Respiração na Tradição Ocidental
António Justo
„No princípio Deus criou os céus e a terra… e o Espírito de Deus movia-se sobre o semblante das águas” (gen 1,1). O respirar de Deus, a força da vida ( a “ruach”= vento, tempestade, o respirar da vida) penetra então todo o ser. A Ruach é o oxigénio espiritual que a tudo dá ânimo. A criação processa-se, desenvolve-se respirando o Espírito Santo.
A cadeia dos metabolismos da respiração interfere na regulação do ritmo pulmonar, cardíaco, tensão arterial, estado psico-somático até ao limiar do Espírito. O ritmo da inspiração e expiração ao provocar movimento abdominal e torácico num movimento de contracção e extensão concentra-nos no corpo e provoca uma abertura geral. Tudo se move, tudo se relaciona. Todo o universo macroscópico e microscópico, material e espiritual, participam do mesmo respirar, da força divina (Ruach).
A vida de Adão começou com o sopro, o hálito de Deus nas suas narinas. Se nos concentrarmos, sentimos segredar do seu sopro no respirar do nosso ser, no marejar do mar, no ciciar da brisa do céu.
A frequência rítmica reduzida de pulmões, coração e cérebro, ajuda-nos a entrar na ressonância universal, na frequência da Ruach (Espírito, sopro). O universo tal como a nossa corporeidade segue o seu ritmo mesmo a nível inconsciente tal como acontece com a respiração na sua qualidade de parte do sistema vegetativo nervoso. Neste processo experimentamos a satisfação de embarcarmos com ele e assim possibilitarmos uma mudança no nosso corpo e na nossa alma. Pela meditação procura-se tornar consciente e presente estes diferentes impulsos.
Pela respiração o dentro e o fora, a vida toda, encontram-se em equilíbrio. Também a respiração abdominal é mais saudável para o corpo e alma. Ela une a parte superior à parte inferior, o cérebro – coração ao abdómen. Na inspiração poderemos ver o acto do pensamento e na expiração o acto do sentimento. Um e outro formam uma unidade perfeita, tornando a matéria e o Espírito compatíveis. Se, em relaxe, nos concentramos na inspiração e expiração seguindo apenas o seu ritmo, sem em nada pensar, então, passado algum tempo, o mundo todo passa a respirar em nós, movido pelo mesmo espírito, que pode ser sentido como amor corrente. Na respiração sentimos corporalmente o efeito do ar e talvez espiritualmente o efeito da acção do Espírito Santo.
Se num lugar calmo nos concentrarmos na respiração facilmente tomamos uma percepção agradável do nosso corpo e com o tempo experimentamos a paz do Espírito em nós. O Espírito, a força criadora divina, revitaliza-nos até aos poros mais íntimos do nosso corpo e da nossa alma. Leva-nos a sintonizar com o universo, com o espírito, tornando-nos parte do todo.
“O meu povo jamais será confundido… acontecerá que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne: os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão; os vossos anciãos terão sonhos, e os vossos jovens terão visões, derramarei o meu espírito sobre os escravos e as escravas”(Jo 3,1-2). A força do espírito é de tal ordem que inebria de energia libertadora todo o homem e toda a mulher acabando com as aquisições e valorizações da carne, para a espiritualizar.
Irrompe o Pentecostes, o tempo da verdadeira comunidade. No momento da dificuldade o Espírito do Senhor desce sobre nós possibilitando o amanhecer do Pentecostes em nós. Neste momento indivíduo e comunidade tornam-se num só coração, criador e criação tornam-se solidários. Aqui acontece o Reino de Deus, a democracia espiritual. “Quem não nascer da água e do espírito não poderá entrar no Reino de Deus… O vento sopra onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes onde vem, nem para onde vai. Assim é todo o que nasceu do Espírito”(Jo 3, 5 s). O homem velho que vivia na sombra do mal descobre a luz que ao inebriá-lo o torna novo, e então a faúlha do amor torna-o novo, tal como o fogo que enrubescedor do carvão e do ferro mais negros na forja..
A água lava-nos e o Espírito transforma-nos porque vem de Deus. Cheios do espírito estamos preparados para dar à luz e repetir o acto de Maria no presépio. O espírito mãe em nós desperta a fertilidade e provoca o novo nascimento. Dele surge uma mentalidade nova, um espírito de compreensão diferente do mundano. “O consolador, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, Esse ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito”(Jo 14, 26). O espírito novo, o amor leva a superar a incompreensão das diferentes línguas e culturas. Agora surge o tempo da inspiração que ajuda a superar as fórmulas rígidas das culturas permitindo ver o que as sustém. O espírito jorra em nós, já não somos escravos mas senhores, de estirpe divina. Em nós há muitos dons do espírito escondidos. O barulho da vida e a voz das leis e dos senhores do mundo é tão alto que não deixa perceber mais nada. Se queremos sair do turbilhão no labirinto da vida teremos de parar e aprender, de novo, a ser. “Eu sou o caminho a verdade e a vida.”
Já na Idade Média havia a tendência para mediante técnicas de respiração se facilitar o alcance do estado da profecia. O conhecimento de Deus não se pode alcançar através da especulação mas através do “coração” (lugar da vida divina, entre coração e cérebro), à sombra das ideias, ajudado pelas técnicas religiosas – místicas em ligação com a fala e a respiração. Na sabedoria asiática e na mística cristã a acção do espírito acontece no confluir e jorrar comum de emoção e razão, no confluir da matéria e do espírito, do Jesus e do Cristo.
O canto gregoriano dos conventos, e das igrejas, os encontros de Taizé onde se cantam cânones repetidos e vocalizados, unidos à respiração conduzem à ressonância corporal e espiritual, à vibração universal, ao limiar do espírito e da matéria.
Na palavra aleluia ou no vocativo “oh Aleluia”, encontram-se propriamente todas as vogais que constituem os mais diversos acordes do nosso ser e os sons do universo. A vibração surge do nosso centro para se espalhar em todas as direcções. Os diferentes tons, cantados no ritmo da respiração, provocam a abertura global. O espírito de Deus sopra vibrando na palavra. Do fundo do coração ressoa a essência da nossa alma na vibração do “tudo em todos” de que falam João e Paulo. Os pólos do corpo e da alma, do espírito e da matéria, do céu e do universo unem-se para deixar lugar apenas à ressonância amorosa.
O nosso coração torna-se no centro do universo, passa a existir só a relação, a relação trinitária no substrato do amor. “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. Agora tornado na natureza Jesus Cristo, o Céu e a Terra abraçam-se, como o esposo e a esposa na consciência duma nova realidade, a realidade trinitária do um em três, do eu no nós. A linha horizontal e a linha vertical tocam-se tal como o espaço e o tempo.
O nosso corpo na forma de cruz abraça toda a humanidade, todo universo. Se na inspiração o universo, Deus, nos abraça, na expiração abraçamos nós Deus, o universo. No amor ágape fraterno universal, sentimo-nos como um invólucro (1 Cor 3,16), uma taça, um sino no qual o ressoar se torna toda a presença.
O movimento da respiração pode então também ser dançado e expresso nos mais diferentes gestos. Fora e dentro, espírito e matéria estão em relação vital como sombra da realidade trinitária. O amor passa a ser o ar que se respira; o espírito que tudo une leva-nos ao mais profundo do nosso ser, do ser universal, da divindade em nós (Rom 5,5). Também no respirar podemos sentir o eco da voz de Deus. Na intimidade desta oração se unem poetas, músicos e religiosos, crentes e não crentes na vibração comum do amor, do Espírito Santo. A nossa humanidade depende do fluxo do amor em nós presente.
A técnica da meditação predispõe-nos para o actuar e agir do Espírito em nós. Ajuda-nos a encontrar outros acessos à Realidade para lá do acesso racional teológico mas sem o excluir. A ânsia da relação, e a procura do sentido manifesta-se na palavra tipicamente portuguesa “saudade” que exprime o profundo espírito poético e religioso da solidariedade existencial e mística. Ela é o lugar da casa paterna, da realização. No inspirar está o movimento para a vida, no expirar o movimento para a morte.
Na respiração unida ao próximo acontecem massagens de reanimação. O amor expresso na Ruach é presencializado (Jo 14,15-21) pelo nosso respirar no amor (Jo 15, 9-17). Deus está-nos mais próximo que o nosso próprio respirar, dizia também Agostinho.
A natureza está sempre presente nos momentos mais significativos da presença de Deus: no Arco-Iris, na trovoada, na volta de Jesus como faísca ou raio (Lc10,18; 17,24), na abertura do céu no baptismo (Mc 1,10), no tremer da terra na sua morte (Mt 27,51).
As metáforas dos sentidos apontam para uma realidade mais profunda. Na solidariedade cristã universal aí se experimenta o mundo como o “meio divino” como tão bem soube formular Teilhard de Chardin. Em Cristo tornamo-nos tudo em todos como tudo se transforma em Jesus Cristo, reconciliando-se nele a Matéria e o Espírito. Nele, o aqui e agora, têm sentido, sendo assim o optimismo um característico do espírito cristão.
António da Cunha Duarte Justo
“Pegadas do Espírito”, Quinta Outeiro da Luz, 2008