MORREU MÁRIO SOARES

Morreu Mário Soares – um homem com muitos defeitos e virtudes; não tinha medo dos defeitos e sabia o que queria conseguindo erguer-se da mediania fazendo muito de bem e muito de mal.
Reproduzo aqui uma frase de Mário Soares que diz muito, hoje citada no jornal alemão HNA: “Eu sou um pobre homem, que teve a sorte de ter assumido cargos e, assim, ter razão ” („Ich bin ein armer Mann, der das Glück hatte, Positionen zu beziehen und damit recht zu haben”!

Junto o ultimato de Fernando Pessoa por ser histórico, sempre actual e dar que pensar.

“ULTIMATUM
Fora tu,
reles
esnobe
plebeu
E fora tu, imperialista das sucatas,
charlatão da sinceridade
e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro
Ultimatum a todos eles
e a todos que sejam como eles,
todos.
Monte de tijolos com pretensões a casa
inútil luxo, megalomania triunfante
e tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral
que nem te queria descobrir
Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular,
que confundis tudo!
Vós, anarquistas deveras sinceros
socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores
para quererem deixar de trabalhar.
Sim, todos vós que representais o mundo,
homens altos,
passai por baixo do meu desprezo.
Passai aristocratas de tanga de ouro,
passai frouxos.
Passai radicais do pouco!
Quem acredita neles?
Mandem tudo isso para casa
descascar batatas simbólicas
fechem-me isso tudo a chave
e deitem a chave fora.
Sufoco de ter somente isso à minha volta.
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas
Abram mais janelas
do que todas as janelas que há no mundo.
Nenhuma idéia grande,
nenhuma corrente política
que soe a uma idéia grão!
E o mundo quer a inteligência nova,
a sensibilidade nova.
O mundo tem sede de que se crie.
O que aí está a apodrecer a vida,
quando muito, é estrume para o futuro.
O que aí está não pode durar
porque não é nada.
Eu, da raça dos navegadores,
afirmo que não pode durar!
Eu, da raça dos descobridores,
desprezo o que seja menos
que descobrir um novo mundo.
Proclamo isso bem alto,
braços erguidos,
fitando o Atlântico
e saudando abstratamente o infinito.” Álvaro de Campos – 1917

O ultimato de Fernando Pessoa apresenta a parte sombria de quem brilha na praça pública sorvendo o brilho dos outros. Os crentes laicos/seculares instrumentalizam a democracia e exageram também na veneração e culto dos seus “santos” que querem impor, a todo o custo, a toda a sociedade. Hoje a opinião pública portuguesa não tem possibilidade de sair de uma mentalidade que festeja a mediocridade dos seus “heróis” porque se encontra, de uma maneira geral, nas mãos de feitores não interessados em dar a conhecer os seus actos. São os actores e os interperetadores dos seus actos. A Soares se deve também a existência do partido comunista quando na Europa estes já desapareceram, por serem meramente ideológicos. Na França ele negociou com o partido comunista a entrega incondicional das colónias portuguesas aos guerrilheiros. A formatização maçónica-esquerda dos Media nacionais e da opinião pública é de tal ordem que torna difícil qualquer discussão objectiva séria. Na praça temos informaç1bo generalista e não temos um jornal de cultura popular geral que se possa afirmar contra os interesses corporativistas, a não ser a bola para a formação clubista. Causa tristeza, como a morte de Mário Soares é utilizada pelos políticos e pelos Mídea de maneira tão absorvente, unilateral e devota: uma verdadeira lavagem ao cérebro que a continuar assim não fomenta espíritos com capacidade de discernir continuando o país, de uma maneira geral, a pensar cada vez mais na mesma.

Independentemente dos aspectos positivos e negativos do regime de direita de Salazar e do regime de esquerda, iniciado com o 25 de Abril, o grande problema da sociedade portuguesa está em delegar a consciência nacional na consciência partidária e num culto de pessoas. De facto demos a independência aos outros e atraiçoamos a nossa.

 

Marcelo Caetano, ao falar sobre o 25 de Abri, citado em Portugal da Loja profetizou: “Em poucas décadas estaremos reduzidos à indigência, ou seja, à caridade de outras nações, pelo que é ridículo continuar a falar de independência nacional. Para uma nação que estava a caminho de se transformar numa Suíça, o golpe de Estado foi o princípio do fim. Resta o Sol, o Turismo e o servilismo de bandeja, a pobreza crónica e a emigração em massa.”
“Veremos alçados ao Poder analfabetos, meninos mimados, escroques de toda a espécie que conhecemos de longa data. A maioria não servia para criados de quarto e chegam a presidentes de câmara, deputados, administradores, ministros e até presidentes de República.”
É natural e legítimo que em política se tentem fazer valer os diferentes interesses partidários e as diferentes ideologias. O que não é natural é que um país tão multifacetado não saia da mediocridade continuando a dançar à volta dos seus bezerros políticos que actuam sem vergonha à custa da honra do povo. Não quero com isto estragar o humor ao socialistas e ao seu direito a festejar; -estão de parabéns porque são espertos e sabem fazer da nação a sua mangedoura num país onde o poder dos cargos é razão.

Mário Soares teve uma grande virtude que poderia ser programa para todos: o amor pela liberdade!

Que Deus tenha Mário Soares em eterno descanso e ilumine os multiplicadores de cultura e política no sentido de um Portugal de todos e honrado.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

7 comentários em “MORREU MÁRIO SOARES”

  1. Interessante ponto de vista.
    No Brasil observo um certo enaltecimento da figura de Mario Soares. Muitos por aqui o referenciam como um grande nome da politica européia, e como grande democrata. Outros como um dos grandes reformadores da república portuguesa pós Salazar, e um dos responsáveis pelas negociações e costuras com a União Européia que resultaram no forte apoio financeiro do bloco que acabou resultando em uma forte modernização da nação portuguesa.
    Estarão com a razão?
    Saudações ao sr.Antônio e demais participantes,
    Vilson
    Diálogos Lusófonos

  2. Muito bem apoiado! Os médias querem iludir o povo fazendo o dançar a volta dos seus bezerros políticos sacrificando a sua honra-
    Fremi

  3. Parabéns Justo, parabens Fremi e tantos outros que têm coragem de denunciar.
    Vê-se que começa a aparecer gente que tem cérebro e pensa com sua cabeça, não esquecendo o que viu e ouviu no passado.
    Um homem que teve o seu mérito na luta do prec e na integração europeia merece que lhe tiremos o chapéu, mas isso não lhe dá direito ao passaporte para a perfeição, que alguns querem fazer deste ex-governante, desastroso para o país, mas muito proveitoso para ele e seus acólitos
    E razão tem a Clara Ferreira no artigo que anexo.
    Só um desavergonhado e um desonesto, depois de ter sido o primeiro governante a tirar aos Portugueses o 13º mês (e com a promessa de mais tarde pagar, o que certamente fez nalgum 30 de Fevereiro!), e a fazer uma inflação de 28% , é que tinha a coragem de fazer a oposição que fez ao governo anterior e mesmo ao então Presidente da República em exercício sobre quem disse coisas inaceitáveis, porque proferidas por quem tinha obrigação de respeitar a função: um homem é um homem e um porco é um porco.
    Governou sempre os seus interesses e quem tiver dúvidas depois de ler o artigo da Clara, em anexo, pode ainda complementar com o anexo “ O Mário Soares que eu conheci”.
    Teve muita coragem sim, particularmente no vigor com que puxou a brasa para a sua sardinha e dos seus, mas sobretudo teve muito estômago…
    Que Deus lhe dê o eterno descanso mas não sou eu que o ponho nos altares.
    Agostinho
    Escrito por Clara Ferreira Alves sobre Mario Soares – no Expresso

    Sua Alteza Real, D. Mário Soares

    Tudo o que aqui relato é verdade. Se quiserem, podem processar-me

    Eis parte do enigma. Mário Soares, num dos momentos de lucidez que
    ainda vai tendo, veio chamar a atenção do Governo, na última semana,
    para a voz da rua.

    A lucidez, uma das suas maiores qualidades durante uma longa carreira
    politica. A lucidez que lhe permitiu escapar à PIDE e passar um bom
    par de anos, num exílio dourado, em hotéis de luxo de Paris.

    A lucidez que lhe permitiu conduzir da forma “brilhante” que se viu o
    processo de descolonização.

    A lucidez que lhe permitiu conseguir que os Estados Unidos
    financiassem o PS durante os primeiros anos da Democracia.

    A lucidez que o fez meter o socialismo na gaveta durante a sua
    experiência governativa.

    A lucidez que lhe permitiu tratar da forma despudorada amigos como
    Jaime Serra, Salgado Zenha, Manuel Alegre e tantos outros.

    A lucidez que lhe permitiu governar sem ler os “dossiers”..

    A lucidez que lhe permitiu não voltar a ser primeiro-ministro depois
    de tão fantástico desempenho no cargo.

    A lucidez que lhe permitiu pôr-se a jeito para ser agredido na Marinha
    Grande e, dessa forma, vitimizar-se aos olhos da opinião pública e
    vencer as eleições presidenciais.

    A lucidez que lhe permitiu, após a vitória nessas eleições, fundar um
    grupo empresarial, a Emaudio, com “testas de ferro” no comando e um
    conjunto de negócios obscuros que envolveram grandes magnatas
    internacionais.

    A lucidez que lhe permitiu utilizar a Emaudio para financiar a sua
    segunda campanha presidencial.

    A lucidez que lhe permitiu nomear para Governador de Macau Carlos
    Melancia, um dos homens da Emaudio.

    A lucidez que lhe permitiu passar incólume ao caso Emaudio e ao caso
    Aeroporto de Macau e, ao mesmo tempo, dar os primeiros passos para uma
    Fundação na sua fase pós-presidencial.

    A lucidez que lhe permitiu ler o livro de Rui Mateus, “Contos
    Proibidos”, que contava tudo sobre a Emaudio, e ter a sorte de esse
    mesmo livro, depois de esgotado, jamais voltar a ser publicado.

    A lucidez que lhe permitiu passar incólume as “ligações perigosas” com
    Angola, ligações essas que quase lhe roubaram o filho no célebre
    acidente de avião na Jamba (avião esse transportando de diamantes, no
    dizer do então Ministro da Comunicação Social de Angola).

    A lucidez que lhe permitiu, durante a sua passagem por Belém, visitar
    57 países (“record” absoluto para a Espanha – 24 vezes – e França –
    21), num total equivalente a 22 voltas ao mundo (mais de 992 mil
    quilómetros).
    A lucidez que lhe permitiu visitar as Seychelles, esse território de
    grande importância estratégica para Portugal, aproveitando para dar
    uma voltinha de tartaruga.
    A lucidez que lhe permitiu, no final destas viagens, levar para a
    Casa-Museu João Soares uma grande parte dos valiosos presentes
    oferecidos oficialmente ao Presidente da Republica Portuguesa.
    A lucidez que lhe permitiu guardar esses presentes numa caixa-forte
    blindada daquela Casa, em vez de os guardar no Museu da Presidência da
    Republica.
    A lucidez que lhe permite, ainda hoje, ter 24 horas por dia de
    vigilância paga pelo Estado nas suas casas de Nafarros, Vau e Campo
    Grande.
    A lucidez que lhe permitiu, abandonada a Presidência da Republica,
    constituir a Fundação Mário Soares. Uma fundação de Direito privado,
    que, vivendo à custa de subsídios do Estado, tem apenas como única
    função visível ser depósito de documentos valiosos de Mário Soares. Os
    mesmos que, se são valiosos, deviam estar na Torre do Tombo.
    A lucidez que lhe permitiu construir o edifício-sede da Fundação
    violando o PDM de Lisboa, segundo um relatório do IGAT, que decretou a
    nulidade da licença de obras.

    A lucidez que lhe permitiu conseguir que o processo das velhas
    construções que ali existiam e que se encontrava no Arquivo Municipal
    fosse requisitado pelo filho e que acabasse por desaparecer
    convenientemente num incêndio dos Paços do Concelho.
    A lucidez que lhe permitiu receber do Estado, ao longo dos últimos
    anos, donativos e subsídios superiores a um milhão de contos.
    A lucidez que lhe permitiu receber, entre os vários subsídios, um de
    quinhentos mil contos, do Governo Guterres, para a criação de um
    auditório, uma biblioteca e um arquivo num edifico cedido pela Câmara de Lisboa.
    A lucidez que lhe permitiu receber, entre 1995 e 2005, uma subvenção
    anual da Câmara Municipal de Lisboa, na qual o seu filho era Vereador
    e Presidente.
    A lucidez que lhe permitiu que o Estado lhe arrendasse e lhe pagasse
    um gabinete, a que tinha direito como ex-presidente da República,
    na… Fundação Mário Soares.

    A lucidez que lhe permite que, ainda hoje, a Fundação Mário Soares
    receba quase 4 mil euros mensais da Câmara Municipal de Leiria.
    A lucidez que lhe permitiu fazer obras no Colégio Moderno, propriedade
    da família, sem licença municipal, numa altura em que o Presidente
    era… João Soares.
    A lucidez que lhe permitiu silenciar, através de pressões sobre o
    director do “Público”, José Manuel Fernandes, a investigação
    jornalística que José António Cerejo começara a publicar sobre o tema.
    A lucidez que lhe permitiu candidatar-se a Presidente do Parlamento
    Europeu e chamar dona de casa, durante a campanha, à vencedora Nicole
    Fontaine.
    A lucidez que lhe permitiu considerar Jose Sócrates “o pior do
    guterrismo” e ignorar hoje em dia tal frase como se nada fosse.

    A lucidez que lhe permitiu passar por cima de um amigo, Manuel Alegre,
    para concorrer às eleições presidenciais mais uma vez.
    A lucidez que lhe permitiu, então, fazer mais um frete ao Partido Socialista.
    A lucidez que lhe permitiu ler os artigos “O Polvo” de Joaquim Vieira
    na “Grande Reportagem”, baseados no livro de Rui Mateus, e assistir,
    logo a seguir, ao despedimento do jornalista e ao fim da revista.

    A lucidez que lhe permitiu passar incólume depois de apelar ao voto no
    filho, em pleno dia de eleições, nas últimas Autárquicas.
    No final de uma vida de lucidez, o que resta a Mário Soares? Resta um
    punhado de momentos em que a lucidez vem e vai. Vem e vai. Vem e vai.
    Vai…. e não volta mais.

    Clara Ferreira Alves

  4. continuação:
    Carlos Melancia e Rui Mateus não falam sobre a vida de Mário Soares?
    Daqui, um lembrete de acontecimentos funestos que prejudicaram Portugal, neste dia de cerimónias fúnebres:

    Mário Soares ainda cumpria o seu primeiro mandato como Presidente da República mas já pensava no segundo. Não lhe passava pela cabeça viver menos de uma década no Palácio de Belém – e, concluiu, nunca o conseguiria se não tivesse o apoio de um grupo de comunicação social. Problema: por aqueles dias, Soares considerava que a imprensa lhe era hostil. Solução que encontrou: promover a criação do seu próprio grupo, que funcionasse como uma espécie de ponta de lança da sua agenda política – e se, pelo caminho, ainda fosse possível fazer algum dinheiro para financiar o Partido Socialista (PS), tanto melhor. Foi assim que nasceu a Emáudio.
    Para ficar à frente da empresa, o Presidente, que formalmente não podia ter nada a ver com o projecto, escolheu um homem da sua total confiança: Rui Mateus, seu braço-direito e presidente da Fundação para as Relações Internacionais (FRI) [uma entidade inspirada por Soares, alegadamente criada para gerir interesses ligados a si e ao financiamento do PS], que ficou com 60% do capital. Os restantes 40% foram divididos por oito sócios, todos próximos de Soares, como eram os casos de Carlos Melancia, João Soares ou Almeida Santos.
    A captação do dinheiro necessário para os grandes investimentos foi feita ao mais alto nível. Sílvio Berlusconi, o magnata da comunicação social italiana que viria a tornar-se Primeiro-Ministro, foi o primeiro convidado a apresentar uma proposta a Soares. Apesar do pequeno show que montou no Palácio de Belém – onde instalou um mini-estúdio de televisão para impressionar a assistência –, o excêntrico empresário ficou pelo caminho. O candidato seguinte foi sugerido por Frank Carlucci, ex-embaixador americano em Lisboa e velho conhecido de Soares, que apresentou o nome do australiano Rupert Murdoch, dono do gigante da comunicação social News Corporation, como uma possibilidade.
    Em Março de 1987, já depois de ter enviado representantes para negociar com Rui Mateus, Murdoch deslocou-se a Portugal, onde após um jantar em Belém com Mário Soares firmou um acordo com Mateus com vista à criação conjunta de uma empresa destinada a investimentos nos media em Portugal e nos territórios de língua portuguesa – e Macau estava no seu radar.

    Também Murdoch acabaria por ficar pelo caminho, varrido por um terceiro gigante dos média: Robert Maxwell, o seu rival número um que, segundo relata Rui Mateus em Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido, conquistou Soares ao sublinhar que “os nossos muitos milhões de leitores, dos nossos seis jornais de grande circulação na Grã-Bretanha, necessitam e desejam conhecer mais, da mais alta autoridade, o pensamento e os planos do primeiro socialista da Europa”.

    O ego de Soares não resistiu a tanto carinho: não passaria muito tempo até que a ligação fosse oficializada. “Com muitas dezenas de milhar de contos ‘oferecidos’ por Maxwell em 1987 e 1988, com consideráveis verbas oriundas do ‘ex-MASP’ [Movimento de Apoio de Soares à Presidência] e uma importante contribuição de uma empresa próxima de Almeida Santos, houve o suficiente para aumentar o capital da empresa de cinco para cem mil contos, para comprar um prédio no Príncipe Real e equipá-lo com algum luxo”, descreve Rui Mateus.

    Rapidamente se percebeu que o objectivo basilar de Maxwell era Macau, o admirável território onde havia tantos milhões de patacas para distribuir e para onde Soares nomearia brevemente como Governador o seu amigo e camarada Carlos Melancia. O empresário sugeriu a criação de um canal de televisão sob administração portuguesa. Soares, ou os seus próximos por si, criaram condições para que isso acontecesse, abrindo a possibilidade da entrada no capital da Teledifusão de Macau (TDM). Tudo parecia correr bem até que Maxwell decidiu recuar, comunicando aos sócios da Emáudio o seu desinteresse em continuar. Mas já muito tinha sido feito até àquele momento – e nem tudo de forma limpa.

    Em 1988, o Expresso noticiou um esquema de alegado tráfico de influências em favor da Emáudio no processo de privatização da TDM, colocando Soares de nervos em franja – a sua reeleição podia ser posta em xeque caso o seu nome fosse associado repetidamente ao caso. Paralelamente, os interesses da Emáudio em Macau tinham evoluído para outros sectores. E quem apareceu para lhe “dar a mão” na viagem ao sempre agitado submundo da economia macaense? Stanley Ho, o dono do jogo macaense, milionário encartado e homem mais influente do território. Ofereceu-se para entrar no capital da Emáudio. Rui Mateus garante que fez tudo para que isso não acontecesse. Sem efeito.

    O aeroporto que estragou o sonho
    Um dos grandes projectos de Carlos Melancia era a construção de um aeroporto internacional em Macau. Um investimento faraónico que movimentaria muitos milhões de patacas e em que a Emáudio acabou por se ver envolvida. Conta Rui Mateus que um dia depois da tomada de posse de Carlos Melancia como Governador, recebeu instruções da secretária da Presidência da República, Osita Eleutério, para receber o “camarada” António Strecht Monteiro, filho de um militante do PS amigo de Mário Soares. Monteiro representava os interesses de uma empresa pública alemã, ligada ao partido SPD, que administrava o aeroporto de Frankfurt. Objectivo: garantir que, agora que o Governador mudara, a empresa alemã continuaria, como até então, ligada ao projecto do novo aeroporto.

    Em 1988 Strecht Monteiro contactaria novamente a Emáudio, mas desta vez em representação da Weidleplan, uma empresa germânica de consultadoria que pretendia, também ela, estar envolvida no projecto do aeroporto. “Pediam-nos apenas que lhes abríssemos portas (…) Como era habitual nestas situações, o alemão Peter Beier [director da empresa] prometia um donativo político de 50 mil contos [hoje seriam cerca de 250 mil euros] à organização que lhe indicássemos. E, uma vez mais, como sempre acontecera, informámos Mário Soares, os sócios da Emáudio e (…) Carlos Melancia, todos concordando com a proposta desde que a Weidleplan estivesse disposta a submeter-se às regras e aos eventuais concursos”, continua Rui Mateus, um homem cujo paradeiro é hoje desconhecido.

    Feito o acordo, o dinheiro foi transferido para a Emáudio. Mas um pequeno percalço deitou tudo a perder: a Weidleplan acabou por ficar de fora do projecto por decisão de Carlos Melancia, que escolheu a Aeroportos de Paris para a prestação de serviços de consultadoria. O caldo estava entornado. Apertado pelos alemães para “cobrar” a contribuição, Strecht Monteiro exigiu a Mateus uma conversa com Melancia. Mas este já não lhe ligava.

    Foi então que Rui Mateus – que entretanto caíra em desgraça junto de Soares, Melancia e restantes sócios da Emáudio por se recusar a abdicar da sua quota na empresa em favor de um projecto ligado à Fundação Mário Soares – teve uma ideia: porque não tentar contactá-lo por fax? “Ofereci-me logo para lhe dar o número de fax de casa do Governador (…) Naquela altura eu não estava exactamente na melhor das relações com Mário Soares ou Melancia. Estava (…) furioso e, num aparte, acrescentei que aproveitasse para lhe pedir a ele o dinheiro, uma vez que tinha ficado com ele”, descreve em Contos Proibidos.

    Dois dias depois, quando Mateus chegou ao seu gabinete tinha em cima da secretária uma cópia do fax que efectivamente fora enviado. “Nele lamentavam não terem ‘ainda recebido qualquer resposta referente ao projecto do Aeroporto de Macau’ e, salientando terem cumprido os desejos de Melancia ‘em termos financeiros’, pediam para reaver o dinheiro gasto. Aproximadamente cinquenta mil contos pagos ‘de acordo com as suas instruções’ e juros de 9%!”

    Carlos Melancia, a quem aquele documento deixava em muitos maus lençóis, ignorou a sua recepção, numa decisão que viria a perceber ter sido trágica. Mas Rui Mateus estava disposto a levar o caso às últimas consequências. Acreditava que a Emáudio tinha o “dever moral” de devolver o dinheiro à Weidleplan. E recusava sair prejudicado caso a Emáudio fosse liquidada, como tudo indicava que iria acontecer. Em meados de Janeiro de 1990, telefonou a Strecht Monteiro, ameaçando-o com a possibilidade de revelar o fax à comunicação social. Em Fevereiro de 1990, naquilo que classificou como um “acto desesperado”, Rui Mateus entregou mesmo, contra a vontade dos seus autores, uma cópia do fax alegadamente incriminatório ao jornal O Independente. Um míssil que sabia que, uma vez rebentado, não deixaria pedra sobre pedra. E não deixou mesmo.

    Na manhã em que a história fez manchete, Melancia recebeu muitas chamadas. A primeira foi de Jorge Coelho – o homem que lhe deu a notícia. A sua reputação estava de rastos. Em Portugal falava-se de suborno e de corrupção. Pouco depois, ligou-lhe o inevitável Stanley Ho.

    – Senhor Governador, queria falar consigo, pode ser?

    – Sim, claro. Passe cá no palácio.

    Face a um Melancia desolado, o empresário foi directo ao assunto.

    – De que é que precisa, em que posso ajudá-lo?

    O Governador ainda acreditava que sobreviveria apenas com a protecção de Soares.

    – Deixe lá, isto é uma intrigalhada que tenho de resolver com o Presidente da República.

    Stanley acenou com esferas de influência ao mais alto nível.

    – Pensa que seria útil se eu activasse os meus contactos no Governo chinês?

    Melancia continuava em negação.

    – Acho que não, isto é algo que pode prejudicar muito a imagem de Portugal, mas vou tentar resolvê-lo em breve.

    A repercussão da notícia foi brutal. Soares foi colocado instantaneamente em xeque. Teria ele tomado conhecimento da existência do fax? Qual a sua real ligação ao projecto megalómano da Emáudio? Melancia pediu-lhe uma audiência. Juntos haveriam de encontrar uma solução digna para os dois. Quando chegou a Belém apanhou um banho de água fria: Soares estava mais preocupado com a sua imagem pessoal do que em defender a reputação destroçada do amigo. “Senti-me atraiçoado. Percebi que ele estava dedicado a assegurar a sua reeleição e que isto era um problema que dispensava”, viria a declarar.

    O castelo de cartas desmoronava-se à sua frente. As dúvidas em torno das suas responsabilidades no caso, alimentadas ao longo de vários meses pelas notícias – sobretudo as publicadas no Expresso, em que o jornalista Joaquim Vieira expôs detalhadamente o escândalo -, tornaram, no espírito de Soares, inevitável a saída de Melancia. Aconselhou-o a demitir-se. Este resistiu. Achava que não devia nada a ninguém. Acabaria por não suportar a pressão. Quando aterrou em Portugal para entregar a carta de demissão, alguém lhe perguntou: “Bom, se tu alguma vez recebeste esta verba da empresa que perdeu, quanto é que recebeste da que ganhou?”

    Depois de ter sido acusado de corrupção pelo Ministério Público, em 1993, o ex-Governador foi absolvido em tribunal. A absolvição foi confirmada nove anos depois pelo Supremo Tribunal de Justiça. No dia em que a sentença foi divulgada, Mário Soares ligou-lhe. Melancia mandou dizer que não estava.

    Fontes:

    Soares, Uma Vida, de Joaquim Vieira – Esfera dos Livros

    Jorge Coelho: o Todo-Poderoso, de Fernando Esteves – Esfera dos Livros

  5. Além da autoria dos textos é também muito importante o conteúdo.
    Hoje torna-se muito difícil a capacidade de análise mesmo para as pessoas mais atentas. Vive-se em guetos com diferentes realidades no modo de vida e de pensar: a do povo e a da “Inteligência” que domina tudo. Felizmente, embora com perigos acrescidos, a informação cada vez se mantem menos nas mãos de alguns.

    Junto mais uma vez o poema de Fernando Pessoa que poderia ser programa.

    “ULTIMATUM
    Fora tu,
    reles
    esnobe
    plebeu
    E fora tu, imperialista das sucatas,
    charlatão da sinceridade
    e tu, da juba socialista, e tu, qualquer outro Ultimatum a todos eles e a todos que sejam como eles, todos.
    Monte de tijolos com pretensões a casa
    inútil luxo, megalomania triunfante
    e tu, Brasil, blague de Pedro Álvares Cabral que nem te queria descobrir Ultimatum a vós que confundis o humano com o popular, que confundis tudo!
    Vós, anarquistas deveras sinceros
    socialistas a invocar a sua qualidade de trabalhadores para quererem deixar de trabalhar.
    Sim, todos vós que representais o mundo, homens altos, passai por baixo do meu desprezo.
    Passai aristocratas de tanga de ouro,
    passai frouxos.
    Passai radicais do pouco!
    Quem acredita neles?
    Mandem tudo isso para casa
    descascar batatas simbólicas
    fechem-me isso tudo a chave
    e deitem a chave fora.
    Sufoco de ter somente isso à minha volta.
    Deixem-me respirar!
    Abram todas as janelas
    Abram mais janelas
    do que todas as janelas que há no mundo.
    Nenhuma idéia grande,
    nenhuma corrente política
    que soe a uma idéia grão!
    E o mundo quer a inteligência nova,
    a sensibilidade nova.
    O mundo tem sede de que se crie.
    O que aí está a apodrecer a vida,
    quando muito, é estrume para o futuro.
    O que aí está não pode durar
    porque não é nada.
    Eu, da raça dos navegadores,
    afirmo que não pode durar!
    Eu, da raça dos descobridores,
    desprezo o que seja menos
    que descobrir um novo mundo.
    Proclamo isso bem alto,
    braços erguidos,
    fitando o Atlântico
    e saudando abstratamente o infinito.” Álvaro de Campos – 1917

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