“Nacionalizações” da Ortodoxia e Irritação entre Igrejas
As sociedades em desenvolvimento natural ou em processo de afirmação precisam, de um tecto metafísico que lhes dê consistência e uma cobertura possibilitadora de identificação e de fomento de comunidade. Na China temos o comunismo/confucianismo, no Ocidente os valores e direitos humanos (cristianismo), na Rússia a Ortodoxia, em países de cultura árabe o islão, na Índia o induísmo…
A Igreja Ortodoxa Russa encontra-se numa situação muito complicada já desde o colapso da União Soviética e especialmente agora porque a guerra tem forçado as diferentes denominações a tomarem uma posição política clara! Num momento em que os nacionalismos se afirmam, surgem as “nacionalizações” da ortodoxia; países em construcção nacional alcançam autocefalia e independência das igrejas-mãe ortodoxas. Já antes da invasão russa, mais de 45% da população da Ucrânia pertencia ao Patriarcado de Kiev e cerca de 13% ao Patriarcado de Moscovo e 1,3% à Igreja Ortodoxa Autocefálica Ucraniana. É curioso que também a Igreja Ortodoxa Sérvia concedeu agora autocefalia à Igreja Ortodoxa da Macedónia (1)!
Em entrevista (2) o Papa Francisco criticou o Patriarca ortodoxo Cirilo I por não se distanciar de Putin na guerra com a Ucrânia. O Papa disse que Cirilo não deveria ser “ministro de Putin„(ministro = servidor), mas também não esqueceu de dizer que “o verdadeiro “escândalo” da guerra de Putin era “o ladrar da NATO às portas da Rússia”, fazendo com que o Kremlin “reagisse erradamente e desencadeasse o conflito”!
Na realidade, o argumento “desnazificar a Ucrânia”, usado por Putin para invadir o país, é inadmissível e situa-se na mesma lógica imperialista de intervenções levadas a efeito pelos EUA/NATO em nome da defesa dos valores europeus que diziam defender na terminada guerra do Afeganistão, etc.! Esta lógica, sempre nas mãos de potências fortes (tal como o recurso ao bloqueio Comercial) faz parte das estratégias elaboradas para afirmar a confrontação/rivalidade e impedir o surgir de uma cultura que tenha como base e fim a paz entre os povos! Uma cultura da paz terá de superar a estratégia de visão linear ou causal exclusiva para passar a uma estratégia de visão multifacetada numa relação de complementaridade inclusiva.
Não há perspectiva sem paisagem; o mesmo se diga do texto e do pensamento que carece sempre do seu enquadramento cultural, a paisagem cultural (mental-emocional-social) envolvente para poder ser compreendido (o compreender possibilita o concordar, o discordar ou a alternativa)! O enquadramento do texto no seu contexto viabiliza observar conotações e denotações e deste modo a hipótese de uma observação mais diferenciada com conclusões mais aferidas e como tal mais comedidas!
Uma análise dos diferentes “biótopos” culturais e correspondentes condicionantes possibilitaria uma ampliação de horizontes que proporcionaria ultrapassar preconceitos de mentalidades produzidas dentro de modelos que se afirmam na forma adversativa!
A crítica do Papa causou bastante descontentamento no Patriarcado de Moscovo resfriando as relações com o Vaticano. O Papa tem razão porque a guerra não poderá ser legitimada cristãmente!
O Patriarca Cirilo I na qualidade de chefe religioso encontra-se entre a espada e a parede; entre a fidelidade ao evangelho e o papel institucional político (poder)! As relação igreja-estado vão-se adaptando à consciência social e histórica de cada sociedade!
Na Rússia a ortodoxia revela-se como factor de identificação nacional e de união do seu povo; o comunismo já não serve a unidade, a ortodoxia compensa essa falta de que se socorre o poder secular em termos de complementaridade. Na relação Estado-Igreja, Cirilo deu prevalência à perspectiva cristandade descurando a do cristianismo!
Um outro aspecto a ter em consideração reside nas distintas velocidades a que andam as diferentes culturas em termos de sua contextualização e factores de identificação; estas expressam-se nas sociedades e na História (sociologia, política…) com rosto próprio, o que não legitima uma cultura arrogar-se o direito de condenar ou se impor à outra e para mais numa situação em que se encontram razões de Estado frente a frente.
É um facto que a Rússia, o maior país do mundo, com diferentes povos e como tal terá uma dinâmica estatal interna muito diferente da de um Portugal homogénio; seria cínico o argumento de que uma “superioridade” de valores europeus – direitos humanos, etc – pudesse constituir argumento para motivar a subjugação russa ao Ocidente ou possa até ser usada como motivo de guerra. Este é um argumento hipócrita que o Ocidente usa como pau de dois bicos para legitimar, por um lado, a sua violência e expressões imperialistas desestabilizadoras de países, quando por outro lado defende a legítima liberdade de autolegitimação dos povos indianos na América latina no direito à sua autonomia!
O Ocidente, constituído por unidades de povos mais ou menos homogéneos, usa hipocritamente de um argumento para se insurgir contra centralismos que não respeitam as identidades legítimas nos seus países e, em seu benefício, faz uso do argumento da democracia e dos direitos humanos para intervir e desestabilizar povos multiculturais onde a colonização interna ainda se encontra em processo. Deste modo, o imperialismo económico junta-se ao mental servindo-se de expressões moralistas como legitimadores do fomento de estruturas de violência.
A consciência, a nível social e individual, de cada cultura adapta-se paulatinamente ao desenvolvimento das suas circunstâncias históricas (numa correlação mais ou menos emancipatória de medida de forças entre indivíduo (grupos cívicos) e instituição); da afirmação dos vários grupos dentro de cada sociedade num encadeamento de concorrência-colaboração-dispersão entre eles e também numa relação de interculturalidade se vão criando novas expressões de Estado. Imagine-se que as verbas que as potências disponibilizam para a guerra fossem aplicadas no desenvolvimento económico dos povos! O desenvolvimento e a “justiça” que querem provocar através de guerras seria mais eficiente se fosse aplicado nos enriquecimentos dos correspondentes povos!
O Estado ao deixar de ser confessional devido ao surgir de grupos, ideologias e mundividências concorrentes é levado a cortar o cordão umbilical com a Igreja e vice-versa (igreja que abrigava tendências concorrentes sob o mesmo tecto). À medida que se processa uma emancipação, normal ou exagerada do indivíduo em relação à comunidade, vão surgindo novas formas políticas de adaptação ao cidadão que se afirma no princípio da liberdade e como tal, na ênfase dos direitos humanos.
Podemos observar que com o protestantismo (sec. XVI), apesar dos seus aspectos positivos, se expressou um certo extremo de emancipação do crente em relação à comunidade religiosa, levando-o, porém, a um certo encosto ao poder secular. No Catolicismo tem-se mantido ou procurado manter uma certa balance de equilíbrio na relação e interdependência de crente-comunidade e como o crente é ao mesmo tempo cidadão houve um correspondente desenvolvimento nas relações Estado-Igreja que vinha da admoestação de Jesus: “A Deus o que é de Deus e a César o que é de César”!
Na consciência social histórica o caracter religioso divino-humano (da filiação divina) determinou a definição da pessoa humana como soberana em relação às instituições (daí a ilegitimidade da pena de morte no consenso cristão); a dignidade humana foi sendo assumida na sociedade secular ocidental através da afirmação da liberdade humana e dos direitos humanos! O mesmo se pode observar historicamente na Europa onde a assistência educacional e de saúde foi passando dos conventos para a assistência social do Estado.
Atualmente, uma vontade política secular ocidental, partindo da sua consciência histórica vigente, reage de maneira exacerbada em relação à Ortodoxia, o que seria compreensível em termos de cristianismo, mas o que move as potências ocidentais tal como a federação russa não é o cristianismo, mas o poder político e económico de domínio a disputar-se entre a Rússia e a Nato, o que por outro lado leva a ortodoxia a reagir de modo a optar no sentido cultural de cristandade! (O que as elites ocidentais exageram no sentido secular talvez a Rússia esteja a exagerar no sentido religioso; das sociedades muçulmanas e hindus, não se fale!)
A discussão torna-se desequilibrada tendo em conta a perspectiva de observação relativo ao processo de aculturação-inculturação-secularização em relação ao cristianismo e aos povos/sociedades/culturas onde se encontra inserido. Se Cirilo I comete o erro de comprometer demasiado a igreja com o Estado, o Ocidente comete o erro de, por razões óbvias de poder, querer ver a sociedade russa desunida para mais facilmente ser desmembrada e, enfraquecida, tornar-se mais acessível ao poder ocidental! Daí ser muito necessário o espírito de discernimento ao avaliarem-se fenómenos como os que acontecem agora em atmosfera de guerra! (De não esquecer que uma das acções de empenho do Ocidente na Ucrânia foi dividir a ortodoxia na Ucrânia anos antes da intervenção de 24 de fevereiro!
Lamentavelmente, a opinião pública é induzida em erro ao ser levada a pensar que em política se trata de humanismo e não de poder, de moral e não de interesses bem egoístas que por vezes se resumem em “razões de Estado” à mistura de interesses das elites, mas apresentados às populações como se se tratasse só de aspectos humanos morais em benefício delas! Por outro lado, muitos cidadãos cristãos do Ocidente são levados a criticar severamente o Patriarca ortodoxo não notando que estão a ser levados de Pontius Pilatos para Herodes e vice-versa! Não tem havido um discurso democrático humano no espaço público e o que existe está agora a desenvolver uma dinâmica perigosamente destrutiva. A fim de se ultrapassar a divisão entre Oriente e Ocidente, divisão esta que atravessa também a nossa sociedade, é necessário aprender de novo a argumentar segundo o método da controvérsia (3), de maneira a adoptar-se um discurso humano inclusivo que, movido pelo respeito, omita a discriminação e a exclusão.
O governo de Moscovo e a jerarquia ortodoxa ainda caminham em colaboração numa presumível intenção de defesa nacional pelo que, como sistema fechado, permanece um dogmatismo próprio sem grande lugar para relaxamento, mas que, na melhor das hipóteses poderia dar origem a grupos, ancorados na sua própria cultura, possibilitadores do surgir de uma democracia de baixo para cima e não como aspiraria o ocidente, de grupos meramente poderosos de domínio do homem sobre o homem!
A abertura ou liberalização da Nação (união de Deus-Pátria-família) é processual e a mundivisão que atualmente domina o Ocidente é que do dueto Igreja-Estado se passe a uma sinfonia político-cultural. A sinfonia torna-se, porém, disfónica dado o facto de termos uma democracia partidária também com um organigrama piramidal baseada no poder e não na relação humana orgânica; a perspectiva continua a ser o vértice da pirâmide e não a sua base numa estratégia de dividir e não de unir para melhor assegurar o poder de alguns (o poder e a decisão em vez de se operar no sentido de baixo para cima opera-se no sentido de cima para baixo). Como é natural, tudo olha para cima, para Deus, para o Sol, sem ter em grande conta a elevação, divindade e luz que brilha no interior da comunidade humana e em cada um (JC como protótipo do humano)! Neste sentido seria necessária uma nova impostação individual, social e institucional que partisse da consciência da base (pessoa e comunidades de vida), num actuar de democracia de base, e como tal da “aldeia” para a região e da região para a nação e da nação para confederações internacionais e não no sentido inverso de um globalismo controlador imposto de cima para baixo como observamos no sistema liberal capitalista e no socialismo e resumido no sistema chinês (4)!
O direito socializa-se passando-se de um direito dual (Igreja-Estado) para um direito plural (concorrência de interesses expressa em partidos).
Será do interesse do Estado manter sempre uma boa relação com as confissões religiosas até para não provocar a afirmação de confissões que unam o direito de Deus ao de César na própria comunidade, o que poderia tornar-se problemático num sistema secular pluripartidário meramente ligado a interesses civis (porque razões de poder poderiam levar grupos religiosos a organizarem-se em partidos com consequências imprevisíveis para a sociedade ocidental… (a ponto de poder criar uma relação social político-religiosa como se pode observar nas sociedades de religião muçulmana onde culto privado e culto público se unem dando-lhe maior consistência e sustentabilidade! As junções de poderes nas sociedades republicanas poderiam tornar-se num perigo para república laica.
Terá que haver sempre uma colaboração entre a ordem espiritual e a ordem secular no seguimento bipartido ocidental: a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
O Constantinismo conduziu a uma certa secularização do cristianismo e, por outro, a uma certa cristianização dos órgãos de poder (Criou-se também uma relação mais no sentido de cristandade do que de cristianismo genuíno)! Que Constantino tenha adoptado o Cristianismo e o tenha instrumentalizado como ferramenta para adiar a queda do império romano só revela a inteligência política de Constantino que tinha feito as suas experiências em terras ibéricas e sabia equacionar os problemas reais do império romano!
O secular e o natural têm de coexistir numa correlação complementaridade, tal como acontece na ordem da vida.
Para se avaliar diferentes biótopos culturais são necessárias criatividade e multi-perspectivas de observação para possibilitar a criação de impulsos inovadores na sociedade civil e religiosa.
Numa época em que todos os bons espíritos nos abandonaram, precisamos de reflectir para agir humanamente! Urge uma mudança de paradigma no tratamento da diversidade cultural do outro (parceiro e adversário), de maneira a permitir um fluxo na transversalidade e não de cima para baixo. Em vez de se cultivar um discurso/diálogo num contexto orientado para a negatividade ou para o défice, o respeito e a compreensão cultural da diferença deverão conduzir a uma transversalidade de ideias e atitudes pela positiva e a reconhecer nelas potencialidades enriquecedoras de um lado e do outro, de maneira a poder-se encetar um caminhar comum! Interessante para a ordem do dia seria o que nos une e não o que nos separa!
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo, https://antonio-justo.eu/?p=7509
(1) O colapso da União Soviética tornou difícl a situação d a ortodoxia “Santa Rússia” (Rússia, Ucrânia, Bielorrússia)! , Em 1992, numerosas paróquias ortodoxas separaram-se da Igreja Ortodoxa Ucraniana, que estava sob o controlo do Patriarcado de Moscovo. Em 2019 o Patriarca Ecuménico Ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu I, concedeu autonomia à Ortodoxia Ucraniana. O Metropolita Epifânio de Kiev disse: “Existe agora a Igreja Ortodoxa Ucraniana Autocéfala Ortodoxa. Cf.:https://www.deutschlandfunkkultur.de/orthodoxe-kirche-ukraine-100.html
(2) https://antonio-justo.eu/?p=7410
(3) https://antonio-justo.eu/?p=3336
(4) Uma unidade que por um lado favoreceria a razão de Estado é contrariada por diversificações do cidadão e das diferentes organizações ou cooperações concorrentes dentro do Estado numa diferenciação de interesses quer religiosos quer civis: ao deixar de haver um tecto religioso unitário de uma sociedade e paralelamente ao processar-se uma diferenciação de mundivisões civis dentro de um estado, a obediência civil que antes era indiferenciada passa a diferenciar-se também ela (concretizada em partidos e confissões religiosas) e assim em vez de termos o ceptro religioso e o ceptro monárquico passou o poder, com a República de espírito maçónico, a diferenciar-se de maneira acentuada entre o ceptro religioso de um lado e do outro o ceptro secular, uma espécie de monarquia sem ceptro (república) que em vez do rei tem o Presidente e o parlamento..