Era uma noite fria e silenciosa em Bruxelas. As estrelas pareciam distantes, como se também elas tivessem perdido a fé na Europa. No coração da cidade, onde as instituições da União Europeia se erguiam imponentes, duas figuras marcantes se encontravam frente a frente: Roma e Bruxelas. Não eram meros lugares ou cidades, mas entidades personificadas, símbolos de duas forças em tensão constante: Roma, personificação da tradição, da história e das raízes da civilização ocidental, e Bruxelas, símbolo da modernidade, da burocracia e da busca por uma unidade frágil.
Roma, de vestes douradas e olhar sério, trazia em si o peso da história e da tradição. Falava em latim puro, reminiscente das colunas que sustentaram impérios e doutrinas de sustentabilidade. Bruxelas, vestida de vidro e aço, emanava pragmatismo e progresso, discursando numa multiplicidade de línguas, sempre diplomática, mas esgotada na busca de consenso. “Vejo que continuas a tentar construir um império sem alicerces”, disse Roma, com uma voz que ecoava séculos de sabedoria. “A tua torre de Babel desmorona-se, e ainda assim insistes em subir mais alto.”
Bruxelas respondeu, com um tom defensivo: “Não entendes, Roma. O mundo mudou. Precisamos de unidade, de progresso, de superar as divisões que nos enfraquecem. A Europa já não pode viver de mitos e tradições. ”
Roma sorriu, mas havia tristeza no seu olhar. Suspirou e observou as multidões que passavam. Cada rosto era uma expressão do caos ordenado que Bruxelas tentava manter. No entanto, por baixo das fachadas modernas, percebia-se uma fragilidade crescente, uma sociedade cada vez mais desconectada de suas raízes. “Unidade? Progresso? Diz-me, Bruxelas, o que é progresso sem sabedoria? O que é unidade sem identidade? Vejo em ti o mesmo complexo que afligiu tantos impérios antes de mim: a crença na omnipotência, na infalibilidade. Vocês acham que podem governar sem olhar para trás, sem aprender com os erros do passado.”
Bruxelas cruzou os braços, revelando incomodação. “Não somos como tu, Roma. Não cairemos na arrogância dos deuses. Temos instituições, leis, um sistema que nos protege dos excessos.”
Roma riu, numa gargalhada que ecoou como um trovão. “Protege-vos? Ou aprisiona-vos? Vejo em vossos líderes a mesma vaidade que outrora condenou os meus. Eles acreditam que podem controlar tudo, desde a economia até à natureza humana. Mas o que fazem quando a crise chega? Culpam-se uns aos outros, fecham-se em dogmas, e recusam-se a ver a realidade.”
Bruxelas olhou para o chão, hesitante. Sabia do que Roma falava. A Europa, outrora ciente de suas limitações, agora vangloriava-se de uma falsa omnipotência. Os seus líderes, convencidos de sua infalibilidade, impunham dogmas sociais e políticos sem espaço para debate ou reflexão crítica. Nos corredores do poder, qualquer oposição era reduzida a um maniqueísmo simplista: ou se estava com o progresso, ou se estava contra ele. “Talvez tenhas razão em parte. Mas o que sugeres? Voltar ao passado? Abandonar tudo o que construímos?”
Roma aproximou-se, colocando uma mão no ombro de Bruxelas. “Não se trata de abandonar, mas de recordar. A Europa foi construída sobre três pilares: a razão de Atenas, a fé de Jerusalém e o direito de Roma. Vocês esqueceram-se disso; na ânsia de criarem uma ordem perfeita, negligenciaram a humanidade do próprio povo. Em vez de humildade, escolheram a arrogância. Em vez de compaixão, escolheram o cálculo. Em vez de união verdadeira, criaram uma ilusão de uniformidade.”
Bruxelas suspirou, e pela primeira vez, sua voz pareceu frágil. “E agora? Como saímos deste labirinto?”
Roma olhou para o horizonte, onde o sol começava a despontar. “Reconhecei as vossas limitações. Aceitai que não sois deuses, mas humanos. Reencontrai as vossas raízes, não para repetir o passado, mas para entender quem sois. E acima de tudo, cultivai a humildade. Como disse um dos vossos pensadores, ‘onde a ação humana já não corresponde à existência humana, a verdade transforma-se em mentira’.(1)”
Bruxelas ficou em silêncio por um momento, refletindo. Bruxelas sentiu um calafrio. Sabia que Roma tinha razão. Na sua sede por uma sociedade perfeita, os líderes europeus haviam criado bolhas ideológicas, alimentadas por um ciclo mediático que apenas reforçava o pensamento dominante. Não havia mais intelectuais independentes, apenas burocratas e comentadores que repetiam o que era conveniente. “E se falharmos?”
Roma sorriu novamente, desta vez com uma centelha de esperança. “Então a Europa, como tantos impérios antes dela, será apenas mais uma lição para o futuro. Mas ainda há tempo. A escolha é vossa. Precisamos de líderes que saibam ouvir, que compreendam que governar não é impor, mas servir. Que aceitem que nem tudo pode ser controlado e que a sociedade precisa de raízes para florescer ”
Bruxelas olhou para Roma e, por um instante, sentiu o peso da sua responsabilidade. A crise que se espalhava pelo continente não era apenas económica ou política — era espiritual. A Europa havia perdido a sua identidade na ilusão da omnipotência.
E assim, os dois espíritos se despediram, enquanto o sol iluminava as ruas de Bruxelas e o vento soprava entre as estátuas antigas e os edifícios modernos. A cidade continuava a mesma, mas algo havia mudado. Talvez, pensou Bruxelas, fosse hora de olhar para trás, não com nostalgia, mas com humildade, e encontrar um caminho que unisse o melhor do passado com as possibilidades do futuro.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) Papa Bento XVI