INTEGRAÇÃO BILATERAL – UM EMPREENDIMENTO IRREALISTA?
António Justo
Nos anos da reconstrução da Europa, depois da Guerra, as indústrias nacionais europeias absorviam grandes contingentes de trabalhadores, necessitando por isso de recorrer também à mão-de-obra estrangeira. A política recorre, então, à angariação indiferenciada de trabalhadores. Contava apenas com trabalhadores mas vieram pessoas.
No princípio a sociedade maioritária divertia-se com o folclore e com o exotismo dos imigrantes e refugiados. Na sua escassez individual eram dignos da simpatia da sociedade acolhedora. Os representantes do Estado e da Economia sentiam-se benfeitores de uns e de outros. O povo operário das nações industriais sentia-se bem porque abaixo dele ainda havia outros, o proletariado estrangeiro. Hoje, época em que as indústrias é que emigram, e a política europeia se orienta para a criação duma camada social alargada carenciada em todas as nações, os conflitos sociais aumentam. A concorrência nos lugares de trabalho é já tão desumana que obriga não só a camada dos carenciados a uma luta desesperada pelo posto de trabalho disponível, como torna também instável a camada social média que constituía o suporte da sociedade pré-global. O sistema económico não aferido às necessidades humanas da pessoa vai dando hipótese a alguns e provocando o devaste dos biótopos naturais e humanos.
Hoje os políticos de então reconhecem o falhanço da política de imigração. Uma população de cultura árabe consciente e activa mete medo a uma sociedade acomodada. A vitalidade daqueles talvez seja a maior razão dum medo inconsciente desta. Com os imigrantes vieram também as estruturas culturais das suas nações e religiões. Antes que os recém-chegados se individualizassem e tivessem tempo de se distanciarem das suas culturas de originem e de se adaptarem criticamente à nova, as estruturas religiosas e políticas de origem instalaram-se servindo-se da sua necessidade, mantendo-os prisioneiros das antigas amarras, em nome do serviço e do perigo dos outros. Entre assimilação e gueto é roubada ao emigrante / imigrante a capacidade de descobrir uma terceira via, o seu caminho. Este, vítima de estruturas injustas que o obrigaram a abandonar a sua pátria, continua a ser areia nas engrenagens das estruturas.
Pouco a pouco vão levantando a sua voz dissidente. Essa voz porém é a do grupo, não a sua. Assim, assistimos a grupos contra grupos, à custa da despersonalização de uns e de outros, contra a construção duma realidade maior: o mundo, o universo.
Os crentes da democracia e da Constituição receiam ter de retroceder dos direitos adquiridos e terem de aceitar hábitos já ultrapassados há centenas de anos na Europa. Agarram-se então a um punhado de direitos, à Democracia e à Constituição, como se estes fossem imutáveis e inegociáveis. No seu catecismo pensam resolver tudo com a separação entre Estado e Religião como se o Estado fosse eunuco e a religião não fosse prostituta. Assim se vai vivendo da disputa das ideologias; com o tempo, porém, o povo é quem mais ordena! Ele é a valia que permanece embora adiando sempre a sua personalização, o seu estado adulto.
Nos países de imigração o abdómen social já rumoreja. O tema da integração polariza os grupos; esquerda e direita esquartejam a realidade para, da refrega, poderem receber alguns créditos. Assim se perpetua a luta de grupos estabelecidos à custa e à margem do povo. Por enquanto ainda não se ganham eleições agitando o povo contra os estrangeiros; a manifestação é ainda em surdina e envergonhada, mas a continuar assim lá chegaremos. A História ensina-nos que o que conta são as superstruturas e não a pessoa individual. Não resta grande coisa para o desenvolvimento da pessoa.
É verdade que a integração é diálogo (melhor seria triálogo) e não pode ser uma auto-estrada de sentido único. De “fora” vêm pessoas com as suas tradições, o tradicional refúgio da precariedade. Se lhe tiram a religião com que é que ficam? No sentido contrário não há trânsito nem parques de estacionamento para guetos compensatórios.
Resignadas, as forças políticas dos países de acolhimento afirmam-se na contradição, à custa dos imigrados e da própria cultura; à custa dos imigrados e dos cidadãos. Por enquanto a esquerda ainda ganha com os votos dos estrangeiros. Mais tarde virá a hora da direita, dado esta corresponder mais à mundivisão daqueles e se preocupar por uma ordem dos costumes menos permissiva.
Políticos já começam a exigir que os imigrados aprendam a língua do país; até agora não se tinham dado conta dos guetos e de muitas crianças que não falavam a língua da escola. Apesar disso muitos defensores dos direitos humanos não estão de acordo com tal obrigação. Seria como que querer obrigar a raça cigana, de hábitos mercantis a ter de se dedicar à agricultura.
Para muitos só se avistam problemas a todo o alcance do olhar. De facto, a estrutura social ordenada maioritária estava habituada a oprimir o próprio povo por tradição e hábito; agora as minorias em nome da sua liberdade religiosa e cultural vêm questionar toda a legitimação do poder estrutural. A sociedade passa a ter dois problemas: o dos novos que chegam e o dos autóctones dormentes que passam a ser acordados por aqueles. Quem não tem nada a perder só é tolo se não arrisca, solidarizando-se!
Os estados europeus, que apostam tudo na estrutura, não estão preparados para dialogar com os grupos do Islão que, baseados mais numa organização de tradição tribal, não conhecem uma organização cúpula, uma representação única, escapando assim ao controlo central e à centralização administrativa. Para os organizadores do ensino da religião islâmica nas escolas, esta situação torna-se complicadíssima atendendo ás diferentes proveniências e legitimações.
Alguns cidadãos resignam-se aceitando que a cultura maioritária terá de oferecer descontos aos muçulmanos? Será que estes terão de viver sempre como hóspedes até que alcancem a maioria e possam determinar eles o regimento? Também há muçulmanos renitentes que não aceitam as aulas de ginástica de meninos e meninas em comum, famílias que obrigam o porte do lenço às filhas, que as obrigam ao casamento arranjado, sendo tabu maioritário o casamento com autóctones, salvo se estes se converterem.
A religião e a cultura tornam-se em impedimento do encontro de uns e de outros a nível humano. Na prática do quotidiano, os grupos islâmicos escapam à forma de Estado tradicional europeu. Para complicar mais, estes ordenam-se em organizações jurídicas laicas. Estas organizações são porém associações religiosas atendendo a que o islão não conhece a divisão da pessoa em religiosa e laica. Quem vai à associação é religioso. Não conhecem o estado secular, só conhecem o Estado muçulmano. Na antropologia das tribos do deserto não há lugar para filosofias personalistas. O indivíduo só se safa no grupo, antes tribal agora religioso. Desconhecem a forma anfíbia do homo occidentalis. Assim colidem diferentes antropologias sem ninguém que os ajude a perceber que o problema não é humano mas de superstruturas entre elas.
Um outro obstáculo com que deparam é o laicismo – um específico dos países de tradição cristã, um resultado de diferenciação de superstruturas. Cria-se também uma outra dificuldade para aqueles muçulmanos liberais ou ateus nas relações de estado, sociedade e religião, pois, muitas vezes, são englobados no mesmo grupo e representados por dirigentes religiosos com quem não concordam.
Fiéis muçulmanos que vêm de países onde a poligamia é possível não encontram legitimação numa cultura monogâmica. Sentem-se discriminados perante uma lei que se diz liberal permitindo o casamento de homossexuais mas proibindo a sua poligamia. Também o sistema de assistência e providência social não está preparado para dar resposta às práticas poligâmicas nem ao casamento islâmico. Recorde-se um facto publicado em jornais franceses: um homem poligâmico passa pelas diferentes casas sociais onde vivem as suas mulheres. Será que vai receber o óvulo? Não será que também o nosso sistema social beneficia economicamente o homem, reduzindo a mulher à carência económica e psíquica?
Os políticos podem alegar que a Lei Fundamental do Estado europeu se baseia na tradição monogâmica judaico-cristã. Apesar disso, não dá aqui uma discriminação da sociedade poligâmica? Eles também são povo e a Constituição deve ser o resultado da vontade do povo. Ou será que se terá de ligar a Constituição ao território perdendo ela assim o seu carácter orgânico? Será que é legítima a declaração da vigência dos direitos humanos individuais, quando indivíduos apelam para a prevalência de direitos culturais sobre os individuais? Esta é a hora da dança dos representantes dos direitos culturais. Quem define competências e em nome de quem? Para um muçulmano crente a sua Constituição é o Corão e o Hadid; mais que o país, o que conta é a sua civilização.
O conflito de obediências entre Islão e Constituição permanece constante. Muitos encontram assim nichos em relação ao casamento. Na sua cultura encontram-se pessoas já casadas valendo na sociedade civil europeia como solteiras. (Casados ricos pelo islão, pelo facto de o não serem civilmente na sociedade de acolhimento, continuam com direito a apoios sociais etc. enquanto que os autóctones que vêem regulados juridicamente os seus costumes perdem automaticamente esse direito embora vivam em situação igual). Nesta confusão toda certos simplicistas laicistas gritam, acabe-se com a religião. A questão não se resolve pela negativa porque seria pior a emenda que o soneto e à margem da realidade humana.
O argumento de que os muçulmanos da Turquia têm aqui mais direitos que na Turquia e de que o Turquia é um estado que conhece a separação de religião e estado, desde Atatürk, não minimiza o problema dos muçulmanos que vêm doutros estados. O radicalismo muçulmano turco tem mais hipótese de se afirmar na sociedade liberal do que na Turquia. A sociedade civil é lá garantida por uma oligarquia militar que impede que a Turquia se torne num estado islâmico sem separação orgânica de estado e religião.
A questão da democracia e do Estado de Direito está em correlação com o estado de desenvolvimento da consciência individual do cidadão. Para já o cidadão é coisa rara, o que há mais são ovelhas arrebanhadas. Ainda se aposta ‘inocentemente’ na tradição da anti-discriminação embora a discriminação continue não só em relação aos indivíduos indefesos como às minorias desorganizadas. Quando os grupos muçulmanos se tornarem mais conscientes e exigirem os seus direitos então o Estado terá que ceder. É a hora dos grupos que não a da pessoa.
A democracia recebe a sua legitimação da vontade do povo organizado. A democracia, no seu mais íntimo é auto-destrutiva vivendo das periferias da sociedade e da sua inconsciência. Um dia que estas acordem a democracia terá de dizer adeus! A não ser que se desenvolva uma outra consciência humana, que não a actual alimentada das sobras do que falta à minoria.
Como podem forças políticas exigir humanismo aos próprios cidadãos se não salvaguardam os seus interesses compensando apenas o défice de credibilidade com a defesa das minorias estrangeiras? Enquanto dominar a filosofia dos grupos uns contra os outros não resta hipótese ao recém-chegado senão organizar-se e fechar-se em grupos.
Pressuposto para uns e outros no sentido de garantir um futuro pacífico em harmonia seria que uns e outros reduzissem as armaduras culturais a um mínimo, e ousassem individualmente ser pessoa sem aquelas tradicionais ‘canadianas’ que os torna súbditos. O fato cultural que cada um traz vestido para poder passar o Inverno sazonal existencial torna-se então numa couraça que nos agrilhoa à própria cultura impedindo-nos de ver mais longe e de nos descobrirmos a nós como pessoas. Não fomos iniciados na construção duma identidade participada como preveria uma antropologia pressuposta na Trindade (identidade pessoal mas comum). Para isso seria necessária a implementação dum modo de ser e de estar que visse a cultura e a instituição como transitórias e o ser humano como permanente. Então as entidades desaguariam umas nas outras, no desenvolvimento do Homem novo que se encontra a definhar debaixo das ruínas da própria existência e da própria cultura. Então tornar-se-iam supérfluos os critérios fixos de identificação homem/mulher, nacionalidade, raça, cultura ou religião. A construção duma identidade comum no trabalho pelo bem comum deixaria de emperrar na arrogância desumana das instituições que em nome da defesa humana degrada o Homem.
Padrões culturais deveriam servir apenas como os braços duma mãe que se estendem para o filho a fim deste aprender a andar e depois se desenvolver e assim a poder abandonar e tornar-se ele próprio.
As culturas têm muito de comum, que aprenderam umas das outras, num processo de desenvolvimento difícil e moroso. Importa descobrir a sua razão de ser para as submeter à humanidade.
Somos cidadãos do universo, não podemos continuar fechados no casulo da nossa nacionalidade, da nossa cultura, da nossa religião. Sofremos de aziúme a mais da nação, da economia, da religião, da ideologia e do partido. As diversas estruturas para serem congruentes deveriam procurar realizar o cidadão do universo em vez de apostarem tanto na desconfiança, na estratégia do medo e do perigo para o instrumentalizarem em seu serviço.
Entretanto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos terá muito que fazer, não só na defesa do direito à poligamia e de outros costumes muçulmanos como em relação à discriminação dos cidadãos pelo Estado. Até lá vai-se vivendo do não desenvolvimento da consciência civil e da sua desorganização.
Vamo-nos acalentando na esperança do melhor e vivendo das migalhas de direito caídas das mesas dos seus detentores.
António da Cunha Duarte Justo