Numa altura em que na opinião pública se manifesta, em primeiro plano, a luta pelo poder, influência e dinheiro, a devoção ao Coração de Jesus, até parece estranha por apontar para um outro caminho, o caminho do coração e do sentimento. A frase de Blaise Pascal “O coração tem razões que a própria razão desconhece”, alerta para o facto de o coração estar ligado a sentimentos, emoções e um pouco também à razão, e a razão ao “cérebro”. São dois polos opostos, mas que, no dia-a-dia, pertencem juntos.
O evangelista João diz que depois que Jesus foi crucificado, um soldado perfurou seu lado com uma lança “e logo saiu sangue e água” (João 19:34). O Coração de Jesus é interpretado como símbolo de sua humanidade e como uma expressão de seu amor especial pelas pessoas. O lado aberto de Cristo foi interpretado por teólogos como a porta da salvação da qual brotam os sacramentos: o sangue como símbolo da Eucaristia, a água como sinal do baptismo. “O significado da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus que celebramos hoje é expressar a fidelidade humilde e a bondade do amor de Cristo, revelação da misericórdia do Pai, sempre para descobrir mais e para nos deixarmos envolver por ela”, escrevia o Papa Francisco em 2014.
Quando vemos um coração pensamos geralmente em amor.
A via mística que caracteriza a devoção ao sagrado coração hoje já não parece muito acessível a muitos mas numa época em que se acentua cada vez mais a funcionalidade da pessoa humana torna-se importantíssimo acentuar a relação pessoal e a via do coração na vida, doutro modo distanciamo-nos de nós mesmos na qualidade de seres espirituais e tornamo-nos mais vítimas de doenças corporais, psíquicas e da alma. Para não nos exteriorizarmos a nós mesmos torna-se importante voltar a pensar com o coração como ensinavam os antigos Padres da igreja. O relacionamento com Deus é um assunto profundamente místico e espiritual do coração que consiste em mergulhar-se completamente no amor de Deus.
O coração é o centro da vida. Ele é o lugar das mais diversas emoções, do medo, da coragem e também o centro do espírito e da compreensão – é o centro de tudo -, o que motivava Saint-Exupéry a afirmar: “O essencial é invisível aos olhos”.
O relacionamento com Deus é um assunto profundamente místico e espiritual do coração. A teologia do coração é uma teologia do nós numa permuta de Tu-Eu, de diálogo interior, uma relação mística com Deus num processo de introspeção da alma e da consciência mental. A oração do coração é um caminho espiritual de exercício e experiência; a oração é repetitiva e reiterada como se fosse uma mantra; esta prática de meditação é muito comum na comunidade “via cordis” – caminho do coração – (1) em que se repete uma palavra interior do coração (que cada orante escolhe segundo a sua preferência, como, “meu senhor e meu Deus”, “Jesus Cristo, ajuda-me”, “Coração de Jesus, minha salvação”, etc. em que ela se repete fervorosamente até que essa repetição se extinga em uma oração silenciosa sem palavras. Pode começar-se por respirar em Deus, isto é, ligar a frase ou jaculatória à respiração – sensação corporal – (uma parte à inspiração e a outra à expiração: no meu noviciado comecei a praticar este método que se revelou muito gratificante). Franz-Xaver Jans-Scheidegger recorda: “A oração do coração é um caminho espiritual de exercício e experiência. O objetivo é chegar ao centro do seu ser e descobrir a raiz de todo o ser… Esta forma de oração promove a compaixão pelas pessoas e por toda a criação.” Trata-se de deixar de lado todos os pensamentos e imagens e tornar-se completamente aberto à única razão de ser. “O Senhor te acolheu em seu coração” (Dtn 7:6-11).
António CD Justo
Pegadas do Tempo
(1) Via Cordis: https://www.viacordis.net/herzensgebet