Razões económicas, políticas e demográficas, aliadas ao desejo de uma nova Europa em processo, pressupõem o interculturalismo e o bilinguismo como forma normal de ser e de relacionamento. O emaranhado de situações e interesses dificultam a concretização e realização da interculturalidade no mosaico cada vez mais polifacetado das nações modernas.
Por um lado assiste-se à interdisciplinaridade e a um enriquecimento mútuo dos vários sectores da sociedade, ciência e cultura, por outro lado a relação a nível de grupos étnicos deixa muito a desejar.
Podemos apontar os turcos e os portugueses como dois exemplos protótipos de atitudes antagónicas na maneira de estar numa sociedade de acolhimento (na França são os portugueses maioria, na Alemanha os turcos). Se por sua vez os portugueses se integram ou se deixam assimilar, os turcos por razões religiosas e culturais reagem alergicamente a uma integração mesmo comedida, fechando-se por vezes em guetos impermeáveis com consequências quase irreparáveis atendendo a que a aquisição e domínio da língua alemã é um pressuposto para uma participação eficaz no sistema. Neste caso assiste-se ao facto da existência de sociedades paralelas. Esta problemática é bastante crassa na Alemanha pelo facto da questão migrante não ser objecto da discussão intelectual e política encontrando-se relegada para o âmbito da assistência ou dos moralistas dos vários quadrantes. Medo, absentismo e oportunismo impedem um discurso e uma relação descomplexada e consciente entre a cultura da maioria e as culturas minoritárias.
Processo de desenvolvimento do bilinguismo
As crianças portuguesas, tal como as doutras nacionalidades, seriam mutiladas na sua personalidade se fossem alheadas e desenraizadas do meio-ambiente em que crescem. Se as crianças crescem num ambiente bilingue é óbvio que devam aprender a língua dos pais e a língua do país em que vivem. No caso dos casamentos mistos seria natural uma maior consciência da importância da transmissão de duas culturas, preparando a criança para uma maneira diferente de estar no mundo. A formação bilingue deve dar-se a partir do nascimento da criança, até porque a capacidade de aprendizagem duma língua é inversa à idade.
É verdade que a criança, até aos dois anos reproduz palavras, misturando as duas línguas; com o tempo porém surge a diferenciação e a partir dos dois anos já separa os dois códigos e a partir dos três anos e meio passa a distinguir os dois mundos.
A aquisição das línguas acontece em diferentes situações, seja ela movida pela necessidade de comunicar com os companheiros de jogo ou com as famílias obedecendo sempre a diferentes regras e pressupostos. Esta aprendizagem situacional variada é muito proveitosa para a aquisição bilingue. A aprendizagem posterior duma língua já se dá através do filtro inicial da primeira língua. O bebé bilingue aprende, já no primeiro ano de vida, a variedade de sons que facilitará a expressão futura. Facto é que quanto mais complexa for a língua mais possibilidades abre, mesmo até cerebralmente.
Uma outra maneira de ser e de estar
Personalidade enriquecida, aberta e reflectida
O Homem tornou-se homem/mulher através da língua. Para nos darmos conta da importância do assunto torna-se necessário reconhecer a dependência e a correlação mútua que há entre pensamento, linguagem e estrutura social.
A investigação científica mostra-nos que a personalidade do bilingue é diferente da do monolingue. Enquanto que as referências de estruturação do monolingue se processam duma forma mais estática e modelar, no bilingue a formação da personalidade é mais processual, mais dinâmica e diferenciada. O bilingue, mais que ter ou estar, ele acontece em relação, é. Ser bilingue é ser-se processo, processo na mudança, não é ter duas línguas mas viver em duas línguas, em dois mundos, navegar noutros espaços; é ter vistas mais rasgadas, outras perspectivas do mundo, é participação mais livre, conhecimentos dinámicos; é viver amando, aceitando o outro como ele é, aberto para comunicar, dar e receber… comunicar-se como forma de vida; é uma nova mundivisão onde não há modelos fixos em que instituições e valores passam a ser referenciados e portanto relativizados para mais se poder ser; é viver em mais que uma existência. Numa palavra, o bilingue tem uma personalidade multidialogal cuja forma de ver e sentir já não é tão estática e “subordinada”como a do monolingue mas sim situacional, multirreferencial, processual-dinámica.
O bilingue encontra-se mais cedo que o monolingue na necessidade dum relação de passar a ser mais sujeito e menos objecto, no confronto das tradições e sistemas, sendo por vezes forjado na tensão de sociedades fechadas em que a sociedade de acolhimento puxa para um lado e a sociedade mandatária para o outro. As famílias que conseguiram desprender-se destas amarras dialécticas possibilitam aos filhos uma consciência em que as fronteiras já não constituem limites mas sim, quando muito, apenas pontos de referência. Uma sociedade que já é capaz de integrar e aceitar lésbicas e homossexuais tem que ser capaz de integrar o diferente, o estranho… A diferença é a lei mais verificada na natureza e, nela, está implícito todo o desenvolvimento.
Questionação científica
Os cientistas têm escrito muito sobre a questão da bilingualidade, chegando por vezes a resultados contraditórios. Há cientistas que recomendam que se fale, com a criança, a língua que se domina; significando isto que nos casos de casamentos mistos (português – alemão) um cônjuge fale o português e o outro o alemão. Outros chegam mais além desproblematizando a situação defendendo mesmo a mistura segundo as situações.
Ao contrário os puristas/nacionalistas principalmente no passado apontavam para o problema de se originar uma língua mistura chegando a falar mesmo do analfabetismo nas duas línguas ou da falta duma identidade étnica ou mesmo do perigo duma dupla personalidade da criança. Facto é que esta opinião nunca foi comprovada científicamente. Muitas vezes esta visão tem um carácter ideológico e remonta aos constructos nacionalistas do século dezanove.
Papel dos pais/avós na infância
Até aos três anos, a criança reflectirá o ambiente familiar quer nele se fale só uma língua, quer as duas. Com a entrada no Jardim Infantil passará o alemão a dominar e a acentuar-se cada vez mais socialmente, mesmo que os pais falem só uma língua em casa. Nos primeiros anos da infância a criança tem grande capacidade de absorção das duas ou mais línguas sem dificuldade. Com o desenvolver dos anos a dificuldade aumenta. Atendendo ao enriquecimento inter-cultural e às capacidades da criança na primeira infância seria um roubo à criança se esta fosse privada duma das línguas ou do convívio com elementos das duas sociedades.
Na falta de exercitação do português em casa os pais, em questão deveriam socorrer-nos de estratégias supletivas ligando mais os avós nas relações com a criança, criando mais encontros com famílias portuguesas, frequentando mais os centos portugueses, interferindo mais na programação das suas actividades e planeando mais férias em Portugal. Na situação inversa seria consequente a criação de laços individuais e institucionais com a sociedade de acolhimento.
No caso de casamentos mistos penso ser de muita importância que cada um dos pais fale a sua língua materna deixando a oportunidade e liberdade à criança de se expressar na língua que quiser. O facto de um cônjuge falar sempre o português leva a criança a internalizar o português, embora o não use no dia a dia como língua de expressão. Mais tarde, nas aulas de “língua da origem” recuperam rapidamente défices específicos.
O português transmitido nos primeiros anos de vida da criança, embora limitado a relações gregárias, tem imensa importância no desenvolvimento; é muito relevante para o desenvolvimento psicológico intelectual e social da mesma. Constitui um capital cultural e uma herança muito rica com imensas consequências gratificantes para o futuro e para a personalidade da criança.
Ensino da Língua “materna”
A inscrição das crianças nos cursos de Língua e Cultura Portuguesas é essencial para o alargamento da competência comunicativa que deve ser aprofundada e reflectida nos seus aspectos de competência sociolinguística, sociocultural, de competência estratégica, discursiva e de competência empática.
Conscientes da importância da língua e da cultura dos pais para as crianças, os Estados federados alemães instituíram desde 1968 o Ensino da Língua Materna no seu currículo escolar com 3 – 5 horas lectivas semanais. É reconhecida grande importância à aquisição da língua dos antepassados, por razões socio-pedagógicas, psicológicas e económicas.
Todos os bilingues deveriam ter a oportunidade de se formarem bilingues. Uma educação inter-cultural deveria ser possível em todas as escolas e para todos os alunos. Os bilingues serão os mais preparados para manter a relação e estabelecer pontes entre gerações e culturas. É preciso incentivar-se a motivação e não tolerar a intolerância dos guetos. É compreensível a relutância que muitas crianças apresentam perante a aprendizagem do português, atendendo à sobrecarga que significa e a concorrer com actividades imediatamente gratificantes.
A língua portuguesa, tal como outras línguas de culturas minoritárias em diáspora, está sujeita a preconceitos criados pela cultura dominante sendo. Uma língua falada só em casa contribui para preconceitos que poderiam ser desfeitos através da frequência das aulas de língua materna.
Por vezes os pais deixam-se impressionar pela pressão de pessoas, que em alguns casos aconselham os alunos a não frequentarem o Ensino da Língua “Materna”, ou porque, não querem sobrecarregar os filhos com as aulas de português, ou, ainda, porque os filhos preferem ter a tarde livre como os colegas alemães.
Se é verdade que muitas vezes a criança não tem a mesma competência linguística nas duas línguas, apresentando problemas numa delas, isso não quer dizer que deva abandonar o português seja este a língua forte ou a língua fraca. Pais desinformados não inscrevem os filhos na escola logo na primeira ou segunda classe tornando-se depois cada vez mais difícil inscrevê-los. Se é verdade que a criança, no primeiro ano, deve ser alfabetizada no alemão também é verdade que, ao frequentar, simultaneamente, a escola portuguesa, ela começa logo a ter a experiência duma aprendizagem estruturada da língua, se bem que a princípio, apenas oralmente e através de jogos, imagens e de desenhos. Possibilita-se-lhe assim a experiência duma diferente forma de estar no mundo, ao comunicar e brincar com os companheiros da “escola portuguesa”, sendo isto muito importante para a socialização e aquisição de hábitos nos verdes anos.
Enquanto as elites estrangeiras, conscientes da importância da formação inter-cultural, (p.e. os japoneses) criam escolas privadas pagando bem para que a sua língua e cultura seja transmitida aos seus filhos, observam-se alguns pais distraídos, em cidades grandes, que não se preocupam com a escolarização dos filhos no português. A não inscrição dos filhos na escola constituiria um atestado de pobreza de espírito para todos aqueles que, podendo usufruir do ensino do português gratuito, não recorressem a ele. Não se trata de elevar o português aos cornos da lua pelo facto de ocupar o 5°. lugar nas línguas do mundo mas sim de com espírito frio saber ver, organizar e planear indirectamente o futuro abrindo perspectivas à vida.
Nas zonas onde ensino o português tenho deparado com o interesse exemplar da quase totalidade dos pais que chegam a enviar os seus filhos a 20 quilómetros de distância, para poderem frequentar o ensino da Língua Materna. Isto é prova do interesse e consciência dos encarregados de educação em perfeito contraste com políticas de ensino, apregoadas desde 1998, tendentes a acabar com o ensino da Língua materna para o tornarem apenas acessível a alunos liceais (do Gymnasium) onde a concentração populacional escolar e a procura no respectivo liceu o permitir. (Esta é uma política ilusória desconhecedora da realidade alemã, tendente a acabar com o português pela raiz e abandonando infra-estruturas que precisariam sim de revitalização).
Situação a evitar
É fatal adiar a inscrição das crianças nos Cursos de Português. Há crianças cujo contacto com o português se processa apenas pela negativa como se dá nos casos em que alguns pais falando habitualmente o alemão em casa, com os filhos, em casos conflituosos, usam o português como veículo de agressão, apenas para ralhar ou castigar. A criança passa assim a ter uma experiência muito parcial do português, associando-o à negatividade além de o não experimentar como veículo normal de comunicação. Nestas condições a criança não pode ter nenhuma motivação para aprender o português. Há encarregados de educação que para aprenderem o alemão deixam de falar o português optando por um alemão macarrónico, habituando a criança a estruturas de língua não correctas.
Vantagens da bilingualidade
Uma plurilingualidade viva constitui um enriquecimento para a personalidade aos mais diversos níveis. De facto há uma relação entre funções da língua e funções cerebrais. Uma pessoa que desde a primeira infância fale mais que uma língua activa de maneira particular os centros da língua no cérebro e interliga as funções cerebrais dado as acções da língua se armazenarem nos dois globos do cérebro.
O domínio de línguas facilita a aquisição de outros idiomas, além de alargar a riqueza fonética específica capacita a pessoa para novas visões da realidade: capacitação para a diferenciação e reconhecimento da diferença. Deste modo o aproveitamento e o desenvolvimento da criança potenciam-se. Crianças bilingues orientam-se de maneira diferente das crianças monolingues. As bilingues aprendem cedo a diferenciar situações e a posicionar-se situacionalmente. Elas têm de desenvolver mais estratégias de expressão adquirindo assim competências contextuais, de conexão bem como competências metalínguísticas (que vão mais longe do que a língua, como aspectos neuro-psicológicos etc.). A bilingualidade promove, além do mais, o desenvolvimento de competências de interacção cultural e um maior desenvolvimento do cérebro.
Os pais não podem abdicar da sua missão caindo num laissez faire irreflectido. Para o desenvolvimento posterior da língua é responsável a escola. A semente tem porém de ser lançada pelos pais/avós. É urgente capacitar os jovens a poderem viver e expressar-se nos dois mundos. Deste modo capacitamos os nossos educandos a maior flexibilidade e a estar em casa em vários mundos, espaços e épocas. A bilingualidade, trilingualidade serão realidade decisiva numa Europa do futuro. Numa Europa multiétnica, o domínio de línguas abre também chances culturais e económicas.
É preciso criar-se o espaço da Língua Portuguesa como o espaço de existência de formas e experiências vitais diferentes com muito espaço para a liberdade e criatividade onde se aprende o afecto na relação autêntica e verdadeira. Neste sentido têm que se empenhar pais, associações, estado, multiplicadores, RTPi etc. A RTPi tem que repensar os seus programas que normalmente “espantam” a criança bem como pessoas de espírito jovem ao serem confrontadas com programas de conversa ou melo-saudosistas voltados apenas para um tipo ultrapassado de emigrantes.
A língua é a minha terra, e para o bilingue a sua terra é o mundo.
António da Cunha Duarte Justo
(Professor de Língua e Cultura Portuguesas em Kassel e docente de Português na Universidade de Kassel, membro de direcção devárias associações, Conselheiro eleito durante 12 anos pela lista franco-portuguesa na Câmara de Kassel). O que aqui apresento é fruto de estudo acurado e de muita análise directa na minha relação diária com os alunos e encarregados de educação. Tenho feito conferências sobre o assunto desde 1987.