A Guerra expressa a carência de empatia e de misericórdia
“Do que sofre?” é a pergunta que todos esperam que Perseval, faça a Anfortas (1)! Perseval entra no castelo onde Anfortas vive e sofre de uma lesão que não cicatrizava, de uma chaga aberta causada por amor ferido (Anfortas pode entender-se como símbolo de todos nós)!
Perseval movido de compaixão sentia-se compelido a perguntar sobre o seu sofrimento. Mas Perseval retrai-se e não faz a pergunta porque se a fizesse Anfortas poderia sentir-se inferiorizado perante Perseval! Para poder fazer tal pergunta isso implicaria primeiro o encontro consigo mesmo: aquela base que torna possível o encontrar-nos com o outro e no outro, um sentir-se em casa, mas no respeito pela casa do outro. Nesse encontro embarcamos juntos experimentando em comum a ferida do amor, o amor ferido de que sofre cada um de nós. Nesta base a pergunta torna-se legítima porque não se deixa reduzir a um acto de cortesia nem sequer de sobranceria e ao tornar-se compaixão traz consigo um efeito de cura e um sentimento de alívio na partilha do sofrimento; nela não me sinto só porque sofro com o outro.
Sofrer de amor é a realidade humana que se expressa de maneira arquetípica e redentora na Semana da Paixão! Se sinto a vida dentro e fora de mim, constato que ela é uma chaga aberta resumida no caminho do Calvário. Em Jesus sofre a humanidade e Jesus com ela.
A semana Santa é o tempo e o espaço de toda a humanidade resumidos num encontro de relação humano-divina! Jesus, como o madeiro às costas torna-se na resposta acabada à pergunta “Do que sofre?”. “Sofro de amor”, uma resposta de compaixão existencial que não se reduz a uma explicação mental: pergunta e resposta pressupõem uma comunhão de vida num peregrinar de existência comum. A pergunta-resposta ao expressar-se na compaixão tem um efeito de cura. Ela pressupõe uma relação interior, doutro modo poderia situar-se entre o sentir pena/compaixão e o ser lamentável de caracter meramente mental.
O existencialista Friedrich Nietzsche (2) ri-se da compaixão, considerando-a como egoísta e como sinal de fraqueza. O estoicismo considera a misericórdia/compaixão algo feminino, porque só valoriza a visão da razão; ao fazê-lo não nota que se refugia na masculinidade de que sofre a nossa matriz mental e social quando omite que compaixão não é uma ideia, mas uma atitude que se expressa em pensamentos palavras e obras (na caridade efectiva).
Como resposta a visão cristã procura não se perder nos abismos do coração (sentimento) nem nas lonjuras da razão. Compaixão é amor participado na reciprocidade de algo comum, na vivência comum do amor ferido; não é meramente racional, é incorporada na pessoa integral (corpo e alma) feita de eu e nós, de um eu enquadrado nas suas circunstâncias; não se pode reduzir a um mero discurso ou conceito intelectual porque compaixão não observa só de fora, ela sente e vê também de dentro. Compaixão é certamente inata tal como o agradecimento não se deixando reduzir a meros pensamentos ou sentimentos negativos ou positivos.
A supressão da compaixão e da empatia faz parte de uma matriz masculina excessiva. Ter compaixão não é negativo como queria o existencialismo niilista, pois ao envolver reconhecimento, apreciação, elogio, consideração, respeito. Mais do que ter pena, estamos na pena, um estado de compaixão, um laço que nos une e não se deixa reduzir apenas à inteligência emotiva, dado incluir, levar connosco, o sofrimento do outro e incorporá-lo na nossa vida.
A compaixão ou sim-patia interior expressa-se num impulso para ajudar, confortar, etc. numa comunhão de sofrimento, não implicando apenas a necessidade de um “sinto pena”.
Compaixão implica sentimento e também a lógica de uma atitude de justiça que leva à acção. A nossa sociedade procura evitar tudo o que é dor e nesse sentido tenta eliminar também do vocabulário as palavras de conotação religiosa que envolvem o sentimento de piedade, misericórdia ou compaixão. A psicologia demasiadamente centrada na cabeça (mente) procura fugir à dor entrando, por vezes, em rivalidade com a religião (a psicologia, como outros serviços ao fazê-lo correm o perigo de serem reduzidas a meras oficinas de reparação dos problemas de uma sociedade virada para a morte); esta é mais inclusiva integrando de maneira mais integral o sofrimento na vida humana como parte da natureza humana sem permanecer nele em atitude masoquista. Compaixão abrange amor ao próximo, misericórdia e caritas (amor). A bondade natural ou adquirida das pessoas chega a ser questionada por uma psicologia que, sob a perspectiva funcionalista e materialista, exclui a humanidade, a bondade e a graça; os valores religiosos são desqualificados e o amor ao próximo é transformado e interpretado como algo suspeito; as próprias virtudes e hábitos adquiridos através de esforço e reflexão são banalizados com explicações psicológicas que não concebem a espiritualidade como elemento humano; o altruísmo é degradado sistematicamente sendo reduzido a trauma, a complexo de inferioridade, no desconhecimento da mística e filosofia cristã que parte do princípio que o mundo deve ser pensado, não a partir do ego, mas a partir do outro, de um outro espiritualmente personalizado e não politicamente materializado; deixou-se de ter em vista a complementaridade das diferentes expressões individuais e sociais (ciência, filosofia, religião, economia, política, etc.). Realmente a nossa vida individual e social seria muito diferente se selecionássemos e avaliássemos a vida e o que se passa nela através do crivo do nós e não só através do crivo do ego e do útil imediato. O sistema procura que na modernidade nos orientemos, não por nós mesmos, pela nossa consciência, mas sim por o que ditam maiorias como quer a democracia partidária e estatísticas encomendadas; tudo ao mando da sociologia que se quer ver traduzida na nova filosofia da sociedade política. Estamos a ser reduzidos a meras funções ao serviço de sistemas. Desnatura-se a natureza e desumanizam-se as pessoas para se impor uma supraestrutura artificial em nome de uma cultura abstracta globalizada que subjuga, controla e mata.
Parece que nos encontramos num processo meramente pragmático e utilitário em que se perde a ideia da graça, daquilo que se recebe ou dá de graça para se passar a orientar tudo no sentido do útil e do utilizável. Muitos pensam que o objecto meta da vida é ser feliz e procuram, contra a natureza, aplicar-se apenas no que dá prazer.
A pessoa de fé não deixa de ter prazer, mas não se perde nela a perspectiva transcendente que a leva a não se perder nas satisfações nem nas contradições da vida do momento. O viver é mais importante do que uma experiência do momento reduzida a tempo. O tempo deixa de ser apenas cronológico e à medida do relógio ou do momento experimentado. Cada vez se tem menos tempo para o outro porque ele não se torna suficiente para as actividades só em torno do ego. O crente é solidário não só com os viventes, mas também com os mortos. Doutro modo reduzir-se-ia a vida a categoria de tempo do relógio e como tal limitar-se-ia à mera recordação de momentos.
Hoje a sociedade quer a pessoa à sua medida/imagem e só para ela, desejando-a, por isso, reduzida ao horizonte do momento e de mero contribuinte pagador de impostos, cortando-lhe, para se autojustificar, as asas da transcendência. Destroem-se as ligações familiares e o espaço social para se encurralar as pessoas dentro dos muros da cidade e acorrentá-las aos afazeres que a cidade precisa: uma política limitada a períodos de serviços, de quatro anos de mandato e de empresas em perigo de ruína, tudo encurta a perspectiva; esta se fosse ilimitada limitaria o poder dos poderosos que se afirmam em períodos de tempo. O Estado com os seus lugares de emprego oferece-se como algo sustentável até á reforma. Assim uma democracia utilitária limita a solidariedade ao reduzir a relação a tempos funcionais de serviço e como tal a meras obrigações temporárias.
As vantagens da vida em comunidade são materializadas e funcionalizadas em técnicas de trabalho de equipa na perspectiva de uma função mais rentável. Na empresa quer-se o trabalhador como força de trabalho, não como pessoa e menos ainda como membro de uma família; esta deve ficar fora da porta. A pessoa deve ser desenraizada para ser flexível e instrumentalizável ao serviço da economia e da civitas. O dinheiro tornou-se na concentração das energias e como tal reduziu a pessoa a um comerciante de um ego sem pátria nem família. Em serviço da grande indústria e das potências emigramos, ficando sem um lugar que nos pertença; continuamos assim fora de tudo em mera ligação, mas perdemos as relações familiares; em vez de relações criam-se ligações funcionais; valho pela ocupação no que faço e não pelo que sou. Por outro lado, a política quer fazer dos seus cidadãos emigrantes do núcleo cultural, destruindo ou considerando as tradições e os laços familiares, culturais e religiosos que tínhamos como música de acompanhamento da economia (e tecnologias que a determinam) e da administração da cidade. Somos enquadrados em condições escolares, laborais e de opinião pública que nos alienam. Em vez de se adaptar a economia às necessidades das pessoas, regiões e das famílias, foi sistematicamente destruída a pequena aldeia e com ela a família e deste modo tem-se o cidadão prostrado a seus pés, em vez de relações temos funções a trabalhar para uma máquina com funcionários burocratas.
Na aldeia, como na família, muita d vida era de graça, baseava-se a vida social a um viver na reciprocidade; ainda lembro o tempo em que o vizinho nos emprestava os bois para lavrar os campos e meu pai emprestava as vacas e os utensílios de lavoura para os vizinhos poderem satisfazer suas necessidades. Isto parece mera saudade, mas não; é apenas a expressão de atitudes saudáveis que vão desaparecendo e deveriam ser integradas em novas formas de vida social. As pessoas trabalhavam em função da família, hoje é o contrário; cada pessoa é levada a trabalhar para si própria em função da empresa anónima e do Estado. Quer-se um mundo mecânico, mecanicista em que cada pessoa funcione como peça ao serviço da máquina.
No meu andar pelo mundo da religião, da política e do trabalho fiz a experiência de que pessoas católicas, na Alemanha, têm a razão mais próxima do coração e por isso eram talvez menos eficientes mas mais próximas do humano enquanto que muitas pessoas protestantes ou progressistas eram mais eficientes e menos humanas no relacionamento do dia a dia (a equação poderia ser feita nestes termos: os protestantes estão para os católicos como os alemães para os estrangeiros!). Se em determinados grupos sociais ou pessoas a misericórdia e compaixão passam sobretudo pela mente noutras passam mormente pelo coração (Lucas 6,36) e aí se situam as diferentes posições em relação à compaixão.
A sociedade política tem um caracter mais masculino, mais mecânico e utilitário e ao combater a igreja destrói uma cultura da humanidade e de feminilidade. O Deus cristão sente com as pessoas e por isso a compaixão de Cristo pelas pessoas corre nas veias cristãs. A compaixão é de caracter pessoal não sendo preocupação de governantes. A compaixão também abrange os inimigos (no “perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”); no JC trazemos connosco a força e a fraqueza que não nos faz temer porque as reconhecemos em nós e nos outros: esta “fraqueza” que faz parte do carácter feminino de Deus ainda é estranha a todas as instituições. A imagem de um Deus compassivo faz do cristianismo “o falar do Deus de Abraão, Isaac e Jacob, que é também o Deus de Jesus”, que o torna um expressar Deus fora da expressão de qualquer monoteísmo abstracto (de um só Deus), mas sim de “um monoteísmo vulnerável (“panenteísmo”), empático (compassivo), que é, no seu cerne, um discurso sensível de Deus”, como dizia Johann Baptist Metz. A proibição bíblica de se fazerem imagens de Deus, põe em causa a representação de um Deus masculino (a funcionar no esquema inimigo-amigo. “A fuga do sofrimento e a tentação de fechar os olhos ou desviar o olhar do sofrimento dos outros é omnipresente” como constata Lothar Kuld in “Compassion raus aus der Ego-Falle“.
A compaixão acompanha todos os que sofrem independentemente da via da autoestrada em que se encontrem. Onde há pessoas que sofrem, que são oprimidas, lá se encontra Deus a sofrer nelas. O sofrimento é diferente e diferenciado segundo o contexto e não pode ser contrabalançado a uma dor com a outra. Dor é dor existencial não ideia. Por isso precisa-se de uma cultura de cooperação que substitua a cultura do mercado (interesse, concorrência, rivalidade e intercâmbio) que nos rege e com a qual vivemos bem à custa de muitos outros.
Urge restituir a dignidade humana aos pobres do mundo e viver a caridade/solidariedade, urge integrar na matriz social excessivamente masculina, também a feminilidade /aquela característica onde o activismose dissolve na paz!). A identificação com os que sofrem (compaixão) não é devida à má consciência nem se trata tão-pouco de, com ela, enrouparmos o nosso ego; a caridade, compaixão, misericórdia é uma ressonância que tudo une independentemente do baixo ou do alto em expressões humanas.
A guerra segue sobretudo ideais masculinos, falta-lhe a empatia, a compaixão. Compaixão não precisa de ser integrada em categorias de poder ou de sobranceria, ela não se deixa reduzir a sentimentalismo nem a orgias intelectuais. Não chega na avaliação das coisas usar-se só o crivo da razão ou intelecto ou de uma percepção selectiva. Tudo tem as suas fronteiras os seus limites, mas também as suas pontes, doutro modo, não seriam definíveis.
Pascal dizia “há razões que a razão não conhece” e a virtude encontra-se no meio, mas também ela é necessitada por pressupor os extremos (opostos). A experiência de nos encontrarmos todos a caminho ou num êxodo de humanidade, como o povo hebraico que na companhia do seu Deus seguia a arca da aliança numa cumplicidade que lhes dava futuro. O homem precisa de companhia desde que abandonou o “paraíso” e por isso usa de palavras para poder dialogar ganhando assim forças para andar. Como na fogueira da criação a arder, a compaixão é o calor que sai desse fogo que nos aquece.
Os acontecimentos e a vivência da Semana Santa são a pergunta e a resposta ao sofrimento do amor ferido!
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo
(1) Perseval é o herói da lenda arturiana, um romance em verso da literatura cortês alemã que foi escrito entre 1200 e 1210. Anfortas era um filho de Verónica, a irmã de José de Arimateia; Anfortas foi ferido por um amor encantado que lhe provocara uma lesão que não cicatrizava.
(2) Friedrich Nietzsche via como tarefa do homem produzir um tipo de homem mais desenvolvido do que ele mesmo. Nietzsche chama esse homem superior ao homem (Übermensch); propriamente o Homem deveria situar-se no lugar de Deus; para isso nega Deus e a religiosidade com os seus valores e nega a correspondência entre linguagem e mundo (daí o atributo de niilista, do latim nihil=nada). Nietzsche é contra a dicotomia da personalidade humana subjacente às religiões onde, por um lado a pessoa humana é forte e boa e por outro lado é fraca e falha.