo que de momento lhe dá brilho, mas não deixa de ser decadente). Assertório seria se o corpo e a alma do ocidente se encontrassem com o corpo e a alma do oriente numa de complementaridades.
Devido às vantagens e desvantagens de cada sistema de pensamento (mundivisões monismo e dualismo) será sempre um assunto actual pois sempre discutido por crenças individuais e por posições filosóficas ao longo da história. “Nada de novo sob o Sol”!
O espírito do nosso tempo (Zeitgeist) desumaniza-se a olhos vistos encontrando-se no beco sem saída do materialismo e do pragmatismo utilitário que conduz à satisfação das necessidades básicas primárias de tipo egoísta ignorando as necessidades espirituais; isto leva pessoas espirituais e sensíveis (culturalmente desorientadas devido à monopolização política do discurso público) a procurar orientação espiritual em representantes de espiritualidades asiáticas (lamas e gurus). A procura é salutar, mas como condicionada pelo ambiente busca orientação em categorias monistas materialistas de caracter oriental que sustentam que a matéria física é a substância fundamental que contem em si o seu princípio e o seu fim. Num primeiro contacto, encontram aí resposta a um idealismo individualista que se projecta no idealismo oriental que, por sua vez, sustenta que a mente ou a consciência é a substância fundamental. Deste modo o idealismo ocidental encontra a sua morte na procura de resolução do problema que ele mesmo criou exteriorizando-se a si mesmo e agora indaga fora dele; de facto, na generalidade, a opinião pública ocidental é dominada pelo polo exterior lineal dele e encontrando-se agora no desconhecimento da sua interioridade procura consolo no imanentismo monista asiático como que numa atitude de autopunição (pelo exagero da sua afirmação da individualidade contra a comunidade) e dissolução do indivíduo na mera gota do grande oceano de uma mística onde acaba toda e qualquer distinção. Pelo que se observa de currículos destes buscadores ocidentais de espiritualidade no budismo e no induísmo, constata-se que os mais autênticos consigo mesmos redescobrem no seu currículo o cristianismo ou uma forma profunda de humanismo que se encontra no arquétipo cristão europeu.
O ideário ocidental em vez de desembocar no ideal oriental (como parece querer o globalismo político-económico) deveria optar por uma visão espiral que daria solução aos dois ideais (linear e circular) e não incorreria no perigo da renuncia a si mesmo e deixar enterrar-se na vala asiática comum anónima e imanentista como parecem querer os promotores do Zeitgeist (O ego exacerbado em vez de procurar resposta na própria comunidade peregrina, vagueia, caindo na contradição de ao tanto querer afirmar-se vir a dissolver-se no nada através do condicionamento da mente ou num estado fora dos ventos dos desejos). Deste modo assiste-se a uma autopunição do ocidente que abusou de tal modo do processo da individuação (do eu contra o nós, na dicotomia corpo-alma, corpo-mente) que desatinado sente uma inclinação fatal para o autoapagamento total do seu espírito original, uma tendência para a morte (tanatofilia) e não para a vida. A natureza da realidade e da existência só terão realização perfeita se conseguirem manter nelas o sentido da vida e uma vocação que o concretize num caminhar comum de respeito e espírito de complementaridade. Doutro modo continuaremos: uns à procura da alma matando o corpo e outros à procura do corpo matando a alma! Há que salvar corpo e alma juntos!
Para se criar uma cultura de paz seria lógico criar-se laços de irmandade entre as religiões monoteístas e o panteísmo do taoismo e do hinduísmo afirmando-se um panenteísmo de Deus ontologicamente separado do mundo, mas em que o mundo se encontra em Deus à imagem de Jesus em Cristo.
Na elaboração de uma matriz humana da paz seja de notar que a tradição ocidental tem muito de comum com a tradição oriental sobretudo na sua expressão religiosa. A nível religioso e místico, a sociedade ocidental supera o dualismo grego da existência de duas substâncias separadas ou categorias fundamentais e independentes (dualismo mente-corpo, alma-corpo, modelo ainda próprio da política) através da fórmula trinitária (3) como equação da Realidade e da realidade aplicada (aquilo a que os alemães dão o nome de Wirklichkeit) e se expressaria em termos de linguagem e de discurso numa passagem da matriz do diálogo para a do trílogo. Deste modo se superaria um certo dualismo entre Realität e Wirklichkeit como se pode ver já plasmado nos inícios bíblicos quando se afirma “no princípio era a Palavra, a informação… e a Palavra se tornou carne…”. Isto é, em Jesus Cristo unem-se as dicotomias carne-espírito de forma a ele tornar-se num modelo de Realidade e realidade aplicada numa mesma pessoa e de modo a dar perspectiva ascendente à própria matéria no Cristo cósmico. Em vez de ficarmos presos a um dualismo alternativo integramos a forma existência dualística num dualismo de interação e integrado na divindade (prototipicamente o Jesus e o Cristo não são duas entidades distintas embora o Jesus e o Cristo se expressem dentro da Realidade numa só pessoa de maneiras diferentes. A divindade estaria como a Realidade sustentadora das três pessoas divinas e nelas também todo o existente/criado.
No desenvolvimento histórico individual e cultural, o pensamento ocidental secular tende a ver a ipseidade, a ideia da pessoa, como identidade individual e separada, enquanto o pensamento oriental tende a focar a ideia de pessoa como parte de um todo maior ou entidade para lá da pessoa. Estas distinções não são absolutas e existem muitas nuances e variações. Portanto, é de aconselhável considerar cada filosofia ou tradição individual no contexto de suas doutrinas e desenvolvimentos específicos, em vez de reduzi-las a uma única categorização. O Cristo cósmico como arquétipo (e a fórmula trinitária) seria para o humano ocidental e não só, independentemente de ser religiosamente crente ou não, a resposta a todo o seu ideal e desenvolvimento material e espiritual incardinado na civilização, humanidade e universo.
O cristianismo ao deixar-se levar pelas estruturas patriarcais tem descurado o velho saber da natureza de Cristo “do Cristo Cósmico, o ‘padrão de conexão’ de todos os átomos e galáxias do universo, o tecido do amor divino e da justiça inerente a todas as criaturas e seres humanos”(2) e por isso a instituição eclesial se encontra hoje em crise, tal como a depressiva civilização ocidental, sua expressão física. Jesus Cristo, Deus-homem, espírito-matéria é a realidade modelo que unirá o género humano com crenças, idealismos e misticismos que serão avaliados pelas suas obras:”Pelos seus frutos os conhecereis”, aconselhou Jesus. Depois de séculos de secularização do Cristianismo, seria chegada a hora de o redescobrir e assim se redescobrir o sagrado na natureza e na humanidade. A criação é obra sagrada de Deus. Uma das perspectivas do caminho para o cristianismo seria redescobrir a visão espiritual da praxis mística e da consciência cósmica das origens. A visão de um Cristo cósmico presente em todas as criaturas e culturas insufladas pelo Paráclito é um luzeiro que poderá mover o humano a descobrir-se no seu protótipo. A decadência da espiritualidade das religiões vai à frente da decadência humana e das civilizações: Primeiro despede-se a alma, depois enterra-se o corpo. Isto acontece de maneira imperceptível porque a concentração no ego e no imediato leva o humano a ignorar o mal e quem nega o mal fortalece-o. A sociedade de estruturas patriarcais impôs-se contra uma visão holista substituindo a espiritualidade e a mística pela moralização (moral de caracter pedagógico). Deste modo desmiolaram a essência da própria civilização exteriorizando-se num processo de alienação contínua de modo a gerar uma sociedade dirigida por poderosos que assentam as suas estruturas de poder apenas na economia, no moralismo e nas leis. O cristianismo esconde a sua mensagem para a pessoa e para o mundo sempre que descura a mística original liquidificada em ritos, por vezes, reduzidos a meras palavras ou sentimentos ocasionais. O fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung diz que “somente o místico é religiosamente criativo”!
Se analisarmos o desenvolver histórico dos povos do Ocidente e do Oriente podemos concluir que, atendendo às obras e práticas sociais que causam nem uns nem outros são satisfatórios. Tanto o pensamento de caracter linear de uns como o pensamento circular dos outros se revelam como forma desajustada para a orientação da vida e dos povos. Resta-nos uma terceira via alternativa comum (Pensamento Espiral) que uniria uns e outros e seria a via mística, a via do coração que integra também a razão como advogava Pascal. “Uma civilização sem uma cosmologia não apenas se torna cosmicamente violenta, mas também cosmicamente solitária e deprimida”(2).
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=8615
(1) “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu.” Eclesiastes 3:1.
(2) Matthew Fox em “Visão do Cristo Cósmico”, pag. 12 e 19.