A Vida desafia-te no Outro

O que é que a Vida faz de ti e que queres fazer da tua Vida?

 

António Justo

Há meses encontrei um par de amigos embebidos um do outro: Ele esbelto e nobre, todo leão, ela jeitosa e distinta, fazia lembrar uma gata persa. Viveram alguns meses primaveris mas já se nota neles o desgaste rotineiro, com o nevoeiro outonal a apontar para um inverno já sem folhas e com poucos vislumbres de nova primavera. Os dois são personalidades nobres e extraordinárias, jovens ainda! Como todos, sofrem porque não notam que o que querem mudar e combatem no outro é a própria parte (polo) ainda oculta que cada um de nós traz em si, sem se aperceber dela. Homem e mulher são dois polos duma mesma realidade: o Homem integral, a humanidade!

 

Por vezes, perdem-se no jogo das escondidas, num tactear temeroso de interpretação recíproca de gestos e intenções. É certo que o gato, quando quer o carinho de alguém, não se vem logo pôr no colo da pessoa. Primeiro começa por encostar-se às coisas que se encontram em redor dele, para se fazer notar, à espera que se lhe passe a mão, para, poder então, prostrar-se a seus pés. Neste rodeio esconde o seu orgulho e satisfaz a necessidade de maneira formal.

 

Depois das intimidades primaveris estão a acentuar a parte superficial (fenomenológica) do ser (o ego), num jogo fatal de distanciamento e aproximação no tapete do pensamento. Ela ama-o profundamente mas tem medo de ser desiludida duma imagem de homem distante; ele ama-a também mas tem medo da desilusão duma imagem de mulher distante. Chego a ter a impressão que os dois se vingam, um no outro, da mãe (da mulher e do homem) em reparação duma infância inocente perdida. Adoram a mãe em actos de feminidade e masculinidade distorcidas. Nos intervalos lambem as feridas. Enquanto o cordão umbilical subsistir, maior será o desejo de liberdade e maiores serão as estratégias inconscientes para se não libertar da mãe (da fixação num só polo). O corte do cordão umbilical levará à construção dum eu não dependente, dum eu que integra o outro nele mesmo. Doutro modo este será sempre um obstáculo a uma união que se tornaria, inconscientemente, num obstáculo à simbiose primeira e que se quer manter à custa duma autonomia simulada. Na relação, nuns acentua-se mais a necessidade de se definirem pela demarcação, noutros pela simbiose.

 

Os dois sofrem de dores que por mim passaram e passam: as dores que geram a diferença das estações e deixam a voz do vento (tempo) nos corações. Ele sofre porque a queria mas nota que ela resiste a ser à maneira como ele a gera: à sua imagem e semelhança ou pior ainda à imagem e semelhança de suas ideias e ideais. No seu sofrer, ele refugia-se nas alturas intelectuais da águia, cada vez mais distante da natureza e mais queimado pelo sol da razão, não se apercebendo dele próprio, devido a tanto ver.

 

Ela, hipersensível, sofre praticamente da mesma razão. Só que desce ao profundo dos sentimentos e, encharcada de tanta emoção, por vezes, pouco vê além dela, devido ao nevoeiro emocional que a envolve.

 

Se não fosse o problema comum, realizariam neles o paraíso terreal antes da queda de Adão! Um problema conhecido de cada um, numa vida de espreita atrás do tempo à espera do próprio momento. Os dois sofrem como cães de orelhas pendentes e de desejos castigados, e fingem coragem e soberania de um perante o outro: aquela soberania construída que os impede de se encontrarem porque ainda não descobriram os opostos a descobrir, neles mesmos. Concebem a vida e o outro como dia com sol sem amanhecer nem anoitecer. Não seria oportuno adiar a vida numa concepção. Também não chega viver um dia de cada vez! De facto, o nosso futuro pode ser atropelado pelo presente e afogado na cisma de porquês e de soluções!

 

Na ressonância da vivência quero descer à cave da vida e, contigo homem contigo mulher, fazer uma caminhada que é vossa e minha. Quando falo de ti, és tu e ele, ela e tu, e eu também! Em nós se juntam os polos opostos dum acontecer mais abrangente mas que persistimos em esquecer! Esquecemos a lei da complementaridade duma realidade maior  e de que somos uma parte!

 

Para possibilitares o verdadeiro encontro com ele/ela, terás de te concentrar no teu âmago e deixar de viver na e da distracção para te poderes reconhecer no todo e consequentemente nela/nele também. Ao encontrares-te no todo já “tens” o outro que então descobres em ti. Ele deixa de ser objecto, desejo ou projecção. Aí no encontro descobres a humanidade, a tua plenitude, passando a sentir o prazer da ressonância da feminidade e da masculinidade (do eu e do tu no nós), tudo em ti mesmo: os polos que pareciam antagónicos ao serem reconhecidos como parte essencial de ti mesmo geram novas energias e uma criatividade de auto-realização. A mesmidade ilimitada que surge da vivência da essência de si, de Deus e mundo no próprio centro, o eu-nós espiritual, entra na ressonância da relação pessoal e tudo compreende e supera. Então torna-se natural reconhecer a própria vulnerabilidade e nudez e deixar-se envolver e entregar ao outro; então torna-se natural perdoar e pedir perdão, desculpar e pedir desculpa; o perdão limpa e purifica o nosso espírito e fomenta a maturidade e a metanoia. As feridas causadas pelo querer ter razão revelam-se então como sombras que encobrem o outro e não passavam, muitas vezes, de formas de autopunição. Urge pedir perdão também a nós mesmos para podermos reconciliar os opostos e assim viver em paz connosco e com os outros. Torna-se importante pensar e questionar o próprio pensamento, para o poder então sentir. Torna-se importante ordenar a hipersensibilidade para se poder integrar a racionalidade do outro. Como se vê, somos todos muito iguais e muito diferentes; somos constelações onde acontece e se cruzam o eu, o tu e o nós.

 

Contas com o soalheiro da vida alegre mas não com o escuro da dor. A dor, porém, é a brisa que te leva para lá do tu e do eu, o lugar onde o tempo descansa e se perscruta a eternidade. Quando chegas a esse lugar, o passado e o futuro descansam para dar lugar ao brilho da luz imortal a cintilar no teu interior. Quando a chuva cai e o vento norte zune no teu ser, procura descer as escadas da meditação até ao teu interior. Uma vez lá, sentes o calor da energia divina a subir em ti. Então os nevoeiros do medo, da agressão começam a evaporar-se como o orvalho em manhã risonha. A paz e a alegria penetram em ti e tu emerges num agora eterno. Então as preocupações, desejos e receios não passarão dum bater distante de ondas à superfície dum mar profundo. Nesse oceano a minha alma ganha asas, chora, fala e canta e leva-me com ela ao cimo da montanha donde avisto o meu corpo, o meu ego, e sinto uma força maior que o puxa.

 

Na dificuldade, reservo alguns momentos para mim e começo por inalar a força positiva, a graça divina, que sinto a soprar em mim. Então o meu eu profundo e superior (ipseidade) – a minha permanência e a subsistência do mundo em mim – ilumina as dificuldades. Passo do pensamento e das sensações para o estado da intuição. Aí na cave do meu ser surge a fonte do bem e a energia da afirmação que transforma a disposição negativa em humor positivo fazendo reconhecer e sentir o aroma e o colorido da vida. Aí inspiro o bem, o belo e o amor num exercício de autossugestão que me leva a sentir o amor universal. Passadas as camadas do ego entro no meu âmago que participa do ser divino, o meu eu espiritual. Neste estado da minha ipseidade brota a vida eterna, a sabedoria e a força – a vida divina envolta no meu ser terreno.

 

Para embarcar e me compadecer com o outro com Deus e com o universo, não chega a introspecção, o discernimento; também é necessária a fé: a força positiva ascendente. No fluxo dos acontecimentos também o JC (Jesus) desceu aos infernos onde se encontram os indefesos e desamparados para os levar ao bem. Também eu, também tu descemos com ele para nele erguer a vida.  A experiência da paciência revela que tudo passa e que a graça, a benevolência, tudo sustenta. O desânimo leva-nos a olhar para o chão, prendendo-nos a ele. Fomos, porém, feitos para andarmos direitos e quando caímos nos levantar. Se, por vezes, nos encontramos encerrados na caverna, ao interiorizarmos a paciência do silêncio, notaremos o sol que nela entra e nos puxa para o alto.

 

O desapego das ideias e das coisas, como ensinavam os padres da igreja, ajuda a suportar a bagagem dos medos, desejos e preocupações que a vida traz consigo. Ao descermos ao interior da natureza entramos em sintonia com o universo reconhecendo nela e em nós o sol e a sombra dele num jogo alegre com o destino. Se as sombras da frustração desanimam, o perdão dá consolação e paz. A água da vida com as suas ondas, que à primeira vista nos parece avassalar e empurrar para a margem, também nos suporta se tentarmos mergulhar no seu interior.

 

O sol brilha para todos. Quanto mais abrirmos as folhas do nosso ego (autoestima exagerada), dominando-o, mais o sol penetra e dá cor à folhagem da nossa vida fazendo aquecer e pulsar o nosso coração. Então os estames brotam do nosso gineceu, o pólen voa e a seiva corre. A sombra das ideias negativas, as preocupações materiais e espirituais afrontam-nos e muitas vezes nem notamos que o que traz o dia é o Sol.

 

Em tempos escuros, entro no silêncio do templo e, aí, aceito as dores do corpo e das emoções e, ao orar, esses laços se desfazem passando a sentir uma realidade nobre. Então as tempestades das ideias observadas do interior perdem as forças das suas ondas e o intelecto transforma-se num mar calmo. Aí já não guio a vida mas a vida guia-me em mim. No meu interior abre-se uma porta que dá para o jardim do silêncio onde vive a sabedoria. Dele surge a força que arreda a dor. Chamaria a esse lugar, o jardim da Trindade onde o material e o espiritual, a tristeza e a alegria se encontram em acção inspirada e não na reacção. Uma vez chegado ao átrio do silêncio notas todas as forças em oração e sentes os entretons e riqueza de bemóis e sustenidos para lá das vozes do ego. Aí no teu interior sentes o “Reino de Deus”, a verdade em ti. Então, sentado à margem da ipseidade já longe das lutas do ego ouves o rumor do mar e do tempo a dar consolação. A natureza levanta-se e anda e seu coração brilha e pulsa no Sol que chama toda a flora a erguer-se e a segui-lo. Então Deus fala, tu e ela, ela e tu, nós, com Deus, participamos do mistério. Deus beija a terra no Sol e beija o Homem na inteligência. Então no encontro com a natureza, Deus reza em nós, para lá do nosso estádio de deserto, savana ou floresta virgem.

 

A dor e as dificuldades são a nossa escola. Quando à noite me envolvo no universo, apagam-se as luzes do meu orgulho e a nuvem da humildade cobre o deserto do meu ego. Na fraqueza sinto o surgir da força universal que me suporta e traz ao colo. Sinto então a energia das ondas em mim, o outro lado da calma. As ondas e o movimento não deixam que a água do meu oceano apodreça. Sim, o sal da vida é doloroso e o desenvolvimento é esforço, mas imagina a água do mar sem sal nem movimento… O azedo faz parte da vida; ele é o sal que a tempera e lhe proporciona duração.

 

Tenho de procurar a verdade tal como o botão procura o sol no verde para poder brilhar no colorido das pétalas. O que muitas vezes espero do outro é simplesmente a satisfação do meu ego, aquilo que o rebaixa a ele e me opia a mim. Tal como o verde das folhas se perde para ressuscitar nas cores da flor assim deve morrer o meu ego para poder ressuscitar na realidade do novo Adão (o meu eu profundo e nobre). Uma vez transformado o ego, encontro-me no chão da divindade onde se encontram as pessoas da trindade: ela, tu e eu, no nós abrangente do Paráclito. Aí a dor passa a ser o tempero e o movimento a relação entre incarnação e ressurreição. (Para mim, a Trindade é a fórmula da realidade toda numa). À desilusão na vida emocional e à dor na vida corporal segue o louvor (agradecimento) na vida espiritual. A cruz apenas me acorda da matéria para o espírito. É necessidade inerente à vida onde o sol brilha e Deus nos sustém. Quanto mais alto fica o monte do calvário mais se avista da vida. A felicidade não se encontra ao nível do pensamento porque este é alérgico à dor e esta encontra-se no seio da natureza tal como o sangue no nosso corpo.

 

A vida é feita de dor e alegria, como o dia contem a noite. Dor e alegria são mais que experiência; são condição vital. A fuga à dor é uma força instintiva do ego; é prisão à concupiscência sem compreender a necessidade da prisão do ter pena de si mesmo. Por trás dos acontecimentos há energias. Muitos ideais religiosos pretendem uma reacção positiva a diferentes situações. Autonomia e autoestima são valores de inter-relacionamento numa realidade do nós em que floresce o tu e o eu.

 

As bofetadas do destino estão em relação com o ego, a zona inferior do ser. A chave para se apagar as dores exteriores encontra-se no interior do coração. A força e a vontade exercitam-se resistindo à fraqueza.

 

Não reajas ao primeiro estímulo ou à primeira ideia; espera um pouco, conta até dez, não resignes. Se sentes ódio, imagina o sol do perdão que abre o horizonte. Sofre com o outro a dor que ele talvez ainda não sente. Tem compaixão – essa qualidade de sofrer e se alegrar com a natureza no outro. Se te queres superar, ora; na oração – também na oração secular – encontras a ressonância do todo no louvor e no perdão.

 

Há dias, uma pessoa amiga de 35 anos, em S. João da Madeira, pedalava numa bicicleta, quando seu coração deixou de bater. Caiu para o lado, deixando dois filhos, de três e cinco anos, uma mulher e uma grande casa. A dor subiu às casas deixando, banhadas em lágrimas, a família e amigos. O meu amigo Toninha “desceu aos infernos” banhado em lágrimas para depois “subir aos céus” e nos poder receber com um sorriso, a nós que lamentávamos a morte do seu filho.

 

A dor extrema leva-nos ao conhecimento último sobre a realidade da vida. No centro do eu profundo, o instinto e o ego são iluminados. Nestes momentos nem a religião apresenta solução para o mistério da vida, apenas ajuda a recuperar energias para novas etapas num processo de contínua mudança que pressupõe um contínuo repensar e metanoia. Em momentos trágicos, só o espírito pode mover as energias latentes em nós. Humildade e paciência são o plinto para se superar a frustração, o medo e a dúvida. As ventanias do destino obrigam-nos a agarrar-nos ou a deitar-nos ao chão para depois nos erguermos. É a lei da vida. Também as rajadas do Outono tiram as folhas velhas das árvores para darem lugar a novas.

 

Resta-nos a generosidade e a compaixão. Faz bem a quem te faz mal. Ao perdoar, domestico o próprio ego. Na compaixão lavam-se as feridas da lembrança e regeneram-se as lágrimas engolidas. “Perdoai, como nós perdoamos”, diz o mestre da Galileia. Endurecimento é lei da matéria mas não do espírito. É preciso mudar a configuração da vida para poder mudar-nos a nós e mudar a sociedade.

 

Como a natureza segue o sol também nós temos de formar a vontade, uma vontade superior com uma meta teleológica a atingir. Para isso teremos de começar por nos perguntar o que queremos fazer da vida e o que a vida tem feito de nós. Para seguires a vontade superior teremos de depor as armas do ego, que são as armas da convicção e do querer ter razão numa realidade descontextuada. Teremos de entrar na ressonância universal. Para isso, além de procurar o bem é necessário entrar no relaxe corporal e espiritual, exercitando a fé integral. A resistência encontra-se em nós procurando fazer passar toda a energia da vida pelo pequeno fio de resistência que é o nosso ego (eu inferior). O ego serve-se das muletas do pensamento e do sentimento filtrando tudo à sua medida, encrustando a dor. Debaixo das ondas da dor descansa imperceptível a vida interior.

 

É preciso penetrar para lá das crustas físicas, mágicas ou mentais que constituem as órbitas do ego, para poder entrar em esferas superiores na ressonância da compaixão com o universo e com Deus que constitui o centro da ipseidade (eu nobre e profundo). Através do caminho da introspecção que conduz à vivência interior, o corpo e o espírito entram em sintonia começando tudo a fluir no amor.

 

Para facilitares o acesso aos reflexos da graça e à paz interior coloca-te numa posição agradável, inspira profundamente (respiração ventral) o sol e o amor e deita para fora a treva, expira os cuidados que tens em ti. Mergulha na energia divina, ela está em ti, está em tudo e cura tudo. Corpo e espírito mesclam-se um no outro. O corpo é expressão do espírito tal como a natureza é expressão do espírito universal. Tudo surge do espírito e se encontra a caminho dele. O universo vive em contínuo dar à luz, tu e eu, nele, também. A Terra regista no seu ser as diferentes regiões naturais/climáticas e também os ventos com as suas altas e baixas pressões que contribuem para um equilíbrio de afirmação e repouso a caminho de nova fase. Também as pessoas variam entre o entusiasmo e a depressão registando nelas as diferentes mudanças. Constatado este fenómeno comum à natureza e ao estado de alma das pessoas, há que intervir agindo para se não deixar ir na enxurrada de apenas reagir.

 

Amiga, amigo, desce à cave, despe-te da roupagem do ego que te não deixa sentir o calor e a maciez da pele do outro. Confia e confessa-lhe teus entusiasmos e mágoas. Desnudado e paciente transformarás os ferimentos do outro, modificarás aquelas dores que te fazem sofrer a ti e ao outro; elas transformar-se-ão em alegria para ti no outro. Em baixo, no chão da vida, nu experimentas a energia universal. Então sentes a energia do movimento de rotação e translação a convergir em ti e te descobrirás, com o outro, a caminho do ponto Omega de Teilhard de Chardin. Aí se junta a energia masculina e a energia feminina num só ser, o ser adulto. Então as ideias negativas, que são o veneno do sentimento e do pensamento criam novos espaços novas atitudes, salvando-vos um ao outro. Então os géneros não se juntarão para se afastarem. Um não quererá mudar o outro; não será mais professor um do outro, mas sim aluno um do outro. Um é a oportunidade existencial do outro para se poder desenvolver.

 

Desce à cave mas descobre, ajoelhado (a), em oração, na nudez assumida, a causa da resistência dum ao outro que impede a mudança para uma nova acção. Pela nudez passa e corre a água salutar que em vós jorra.

 

Enquanto o ego for movido apenas pelas forças centrípetas da inteligência e da emoção o eu adulto e o outro serão desvirtuados. Então seríamos meteoritos, que embora brilhantes, se encontram em queda livre, à margem das forças ordenadas nas órbitras da criação, faltando-lhe a ligação ao espírito do todo que tudo sustém (trindade!).

 

O Filho do Homem veio em Jesus e no Cristo e nós realizamo-lo também. Nele e em nós se reúne a deidade à criatura. Esta é a perspectiva: agir, ser senhor/a, e não apenas reagir como faz o escravo/a. Até a Terra reconhece que não é autónoma, reconhece e dá lugar ao Sol no seu ser. Fazemos parte duma ordem universal e do mistério para o qual importa orientar o nosso saber e sentir. Se entrares em ti, no âmago do ser, o espírito te guiará e não o ego. Não te tornes dependente; tens a gene do divino. Aceita a ordem universal a que pertences, não te tornes satélite e menos ainda meteorito. Não te sobrecarregues nem sobrecarregues o outro. Cada dia traz, para cada qual, a sua carga e esta já é suficiente.

 

O fatalismo tal como a liberdade da vontade são verdades condicionadas. Não podemos andar sem meta. Como o dia, trazemos em nós o sol e a noite, a alegria e a dor, a transitoriedade e a eternidade. Nós somos o sentido do ser!

 

Antes de tentares mudar alguém ou criticar uma situação ou nega-la pergunta-te primeiro qual é o ensinamento que ela te quer dar. Admite as leis da vida. Não fujas nem fiques na câmara escura do teu ser. Reconhece a luz. Se te orientares pelo espírito as mazelas perdem o brilho que o ego lhes empresta. O bem vence sobre o mal embora aparentemente pareça o contrário.

 

A dor duma pessoa centrada no ego (em si mesma) é mais forte porque não tem sentido. Só o tempo a apaga. O que se encontra nas esferas do espírito ultrapassa o tempo, conduz a uma maior consciência, uma compreensão integral dum todo complementar; nela se experimenta o sentido profundo da vida que não se pode confundir com o sentido dos remos que a empurram.

 

A dor pode purificar o ego egoísta no sentido duma identidade superior. O ego identifica-se no acontecimento e perde-se na percepção do mesmo. As vivências e experiências são oportunidades para dominarmos os acontecimentos sem nos tornarmos vítimas deles. Para isso, é necessário andar de braço dado com a vida no bem e no mal, para ir mais além.

 

Se desejas mudança em ti terás de mudar o teu ambiente, se desejas a mudança do outro tens de te mudar a ti primeiro. Sem mudança não há futuro e o presente não passa de recordação! A decisão é tua.

 

Quanto às feridas que uma pessoa tem é necessário deixá-las cicatrizar, doutro modo, quanto mais se arranha nelas mais elas sangram e se apoderam de ti. Se se torna difícil colocar os vestidos no cavide, por outro lado, também a nudez não é inocente…

 

Se queres ser tu, tenta pensar e agir a partir do nós! Nele fomos criados e a ele voltamos! De resto, “ama e faz o que queres” (como dizia já Santo Agostinho)!

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

DEPRESSÕES BIPOLARES E DEPRESSÕES UNIPOLARES


Não há Razão para se envergonhar

António Justo

Uma pessoa diagnosticada com depressão unipolar, depressão bipolar, burn-out, borderline, ou outra doença, não deve ser colocada na gaveta do preconceito. Deve ter-se muito em conta que o paciente é uma pessoa como outra qualquer e com direito a ser tratado não como doente, mas como os considerados “normais”, com todo o respeito, dignidade e consideração. De facto não há ninguém que seja cem por cento são. Todos temos alguma “telha” e se pensamos não tê-la, ainda pior: isso significa que ainda não a descobrimos e quem sofre com ela são os outros. A pessoa faz parte da natureza com momentos estáveis e com outros menos estáveis; como a natureza, trazemos em nós as altas e baixas pressões psicológicas que originam dias soalheiros e chuvosos. Fazemos parte dum globo com diferentes zonas climática, ideias e ideologias. Há pessoas com regiões de alma mais instáveis com tsunamis, tempestades incontroláveis. Neste estado há que ir ao psiquiatra para conseguir estabilizar o próprio clima.

 

No meio de tudo isto há um problema grande que é o próprio preconceito e o preconceito dos outros no que toca à avaliação da doença.

 

As depressões unipolares tornaram-se entretanto socialmente mais aceites; especialmente o burn-out (esgotamento), adquirido pelo demasiado estresse, por se ter trabalhado demais e por não se ter poupado, indo mais além do que as próprias energias permitiam.

 

Mundialmente, cada vez mais pessoas sofrem de depressões unipolares. Depressões unipolares são as depressões em que as pessoas só sofrem de disposições depressivas enquanto nas depressões bipolares as pessoas sofrem de fases de depressão e de fases de euforia. Estas são mais raras e menos aceites pela sociedade. Há entretanto grandes diferenças de expressão de depressão e de grau de bipolaridade. Pessoas com depressões unipolares chegam a sofrer mais do que pessoas com depressões bipolares porque aquelas só têm fases depressivas. Naturalmente, tudo depende do grau da depressão que pode ser leve, média ou grave. O estado grave de depressão é descrito por doentes como o “inferno na terra”. Naturalmente também bipolares, nas fases de depressão, podem chegar a tais estados.

 

No dia-a-dia as pessoas de convívio com pessoas bipolares têm a tendência a verem em tudo que os pacientes fazem ou dizem como resultado da doença. Isto dificulta a disponibilidade do bipolar em reconhecer a bipolaridade. Todos nós temos características doentes e saudáveis. O alto grau de inteligência, de charme e brilho que muitos bipolares têm, só em parte terá a ver com a perturbação. O doente bipolar nota facilmente, quando está na fase de depressão, porque sofre (nesta fase é fácil reconhecer a doença). Sente-se, porém, muito bem na fase eufórica, não sentindo o patológico dela; reconhece a própria personalidade nela, considerando a fase depressiva, estranha à sua natureza, o que torna difícil o reconhecimento da própria doença.

 

Quem convive com uma pessoa unipolar ou bipolar, na sua fase depressiva, deve ter em conta que ela, por vezes, fica incapacitada de agir e de tomar iniciativa; muitas vezes tenta mas não consegue. Por isso o paciente precisa muito do acompanhamento e apoio de pessoa íntima para que aquele aceite o que ela diz e cumpra com a medicação. Muitas vezes o bipolar aceita tomar a medicação (estabilizadores de humor) na fase depressiva (fase desagradável de sofrimento) mas quer interrompê-la na fase eufórica (de felicidade). Na fase depressiva, às vezes, o paciente bipolar (tal como acontece com doentes de borderline) tende a ver a causa da sua infelicidade fora de si, criticando extremamente um pseudo-adversário que é responsabilizado pela sua situação e sofrimento. Na fase eufórica sente-se entusiasmado, fala muito, saboreando a sua genialidade e o seu aspecto excepcional e original, mas confundindo, muitas vezes, a fantasia com a realidade. Também chaga a ter prazer em fazer o destrutivo jogando com o risco.

 

Muitas vezes o psiquiatra diagnostica uma depressão unipolar em vez duma bipolar porque o paciente só se dirige a ele na fase de depressão unipolar sem mostrar as características da fase eufórica.

 

A oscilação de humor e das fases de maior ou menor acção pode, a nível social e individual, ser gerida de maneira a não se prejudicar a si nem aos outros. Se a doença ajuda a pessoa na sua vida social laboral e artística é uma questão de gestão pessoal se não interferem negativamente com terceiros. Há muitas pessoas, que se não tivesse sido a doença, não teriam atingido a celebridade que atingiram: Fernando Pessoa, Hermann Hesse, Sigmund Freud, Victor Hugo, Winston Churchill, Wolfgang Amadeus Mozart, Charles Chaplin, Napoleão Bonaparte, Abraham Lincoln, Elvis Presley, Woody Allen, e milhentos outros.

 

A criatividade de grandes artistas e personalidades mundiais foi, muitas vezes, alimentada pela doença bipolar.

 

Escrevo este artigo na continuação doutros textos “Distúrbio Bipolar ou Transtorno Bipolar” https://antonio-justo.eu/?p=1428 e “Distúrbio Bipolar”  https://antonio-justo.eu/?p=1200&cpage=1#comment-20291, para complementar aspectos tratados e comentários a eles feitos, e só com o sentido de ajudar. O motivo que me levou a escrever sobre isto foi o facto de conhecer grandes amigos que tinham esta doença e que viviam, por vezes, uma vida dupla de sofrimento a nível privado e de alegria a nível exterior.

Só nos podemos ajudar a nós mesmos ajudando os outros! Mas nós também fazemos parte do outro!

 

Aqui na Alemanha há muitos grupos de auto-ajuda e em Portugal e no Brasil também. Muitos são gratuitos, havendo outros em que se paga um contributo para despesas com programas próprios. No Porto há um grupo com o apoio duma médica especialista em depressões unipolares e bipolares: http://www.adeb.pt/

 

Se a doença for demasiado forte, chega a bloquear a pessoa. A fase depressiva pode matar a criatividade ou tornar a pessoa incapaz de se expressar artisticamente, por grandes fases. Importante é estar com eles porque sofrem muito embora não pareça. Os amigos são muito importantes e uma fé forte também. O diálogo na intimidade com Deus, ou com o universo, torna-se libertador e ajuda a tirar o gosto de azedo que a vida, por vezes, tem.

 

Quem tem a doença deve procurar assumi-la, não tendo vergonha de a ter. A vida dos chamados “normais” é, muitas vezes, mais “doente” ainda, que a daqueles que a normalidade considera doente. A esta, falta-lhes, por vezes, um pouco da sensibilidade que aqueles parecem ter a mais.

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

www.antonio-justo.eu

A Alma da Europa sofre – O seu Corpo também

QUINQUAGÉSIMO ANIVERSÁRIO DO CONCÍLIO VATICANO II

António Justo

Há 50 anos (11 de Outubro 1962) a Igreja Católica apostou no aggiornamento. João XXIII convocou os bispos de todo o mundo a reunirem-se em Roma, em concílio (2.400 bispos de todo o mundo, acompanhados de 200 teólogos e 100 observadores doutras confissões cristãs, cf. HNA de 15.10.2012).

 

Na abertura do Concílio, o Papa João XXIII deixou o trono em que era transportado e seguiu a procissão a pé.

 

O Vaticano II começou por reformar a liturgia passando o sacerdote a celebrar a missa de cara virada para a comunidade. A língua litúrgica (latim) deu lugar às línguas vernáculas. A primeira ordem maior – Diácono – precedente da ordenação do padre e da consagração de bispo, passa a ser acessível a homens casados. Intensifica-se o diálogo com outras confissões cristãs (ortodoxos e protestantes) através do movimento ecuménico. Os judeus passam a ser vistos como irmãos mais velhos dos cristãos.

 

Com o concílio a Igreja procurou reconciliar-se com o mundo moderno reconhecendo a liberdade religiosa e empenhando-se no diálogo com outras religiões. O reconhecimento da Igreja católica da liberdade religiosa fundamenta-se no Novo Testamento e no facto de cada ser humano, segundo a doutrina cristã, (imagem e filho de Deus) ser portador do gene divino e como tal a sua dignidade ser intocável e ter liberdade de consciência. A igreja institucional precisou de muito tempo para reconhecer na prática, os valores cristãos que a revolução francesa secularizou. Facto é que uma religião como o Islão, que não reconhece a dignidade humana ao indivíduo, não permitindo consequentemente a liberdade religiosa à pessoa, critica o catolicismo de se ter comprometido demasiado com o modernismo e acusa a “imoralidade” ocidental como consequência da liberalização.

 

Desde o Concílio tem havido grandes discussões e controvérsias entre a ala conservadora e a ala progressista da Igreja. Em águas agitadas da História, em momentos de transição, como aqueles em que nos encontramos, não é fácil chegar-se a compromissos na base da consideração das duas alas entre si. Um problema grande para a eclésia é o facto de muitos dos seus filhos prescindirem da comunidade e se arrogarem a apresentar o seu conceito de igreja como um conceito absoluto (no caso um absolutismo contra outro), quando segundo a mística católica se deve pensar e agir não só a partir do eu mas especialmente a partir do nós (cf. Trindade). Deparamos, por vezes, com uma tendência absolutista por parte da estrutura e um individualismo absolutista por parte de muitos dos seus críticos. De que há falta são personalidades fortes dentro da eclésia. Por todo o lado se encontram indivíduos célebres aplaudidos e feitos por esta ou aquela ideologia sem preocupação pela comunidade, que como o individuo é fraca, precisando os dois de ajuda. A ordem do dia para uns e outros poderia ser: ter compaixão uns dos outros na empresa da metanoia individual e eclesial!

 

De facto, os conservadores, se não o dizem podem pensar o seguinte: o que os progressistas exigem do Vaticano já se encontra praticado pela igreja evangélica e esta parece ter ainda mais dificuldade em congregar gente no serviço religioso do que os católicos. Por outro lado, se a Igreja Católica se aproxima mais da prática protestante isso corresponde, ao mesmo tempo, distanciar-se da Igreja Ortodoxa e das outras religiões. Por outro lado, o conservadorismo e autoritarismo reinante entre os muçulmanos têm ajudado os maometanos a afirmar-se nos meios seculares europeus. Também se observa nos meios progressistas (Europa e USA) uma mentalidade racionalista por vezes à margem da fé! Uma razão sem fé é fria e uma fé sem razão é escura. A desarmonia já se encontra no ser de cada pessoa. Para uns a necessidade de salvação manifesta-se numa aspiração individualista e para outros numa ideia colectivista. A situação da igreja institucional não é de invejar. Dará erros se se orientar para o conservadorismo e errará se se movimentar para o progressismo. O único elo que dará consistência a uma igreja diferenciada é o amor. Sempre que o amor falte na relação seja da parte institucional ou da parte individual, perderam as duas partes a razão, porque o que mantem a relação entre o tu e o eu é o nós (o paráclito). Deixa de haver acção para se passar à reacção e a reacção fomenta a entropia.

 

A ideologia torna-se cada vez mais forte, querendo uma minoria europeia e americana impor a sua mundivisão como a medida da renovação sem considerar a visão doutras igrejas cristãs fora do Ocidente. Muitas vezes parece confundir-se ideologia com fé. Por outro lado seria possível uma igreja petrina forte em que as igrejas locais tivessem mais poder de iniciativa.

 

Um outro problema institucional é o facto de, no cristianismo, um bispo por poder sacramental estar à frente duma igreja e poder continuar igreja mesmo separando-se da Igreja mãe. (Em 1970 o bispo Marcel Lefebvre não aceitou a celebração da missa em vernáculo fundando a Fraternidade Sacerdotal Pio X que exige o regresso às práticas anteriores ao Vaticano II). O Papa para os não perder tem-se esforçado dando-lhes a mão, mas ao fazê-lo descontenta aqueles que querem uma igreja mais ao modo do mundo moderno. Isto torna mais difícil as conversações e os consensos. Por isso até uma minoria de bispos pode condicionar a tomada de decisões a nível do Vaticano. Também a mim me custa verificar que a Igreja Católica não dê mais um passo abrindo o diaconado às mulheres. Um presbiterado, demasiado masculino, não se encontra muitas vezes preparado para um mundo que embora de comportamento macho afectado, é, na sua alma, feminino.

 

Parece ser óbvio que a Igreja petrina se abra mais no sentido da Igreja joanina.

O catolicismo, primeiro modelo e ideal global de comunidades orgânicas complementares, tem a consciência de ser uma comunidade de crentes (Communio) no mundo e não uma cultura que se quer impor ao mundo.

 

 

O desenvolvimento da personalidade humana inerente ao cristianismo é único numa fenomenologia das culturas. Naturalmente que uma religião que fomenta o Homem adulto não pode comportar-se como outras culturas que o querem súbdito.

 

É doloroso verificar-se como a Igreja Católica é atacada, quando ela continua a ser a garante da memória da Boa Nova que dá consistência a um mundo ocidental desorientado. Uma cultura, uma civilização precisa, para subsistir, não só da masculinidade da política e da economia (corpo) mas também da feminidade da religião (alma). Portugal atingiu o apogeu da sua história no momento em que melhor soube unir os dois elementos (corpo e alma) no seu agir (Formação da nacionalidade e Descobrimentos).

 

 

António da Cunha Duarte Justo

Antoniocunhajustogmail.com

www.antonio-justo.eu

Fanatismo religioso disciplina o Modernismo secularista

O Estado protege Criminosos e negligencia os Cumpridores da Lei

António Justo

A maneira como a política e a sociedade reagem à provocação de caricaturistas e à violência islâmica favorece a confusão das mentes. Uma arte banal e de mau gosto quer provocar os sentimentos religiosos de pessoas crentes, mostrando Maomé nos braços duma mulher nua, o Papa de nádegas nuas, Jesus como homossexual, etc. Quer-se desviar a atenção das pessoas dos problemas reais para discussões paralelas, servindo-se assim os extremistas muçulmanos e uma economia liberalista agressiva e desumana, como se os valores do Ocidente se reduzissem à liberdade de expressão ou à famigerada tolerância. Nos baixios de sociedades em desgraça domina a satisfação baixa do rir-se uns dos outros.

 

No que diz respeito à avaliação da liberdade de expressão na arte, a sociedade ocidental usa dois pesos e duas medidas. De facto, um Islão militante, consegue conquistar compreensão e até respeito pelas manifestações violentas contra a sua difamação, como se vê na discussão pública e na reacção da política. A violência e o medo, daí resultante, determinam a lógica e a argumentação pública. A avaliar por comentários políticos, a gravidade não vem do acto em si mas das possíveis reacções a ele. A arbitrariedade dos argumentos a favor e contra ultrapassa a razão e a ideia de liberdade.

 

Chega o cinismo duma caricatura, o fanatismo de „Innocence of Muslims“,ou a ganância duma editora que, para atrair as atenções, publica uma caricatura de Maomé na certeza que as mesquitas movimentarão (às sextas-feiras, depois das orações rituais) enormes massas, chegando aí a serem legitimados actos de violência criminosa.

 

Há um vídeo anti-islâmico. Há também muitos filmes e caricaturas anticristãos. Por exemplo, aqui na cidade de Kassel a “Caricatura” tem uma exposição de caricaturas. Numa delas Deus Pai diz para o filho Jesus na cruz: “Eh tu, eu fudi a tua mãe!” Os responsáveis de “Caricatura”, apesar do protesto escrito de cristãos, continuam a exibir tal caricatura em nome da arte e da liberdade de expressão.

 

A publicação de caricaturas ridicularizadoras do maometanismo é considerada perturbação da ordem pública por ferir os seus sentimentos religiosos; a ridicularização de símbolos cristãos não é relevante. O mesmo público, que condena a acção provocadora de caricaturistas ofensores do Islão, acha normal e até sinal de liberdade a difamação de símbolos cristãos. Será que se pensa que os cristãos não têm sentimentos religiosos ou que são demasiado tolerantes?

 

Se o radicalismo e a violência passam a ser o critério de orientação para avaliação e decisão na sentença pública, então a política e a opinião publicada dá a perceber que os cristãos para serem tomados a sério e ouvidos, teriam de se tornar violentos e radicais. Dado a política tomar mais a sério a violência/medo do que a atitude pacífica descrimina a agressão pela positiva e a atitude cristã pela negativa. No mundo ocidental chegou-se ao extremo de quem nega as suas fontes (greco-judaico-cristãs) e difama o cristianismo é considerado progressista e defendido como representante da modernidade.

 

Um secularismo impúdico ao apoderar-se das democracias e dos órgãos de Estado dá cada vez mais margem ao extremismo, numa tática de submeter a razão ao medo e ao oportunismo. A perversidade do pensamento e da moral encontra-se na ordem do dia e agindo em nome duma democracia medrosa e envergonhada. Nela parece valer cada vez mais a máxima: direito recebe-o quem perturba a paz pública ou os lóbis parasitas que se assenhorearam dos Estados!

 

Naturalmente que aqui está mais em jogo do que a mera liberdade de expressão!

 

Ao fanatismo do “Innocence of  Muslins”, segue-se o fanatismo de massas maometanas; à tolerância cristã, nas sociedades ocidentais, segue-se o abuso do fanatismo secular.

 

Por outro lado, Estados de cultura árabe estão habituados a mandarem na sua terra ao ponto de incendiarem igrejas, perseguindo crenças não maometanas, sem que alguém os moleste por isso. Além disso querem mandar na casa dos outros sob o manto da hegemonia da religião. A reacção da política e dos Média, bem como a intervenção da Nato nas suas regiões, tem-lhes dado razão.

 

O abuso com filmes e com caricaturas contra a religião cristã tem sido protegido e querido pela política ocidental. Agora chegam estes estrangeiros a chamá-la à reflexão. Será um abuso eles quererem impor a sua ordem na casa dos outros?

 

Também é um facto que o secularismo tem abusado e engordado à custa do sentimento religioso cristão. O medo do poder secular da Europa perante o sentimento religioso muçulmano irá fazer aplicar leis anti-difamatórias da religião, de que indirectamente aproveitarão os cristãos. Os de fora vêm impor respeito pela religião! E de que maneira! Pelos vistos o braço secular parece entender mais de violência do que de paz!

 

Encontramo-nos perante um paralelismo intrigante: depois dos Descobrimentos as vítimas de perseguições religiosas na europa emigraram para a América em fuga ao fanatismo reinante; essa mesma Europa vê hoje o seu liberalismo extremo questionado pelo fanatismo árabe. Há que procurar uma nova estratégia de diálogo sem recorrer à blasfémia, à difamação, à exploração nem a grosserias; segundo a desleixada máxima cristã: na humanidade reside a divindade! Cada pessoa crente ou descrente é filho de Deus!

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

antoniocunhajusto@gmail.com

ARTE ARTISTAS E OBSERVADORES (Ensaio)

“Sou o que sou” no tornar-me.

O nós também aspira a ser eu

 

António Justo

 

Resido na cidade de Kassel, o lugar da Documenta, que é a maior Exposição Mundial de Arte Contemporânea. Acentuo a palavra lugar, porque este, numa perspectiva artística poderia compreender-se como o sítio (atelier) da grávida a dar à luz, ou o sítio grávido onde se juntam as forças dum chamamento possibilitador da obra de arte.

 

A dOCUMENTA (13) tem a vantagem de convidar o observador e o/a artista a uma pesquisa associativa e de lhe proporcionar, ao mesmo tempo, um “Brainstorming” sobre a arte em geral, (reunindo e conectando os vários ramos da arte com as diferentes disciplinas do conhecimento) e os mais variados projectos de vida, num espaço que, à primeira vista, faz lembrar a Torre de Babel. Tudo ganha aqui expressão em formas e formatos que reflectem o Homem na sua qualidade de rei e súbdito da natureza, numa dinâmica da ecologia biológico-cultural.

 

De facto, nada é estranho ao artista que, em interacção e intra-acção com todas as dimensões da realidade e do saber, procura elaborar o seu rascunho de vida num contínuo diálogo de inter-relações orgânicas, mecânicas e espirituais. O lugar de acção do artista é, naturalmente, o público, sendo nele que se movimenta para, numa atitude de aquisição e ampliação, reflectir e questionar valores e costumes numa perspectiva diacrónica e sincrónica.

 

Um dos objectivos do artista contemporâneo, se o equacionamos em termos de expressão do seu tempo, seria criar um feedback de todas as disciplinas, dado tanto espírito como matéria, (e relação intersubjectiva /objectiva) serem plataformas diferentes da mesma realidade, como se expressa a nível teológico, no “dogma” da Trindade: unidade do ser (criador-criatura/obra) numa relação consubstancial (interacção artista-obra-observador), exemplificada a nível da encarnação onde a realidade, constante de matéria e espírito, deixa o caracter antagónico destes dois princípios, para assumir uma relação “pessoal” de interacção e intra-acção. Recorde-se, neste contexto, o prólogo do evangelho de João (“No princípio era a In-formação – o Verbo”). Teorias, mitos e dogmas sempre foram interpretados e clarificados pelas analogias da arte. É-se artífice do real e do futuro e, com o cinzel da formação, religião, música, cultura, arte, etc., todos modelam (cada um na sua plataforma em espírito de complementaridade) o ser humano e a realidade que os envolve e o forma, ao mesmo tempo.

 

No mesmo lugar, na mesma obra procura-se juntar e expressar uma conexão de experiências entre lugares, nomes e sítios sem que os dualismos individuais, interculturais e interdisciplinares fiquem na sombra, muito embora num processo comum de individuação que, inevitavelmente, cala as forças da selecção, da associação e da assimilação.

 

Na prática, constata-se uma falta de consciência da complementaridade, numa apreensão e expressão da realidade, que emperra os saberes em definições com arame farpado; saberes concorrentes que se fixam em si mesmos, agindo contra o espírito de interdisciplinaridade, numa atitude semelhante à da avestruz, que mete a cabeça debaixo da sua areia ao sentir que aquilo que a define, como identidade, a questiona sob o ponto de vista doutras perspectivas. A realidade biológica e cultural acontece num processo de osmose das suas várias dimensões e camadas, sem fixação na linearidade duma linha fronteiriça unidimensional (arame farpado). A necessidade de demarcar o outro corresponde a uma necessidade imanente de se definir a si próprio, e a uma estratégia de autoafirmação categórica unidimensional, como se observa na disputa entre arte, ciências naturais, ciências humanas, ideologias, política e religião.  De facto, cada disciplina, ao fixar-se na linha fronteiriça que a define, despreza o conteúdo de que faz parte.

 

Lugares, nomes e objectos de arte, com a ajuda do intelecto, tornam-se em neurónios de interligação, associação e combinação que se podem revelar em afirmação ou resistência poética, e, até mesmo, em perversão do pensamento, ou em símbolos ao serviço de dogmas estéticos e antiestéticos. Tudo é possível organizar de modo a servir uma obra, mais ou menos descritiva, em que a tela é símbolo duma natureza sempre criadora e em que até o marginal se pode revelar em fundamento de algo maior.

 

A arte/obra de arte, tal como a pele, constitui um delineamento claro de algo a ela subjacente mas indefinível. Continuando a analogia inicial, poderíamos definir aqui arte e artista como expressão do grito do universo a dar à luz, à semelhança do Big Bang numa cópula universal em contínuo processo de realização e consumação no produzir a obra. Por outro lado, o objecto de arte e a arte observada é como que algo reflectido num espelho mas que, no entanto, deixa antever, na sua aura, a passagem do artista pelo Olimpo. Sem esta a arte perderia a sua sacralidade, significado e motivação. Sem a tal passagem pelo Olimpo os artistas perderiam a sua auréola e o seu brilho seria parco se consagrado apenas pela criatura artesanal (povo criatura). Num acto posterior, a importância da obra de arte vem-lhe do simbólico, o que lhe seria bastante, não se escondessem por trás dela interesses muito concretos, desde o comercial ao ideológico; grupos e instituições servem-se, frequentemente, da arte para tecerem as suas metafísicas fomentadoras de dicotomias entre um laicado e os iluminados da arte e até mesmo entre as várias artes. Com mitos, dogmas e uma certa liturgia também na arte se fomenta um público rebanho laico seguidor duma fé secular definida por alguns corifeus. Este problema torna-se mais óbvio num momento em que um objecto de arte plástica não fala por si mas precisa de explicadores que lhe proporcionem o acesso. Para entrar no templo exige-se agora um porteiro!…

 

A força do Zeitgeist (espírito do tempo corrente) ensombra a arte. Ela é de tal forma orientada para uma globalização, pressagiada como natural, que cria automaticamente uma agressão contra tudo o que é maior e, como tal, pudesse constituir obstáculo à concretização dum pretenso espírito ainda maior, o global. Dá-se primazia ao individual e ao orgânico desde que se deixem reduzir à anonimidade (proletarização espiritual). O global (globalismo), porém, é o outro lado do biótopo e dos ecossistemas biológico-culturais mas, de momento, a desenvolver-se sem qualidade orgânica. (É sintomática, neste contexto, a tendência fatal, dos nossos multiplicadores de cultura, para negar a cultura ocidental e difamar os seus fundamentos, até mesmo à custa da afirmação duma cultura hegemónica desértica e dum mercantilismo absoluto que não reconhecem o sujeito). Também na arte se registam, frequentemente, traços hegemónicos quando esta se arroga como única capaz de curar os problemas do mundo. Problema de autoestima cega! Mais que a encenação do mundo entre arte e contemplação importa o diálogo entre mundivisões que não reduzem as imagens a meros objectos de uso do próprio rebanho.

 

O estímulo sensual, intelectual e espiritual poderia contestar fortemente uma atitude de espírito decadente amoral e “aideal” que reduz o momento a alegoria relativista mas se limita a questionar medrosamente a artificialidade dum mundo globalista e relativista destruidor de biótopos e ecossistemas culturais. Quer-se um pluralismo anónimo (anorgânico) revelador e confirmador dum efêmero poético e político. No limiar da realidade do dia-a-dia, alguns artistas lançam-se à descoberta de limites onde corpos sem conteúdo, sem espírito, se tornam metáforas duma realidade construída por invólucros vazios. Talvez revelem, assim, consciente ou inconscientemente, o esvaziamento de tradições e valores a sacrificar a projectos abstractos implantados por forças artificiais criadas contra uma evolução natural orgânica, que poderia, não obstante, ser assumida pelo pensamento (ideologia).

 

Que seria da arte se não fosse a arte de falar dela! A arte também nos quer alertar para a realidade social e para as relações de poder. Fá-lo numa tentativa de consertar rostos de cultura da praça, através de novos objectos de arte, mas apenas à semelhança do que se verifica nos trajes e enfeites (joias) da mulher ao longo dos tempos. No enfeite constatamos a diferença de figurinos que escondem atitudes próprias ou projectos de identidades. Constata-se uma evolução e, ao mesmo tempo, uma ubiquidade diacrónica e sincrónica que podemos também observar na constelação das culturas/civilizações hodiernas e diferentes modos e concepções de vida entre elas . Também no âmbito da arte falta um estudo sinótico entre o hoje e o antigamente, uim estudo comparativo (evolutivo) entre as culturas actuais, seus valores e sonhos para possibilitar uma verdadeira oficina de arte virada já não só para as fenomenologias diacrónicas mas especialmente para uma fenomenologia sincrónica. Se as víssemos como num filme de sinótica cultural sincrónica verificaríamos o ontem ainda no hoje presente (Afeganistão e Suíça, etc.) sem complexos de culpa nem culpabilização do outro. Verificaríamos grande cinismo num discurso artístico e político que, em nome dos direitos humanos critica a barbaridades da própria cultura no passado e ao mesmo tempo aceita, os costumes barbáricos de outras culturas contra os direitos humanos, em nome do respeito pelas culturas e subculturas actuais. Este é um escândalo que a arte negligencia ao fixar-se em pequenos escândalos fomentadores da excitação pública e da própria masturbação improdutiva.

 

Este é o hoje-amanhã, no seu intervalo abstraído, o eterno presente, onde se podem ver metáforas de História vivida e a ser vivida e, deste modo, constatar a fragilidade do Homem e das culturas numa realidade a acontecer entre facto e ficção. Ao artista fica, muitas vezes, a tarefa de registo de processos num papel de contador de histórias hoje modernas e amanhã antigas. Não chega ficar-se pelas fenomenologias culturais, falta ainda fazer-se uma análise exacta comparativa de ideologias, culturas e religiões numa perspectiva de orto-praxia concretizadora da realidade eu-tu-nós sob a estratégia dum pensar e agir a partir do nós.

 

Duma maneira geral, os museus não passam de inventários de arte. Como registos da memória artística, lembram, por vezes, uma viagem artística dum povo que antes vivia da ilusão da perfeição e hoje vive da ilusão da igualdade e da democracia. Os próprios museus são testemunho e afirmação duma sociedade e duma propriedade adquirida e a adquirir na medida em que, também eles, na qualidade de espaços públicos, condicionam o acesso a eles, mediante um óbolo de entrada não acessível a toda a população. Estes espaços públicos, antecâmaras do Olimpo, nas mãos de estruturas institucionais, servem um pequeno grupo de frequentadores, cimentando um estado de coisas em Estados que não conhecem povo nem população mas para quem reservam a ilusão e o Smog. Museus, mantidos pelo tesouro público, restringem a entrada neles àquele que tem poder económico para pagar um suplemento (bilhete) que o torna mais igual a si mesmo e lhe concede um estatuto identitário superior aos outros (“povo”). A arte limita-se, por vezes, a fomentar uma consciência política ecológica num público provindo, na generalidade, de camadas sociais com dinheiro que já possui essa consciência ecológica. Fala-se de liberdade, solidariedade e abertura sem prevenir nem registar que tudo se organiza na base de limites e de fronteiras e sob a lei da selecção da natureza. De facto, que seria da amiba sem a membrana?!

 

Nas falhas e lacunas da lógica, da vida e do direito, é gerado o progresso da superfície: ondas concêntricas geradas na superfície da realidade social. O exagero de performances, filmes, instalações, plásticos em formas visuais num mundo dominado pela visualidade pode reprimir ou condicionar outras percepções e dimensões, como se a imagem e a onda fossem as únicas realidades do espaço.

 

 

Cumplicidade entre criador observador obra e acto criativo

 

Talvez, uma maneira nova de fazer arte, pressuponha uma nova prática com trabalhos/obras de arte realizadas em comum por grupos de pessoas das diferentes disciplinas, como sugere Alighiero Boetti, numa tentativa de criar uma praxis de identidade múltipla. Se queremos encenar um novo mundo a estratégia será de colaboração e intercomunicação. Em Fernando pessoa temos um protótipo de artista com um eu dividido e reunido em si mesmo. Ele já se revelava com uma identidade múltipla. Nele podemos certamente verificar a tendência dum nós que também aspira ser eu. Em cada pessoa, como em cada grupo ou cultura esconde-se um processo de camadas culturais e físicas, à semelhança das camadas geológicas formadas ao longo de milénios e que se necessita consciencializar para ser colocada em interacção consciente. No grupo (nós) inclui-se o contraditório e dele surge a ipseidade e a alteridade numa relação de complementaridade de espiral ascendente a caminho do “ Omega” de Teilhard de Chardin. Seria óbvia a consciência dum propósito comum de evoluir sem se fixar nas formas criativas em moda nem nas cadeias de ideologias vigentes. Uma consciência pluridimensional é consciente de que os vários conhecimentos (ciências e práticas) continuam limitados aos seus próprios trilhos sem reconhecer ainda que o progresso e toda a perfeição (evolução) e futuro se processa em espiral num subir sem aniquilar, tudo reunindo em si, à imagem da criança que junta em si também a presença genética e cultural de seus pais e antepassados. Na criança, em cada um de nós, caminha a vida toda. Cada um é um resumo do universo segundo o próprio espelho. O empenho na realização dum futuro já presente implica o cruzamento dos vários ramos da ciência e da experiência numa fusão paciente de fé nostálgica e futurista. Todos somos processo e cruzamentos de processos.

 

Embora peregrinos citadinos, trazemos a província em nós. Esta continua a ser o terreno onde lançamos os alicerces da nossa casa. Na monocultura não prosperam as borboletas nem o artista. No nosso sítio pluridimensional, na nossa alma, encontram-se não só as imagens das paisagens que observamos do nosso ser, mas também as paisagens reais, o próprio campo, a que não falta o sol dum espírito iluminador e criador. O mundo é mais que as imagens ou a percepção que temos dele; ele é cidade e é campo, é matéria e é espírito, é facto e é fantasia, com entremeios de muros feitos de pedra, de ideias, de posições e de cultura, onde a luta pelo espaço e pela identidade parece fazer do muro o essencial. Na feitura do muro, e na necessidade da sua destruição e reconstrução revela-se a consciência profunda duma realidade muralhada estar chamada a transcender os próprios muros, podendo estes, em certos ramos da existência, ser reduzidos a símbolos, tal como acontece à sublimação da guerra no jogo de futebol. (A destruição dos próprios muros, porém, não se pode dar numa dinâmica de afirmação dos muros dos outros!)

 

Cada pessoa, cada obra, rua, catedral pode ser usada para um alargamento da consciência individual e colectiva; cada facto, cada objecto e ideia pode ser imbuído de poesia e tornar-se obra artística reveladora e concretizadora dum diálogo de metafísica e física que se interpenetram e completam, sem que o cunho individual do artista predomine. Para isso urge unir respeitosamente o saber científico ao sentir artístico e à sabedoria religiosa e verificar que o que dá consistência aos muros ideológicos e partidários é o interesse, a focagem numa parte da realidade. Também a identidade do mar se faz na interacção da identidade das gotas! Naturalmente, também o aleatório precisa do seu lugar ao lado do determinado.

 

O suceder da arte pode comparar-se a um estendal de imagens ventiladas pelo nosso pensamento e em que o estendal é a nossa alma/consciência individual e colectiva numa revelação diacrónica. O efémero e o factual recebem a sua consistência num jogo irónico entre real e abstracto, entre o sujeito e o objecto. Na obra fica o movimento duma vontade intencional mais ou menos consciente, num jogo de formas e gestos simbólicos, por vezes absurdos, de restauração e recuperação de vida e da reflexão sobre ela.

 

O medo de perder o legado do passado e o cuidado pelo futuro tornam-se presentes em obras envolvidas em processos de construção, desconstrução, reconstrução numa tarefa e intenção de possibilitar novas formas de leitura, duma realidade que só o é no acontecer. A arte regista uma contínua tentativa de simplificar a realidade antagónica equacionando-a, para isso, em verdades que a tornam acessível e destroem ao mesmo tempo. As obras artísticas, com a sua aura, testemunham a permeabilidade das fronteiras entre realidade e ficção. A arte origina-se no olhar do observador possibilitando, no seu consciente, a criação de mundos e dimensões que transcendem o dia-a-dia, numa procura doutras paisagens e doutros saberes.

 

O desafio contínuo de diálogo entre material e forma é possibilitado pela impossibilidade de obter uma síntese entre forma e matéria que transcenda o objecto que as enterra. Isto motiva todo o artista a procurar um arquétipo que se revele possível como aspiração no acto de dar à luz. A forma, como momento de in-formar, cativa o artista no processo criador que dá continuidade à criação e é subcutâneo à criatura do artista. Consequentemente mais que uma arte própria dum tempo há apenas uma expressão, um estilo artístico do tempo. Tal como no prólogo de João, o verbo cria tornando-se carne, num contínuo gerar gerando-se, e em que matéria e forma são momentos do acto de in-formar. O espaço de tensão entre o real e o exotérico, entre o acto de criar e o objecto criado, possibilita uma dialética intelectual já presente no acto criador. O acto de criar é luz sendo a obra a sombra dela e ao mesmo tempo, a força reminiscente de voltar/realizar luz. A obra de arte, se não reduzida a sombra petrificada, é sombra a apontar para a luz. Daí também a necessidade do artista ter de criar um “lugar” que possibilite a confusão do considerado real para assim proporcionar novos espaços, plataformas, diagramas e novas criações. Deste modo viabilizam-se diferentes mecanismos de percepção e criação de realidade. A arte torna-se no lugar do erótico em que a provisoriedade das formas dá lugar a novas dimensões para lá do tempo e do espaço possibilitando sentimentos e experiências que se contrapõem às emoções criadas pelo mundo do poder e da dominação.

 

Importa submergir na arte sem nos fixarmos no artista, na sua necessidade de identificação, nem na interpretação. (Estas revelariam apenas parte da nossa identidade!). As obras, como composições de textos, imagens, formas, materiais e estruturas possibilitam novos lugares e estadias que se podem tornar nossos espaços e até alargar as nossas perspectivas no sentido duma orto-praxia tanto linear como alinear.

 

Vive-se na dimensão das metáforas entre símbolos religiosos, científicos, artísticos e o poder político. A futilidade do esforço para chegar a uma verdade, que se perde nos contextos, fomenta uma realidade de meias verdades, em vez de apontar para o processo eterno de procura/realização da verdade/realidade. Também no coração da Documenta – no Museu Fredericianum – se configuram formas e sombras metafísicas apoiadas num estoque de ideias da ciência e alegorias da religião. Nele encontra-se uma sala, sem nada, onde o visitante é confrontado com o vazio e o silêncio. Este espaço de reflexão criativa estimula os visitantes a questionar, indirectamente, uma sociedade linear stressante. É mais que óbvia a necessidade de criar lugar do silêncio não só na igreja e na arte mas a nível individual, institucional e social.

 

A indústria da arte comercializada encontra-se ao serviço do capitalismo cognitivo que se distancia da natureza em nichos dum abstrato alérgico  à vida orgânica (Arte de conceito, Concept Art ) e em serviço da visualidade , muitas vezes direccionada para utopias negativas negadoras do Homem. Serve-se um macro-sistema de sistemas anónimos e alienantes! Numa época em que o mercado e os meios de comunicação social tudo instrumentalizam. Também a arte precisa de críticos como o artista Francesco Matarrese que nega o objecto artístico resultante dum trabalho abstrato (Um momento de reflexão!).

 

No entanto, também uma tela vazia viabiliza um destinatário e traz uma mensagem encoberta a um mundo inundado por imagens mudas em que um saber de altos voos já não consegue aterrar. Os fenómenos e os interesses cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas. Os limites tornam-se lugares que salientam as contradições da condição humana. No tapete do ser, em que nos movimentamos, nada há certo, tudo é provável; também o tapete em que andamos faz parte de nós e do movimento que somos. Se a filosofia se limita à pergunta de como é possível o real e se fica pelos condicionalismos e possibilidades desse real, não sai do comboio do pensamento que se move em trilhos e potencialidades delimitadoras do próprio pensamento. Então também a filosofia é uma arte porque reconduz e orienta a capacidade para um determinado momento do real. Por outro lado, também a ciência só pode descrever o provável, como descobriu a física quântica; cem anos depois, ainda se continua a acreditar no Weltbild (imagem do mundo ou mundivisão) determinista do séc. XIX que pensava que o mundo funcionava segundo regras exactas mensuráveis.

 

Fontes de inspiração criam estruturas narrativas, pinturas da história com restos dum futuro enterrado numa realidade feita de desmoronamento e reconstrução.

 

Ah! Na vida aqui ao lado, vive, lado a lado, na arrecadação da realidade, a vida a arder num processo de materialização e de desmaterialização. Num ser de objectos transformados pelas chamas do pensamento, a dor dá à luz novos seres num mudar contínuo de formas e visões. De facto, a diferença entre o papel higiénico e a nota de banco, está na tinta, o resto é uma questão de crédito. O nosso destino é dar forma ao formado em diferentes dimensões na partilha do acto de in-formar. Somos sonâmbulos no combate à noite da vida em procura da luz; quem não resigna procura, no relevo que dá à existência, deixar a silhueta da sua conotação, na sequência dum acto submisso de dar continuidade à vida no seguimento dum chamamento que se expressa na própria vocação.

 

Uma história, de perda da herança (recordação) e dos valores humanos, virada para um saudosismo arcaico que realça as forças bravias nela submersas, como se o brilho da cultura ocidental fosse algo extraterrestre que justifique toda a agressão dos guetos ou dos apóstolos do relativismo, expressa e conduz a um estado de abdicação. Consequentemente, um certo culto do exótico revela-se, contraditoriamente, contra o próprio ruralismo. Os espíritos dos aborígenes insurgem-se nesse culto contra a própria evolução. Às sombras da cultura ocidental são contrapostos os soalheiros doutras culturas e subculturas como se o mundo das culturas fosse unidimensional, como se, a cada cultura, não estivessem subjacentes a mesmas forças e leis naturais/culturais com uma representação teatral correspondente à própria vontade de se autoafirmar no tempo propício ou de se negar. A vigência duma ética de recordação negativa justificadora dum criticismo discriminador é sintoma de decadência. Arte, tal como as civilizações, precisa dos seus lugares altos na companhia dos seus templos. Sem intervir contra estranhos, a arte ocidental precisa de se reunir para se creditar e não abdicar dos valores que a tornaram um luzeiro universal!

 

Obras e culturas são colocadas em conexões ilegítimas como se um determinado quadro fosse responsável pelas tintas que se encontram enquadradas em circunstâncias doutros lugares e tempos. (Responsabilizam-se os outros para se desobrigar a si mesmo ou para se colocar no pedestal da moral.) Os espíritos dos mortos continuam a perseguir-nos como se a morte não fosse vida também. Critica-se o passado e a diferença, não para se ser mas apenas para subsistir. Na escolha dos factos e das obras que o artista apresenta, ele procura revelar-se nelas e ao mesmo tempo redescobrir-se na reacção do observador (público). Instituições e Exposições como a Documentas, Bienais e que mais, dão valor e significado às obras e artistas que confirmam as próprias posições e configurações da sua mundivisão. Só é pena que o seu espírito crítico não se reconheça como mero momento da própria necessidade de identificação e auto-afirmação, muitas vezes à custa do resto. A sua realização é importante, também porque constitui uma possibilidade de autoanálise e questionação possibilitadora de delineações mais alargadas. Os fenómenos cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas.

 

A arte, entre outras encenações, é mais uma visão do real, num cenário de fundo indefinido e aberto. Também a realidade é imagem fenomenal doutras dimensões. Tudo imagens da imagem dum real num palco de imagens formado também por nós. A vida é símbolo e vive dele num mítico acontecer que continuamente recria a sensação de chegar a um real que a própria experiência cria. No abstrair da abstracção talvez se chegue á imagem dum real para lá da percepção e do dizível, na sarça-ardente do “sou o que sou” no tornar-me.

 

António da Cunha Duarte Justo

www.antonio-justo.eu

antoniocunhajusto@gmail.com

 

PS  Escrevi este ensaio na perspectiva duma filosofia da “ARCÁDIA – Associação de Arte e Cultura em Diálogo”. www.arcadia-portugal.com

© António da Cunha Duarte Justo