AS 15 ESTAÇÕES DA VIA SACRA

VIA SACRA

No seguinte texto vou reflectir um pouco no sentido da espiritualidade da via crucis. Inicialmente meditava-se sobre as 8 estações do calvário referidas nos evangelhos; posteriormente foram ampliadas.

  1. Jesus é condenado à morte

Ao ser condenado à morte, Jesus não abre a boca; ele sabe que perante quem se arma em juiz não há argumento profundo porque o juiz segue uma visão dualística que não permite um diálogo ao nível de sujeito para sujeito (de caracter inclusivo).

Em todo o interrogatório das autoridades romanas e do sinédrio Jesus apenas responde a Pilatos dizendo que é o „testemunho da verdade”). Pilatos pergunta “o que é a verdade?”. Jesus não responde certamente porque sabia que Pilatos, não entenderia uma resposta que desse porque só a equacionaria no sentido do discurso de direito (racional, na tradicional mentalidade exclusiva do ou… ou); este discurso não conhece pessoas nem relação, apenas conhecem objectos e interesses, prémio ou castigo.

Os interesses que se juntam em torno dos juízes, do direito, da política e da religião, muitas vezes à custa da relação humana e de uma verdade mais profunda. A verdade é processo e, a nível real-místico, só se encontra na relação pessoal, na inter-relação do eu e do tu com o nós.

O caminho do calvário é a resposta do silêncio a uma sociedade empedernida, incapaz de compreender o que é a Verdade dado esta ser relação e nunca uma abstracção intelectual a serviço deste ou daquele poder. Por tudo isto Jesus emudeceu! Só tinha a hipótese de calar, mesmo perante a boa vontade de Pilatos que perguntava num cenário de mentalidade dualista do poder, a mentalidade ordinária do dia-a-dia; uma resposta a nível de justiça só poderia contribuir para o barulho e confusão de que a lei vive.

  1. Jesus toma a cruz aos ombros

Depois do encontro com as autoridades Jesus pegou na cruz aos ombros, não uma cruz culpabilizante nem justificadora; era a cruz da vida e dos males acumulados pela história da vida…. Foi então desprezado pela multidão do povo, porque também este só repete o que os chefes pensam, dizem e mandam… O povo fraco, geralmente coloca-se ao lado dos fortes, numa reacção compensatória da própria impotência. Mas Jesus não vinha para os fortes da sociedade nem para os que tinham adquirido o mérito de bons à custa da objectivação do que é sujeito, do inobjectivável…

Os dirigentes e o povo não aceitam reconhecer em Jesus as próprias feridas porque inconscientemente sabem que se tivessem a nobreza de alma de Jesus teriam de questionar a vida leviana a que foram acostumados e em que investiram…

Os soldados vendam-lhe o rosto, para lhe poderem bater; estão habituados a não encarar a vida de rosto no rosto; contentam-se com viver uma vida em segunda mão, uma vida de outros que é a negação da vida. Jesus, na tradição do servo de Deus (Is 53,33 s) suporta os pecados dos outros.

Não o querem na cidade, querem-no extramuros; numa reacção inconsciente querem-no nos caminhos fora dela onde se encontram os excluídos da sociedade (esquecem, porém, que lá é que se encontra Deus a incluir toda a humanidade). Ao colocá-lo fora dos muros fizeram inconscientemente como manda o dia-a-dia da normalidade… Carregam-no com as traves (um símbolo da horizontalidade a outra da verticalidade; Jesus leva o mundo às costas no que ele tem de pesado; transporta o peso da própria cruz não o deixando para os outros; com uma consciência superior assume também os males dos outros.

Querem-no fora porque, no seu entendimento, um messias teria de andar pelos seus caminhos e seguir a obrigação de perfeccionismos e de virtude passadas a ferro pela sociedade, teria de seguir a ordem social e familiar como qualquer outro… Nem tão-pouco os amigos aguentam a realidade de um homem adulto que encara a vida de frente sem culpar ninguém. Eles querem Deus, à sua maneira, pelo que Jesus terá de ir morrer como o enforcado fora do povoado e, longe dos homens e de Deus; Jesus, porém segue o caminho sempre em frente em silêncio; ele sabe que na mentalidade do povo um condenado pela lei é considerado um amaldiçoado de Deus (Dtn 21,23).

Deus permite tudo isto porque assim mostra que uma vida vivida só orientada pela lei é destrutiva, individual e institucionalmente… Jesus encontrava-se repleto de Deus e mostrava, no seu andar, quão diferentes são os caminhos da Verdade em comparação com os caminhos da normalidade de povo, governantes, religiosos e políticos. Como se mantêm prisioneiros de uma visão dualista da vida pensam que Deus se vingou em Jesus como se Ele fora um amaldiçoado de Deus.

Não, aqui não se trata de castigo; aqui está em jogo o assumir de uma nova consciência, de uma nova maneira de ser e estar no mundo que integra o mundo todo em si. No calvário não se trata de realizar uma pena devida à humanidade; Deus não é nenhum justiceiro como o quereria a mentalidade dualista e instrumentalizadora de quem nos governa. Deus não precisa de resgate… Ele caminha connosco, contigo e comigo, de maneira inclusiva e amorosa, assumindo também o sofrimento, numa reacção positiva à vida.

  1. Jesus cai sob o peso da cruz

Ninguém podia entender o núcleo da sua boa nova onde não há as instituições da violência e da repressão. Jesus tinha ferido profundamente a religiosidade popular e institucional do povo ao criticar a instituição e as práticas religiosas e ao afirmar a Boa-nova da alegria que não culpabiliza ninguém e deste modo desmascara os cães de guarda de Deus e do Estado. A crença e a lei constituíam elementos impeditivos de uma relação mais directa com Deus e com o povo. O JC anuncia uma metanoia para a liberdade e insujeição mostrando com a sua vida o preço da liberdade. As instituições querem, muitas vezes, um Deus grande, um Estado grande à custa da humanidade e do povo; Jesus Cristo convida a não nos orientarmos tanto por regras e moralismos, mas para através da relação com o interior divino… Jesus traz uma mensagem de alegria e não de tristeza. Ele quer as pessoas libertas do jugo do medo, por isso apela à mudança porque toda a vida é processo e transformação, não algo meramente estático fixado em lei ou normas que nos distraem do essencial: a relação pessoal e interpessoal. Jesus acaba com o pensamento em branco e preto, em termo de certo ou de errado; para Ele basta a fé, a experiência de amor que salva (Mc 5,13).

  1. O encontro de Jesus com Maria 

A mãe lá está, bem à margem do caminho, sofrendo no silêncio o mau caminho do seu povo. A mãe pensa como o filho e sente como mãe, por isso não fala, fica em silêncio (Há momentos em que só o silêncio pode falar, a conversa torna-se em barulho de altifalantes pensantes ensurdecedores: um falar para não ouvir a voz do coração, o outro a falar em nós).

Não são homens que batem, são as fardas dos soldados que chicoteiam o inocente em nome da ordem e da instituição.

O encontro de Maria realiza-se, sem falas, de coração para coração numa troca de olhares porque a verdadeira vida não é experimentável no mundo das ideias e das palavras. No brilhar das lágrimas dolorosos que saem do encontro de seus olhos sai uma luz, uma experiência diferente da vida ordenada e secular. Naquele olhar brilha o dia de Páscoa, aquele Dia em que é sempre dia sem adormecer e em que a dor não estorva. No encontro verdadeiro não há palavras porque estas só distraem da profunda vivência que só é possível no encontro de rosto com rosto.

Para chegar à luz da experiência daquele encontro houve o caminho solitário no silêncio da dor que liberta; no mesmo caminho da fé se encontram mãe e filho na consciência de que o caminho da fé é diferente porque leva ao encontro que chega até a abstrair da razão para chegar a “compreender” numa vivência de que tudo se encontra unido e não separado. No momento do encontro a mãe percebeu a dureza das palavras que o filho lhe dissera quando a evitou (colocando a coisa de Deus acima das coisas familiares e lhe disse “não sabias que me devo ocupar das coisas de meu Pai?” Lc 2,49 s); naquela trocar de olhares de mãe e filho a mãe compreendeu novamente que o caminho de Deus não contempla a amarra de laços sanguíneos; no encontro Maria viu que seu filho sempre teve razão, porque empenhado na libertação das pessoas olhando cada uma de olhos nos olhos, não se podendo por isso deixar perder em nenhuma delas, por mais amável que fosse; no encontro de olhos nos olhos ateia-se um novo fogo, o fogo do amor que torna tudo presença. Naquele encontro se realiza a metanoia (para lá do pensamento) que exige um repensar da normalidade que nos prende e cativa; neste olhar se realiza a maternidade de uma mãe que se alegra nos crentes e incrédulos. No encontro dá-se uma fecundação que gera nova realidade.

  1. Simão de Cirene ajuda Jesus a levar a cruz

Os soldados têm pressa e colocam a cruz aos ombros de um homem de fora, um homem da margem que viu pela primeira vez Jesus. Um homem de fora, que se encontrava ali por curiosidade, ajuda Jesus a transportar a cruz (Lc 23,26). Que terá levado Simão a observar a via crucis de Jesus? Ele sentiu-se levado por aquela força que nos leva a assistir quem precisa no momento oportuno. Simão são muitos, são a multidão que ajuda de fora sem perceber o que realmente está a acontecer.

  1. Verónica chega a Jesus o sudário para limpar o rosto

A Verónica, numa reacção espontânea, limpou o suor do rosta de Jesus, como refere a legenda do séc. 12. Verónica aquela mulher já preparada pela vida para a encarar de rosto no rosto, desejava que as dores e o suor não escondessem o rosto do Senhor. Na visibilidade do verdadeiro rosto de Jesus que se marca no lenço encontra-se a intenção de mostrar que, no que acontece no calvário, se esconde um verdadeiro rosto que é vivo e vivificante; as pessoas não devem continuar do lado de cá da vida fixadas a ver as marcas do caminho.… Jesus tem um rosto que nos olha. Na sua cara cada um de nós tem a oportunidade de reconhecer e ganhar um rosto.

  1. Jesus cai pela segunda vez

Encontramo-nos num mudo levedado pelo poder dualista de fariseus e Herodes que vivem de súbditos e dependentes; sistemas democráticos ou não democráticos tendem em manter o povo a olhar de baixo para cima e à procura do pão. A Tora, a lei encontra sempre um motivo para colocar alguém debaixo da cruz.

Os amigos assistem ao acontecimento de longe. Não querem ser identificados como seguidores de um condenado. Não entenderam nada de Cristo, encontravam-se como que aturdidos sob as enxurradas de ideias que lhes passavam pela cabeça. As ideias substituem o sentir e a empatia com Jesus; de Jesus tinham ouvido muita coisa que lhes ficara na cabeça e nos lábios, mas não tinha passado da barreira do entendimento para o coração, para acção. Não entenderam nada, ficando a girar no intelecto como o hamster a pedalar no seu criceto.

  1. Jesus encontra as mulheres chorosas de Jerusalém

As mulheres choravam como se tratasse de um caso de luto. Jesus que bem percebia o engano das pessoas que o seguiam e que não entendiam realmente o que se estava a passar. Então Jesus vendo que mortos choram os mortos, quebrou o silêncio e disse: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai por vós e pelos vossos filhos!” Sim, Jesus previa aqui que muitos dos seus seguidores não entenderam que o que estava a acontecer era vida, e que apenas conseguiam ver o que se encontra sob as mortalhas (Lc 23,27-31); Jesus pressentia que as estruturas que ele criticara e revogara continuariam a subsistir sem que as pessoas tivessem um olhar de olhos nos olhos como o de Maria e Jesus, uma experiência vivência que eleva o Homem para Filho de Deus; elas entendiam muito de sentimentos, ideias, de leis e moral permanecendo prisioneiras delas sem assumirem a vida divina, a vida da cruz que cada filho de Deus é chamado a levar; não, os mortos são os que choram aquele que está bem vivo e aguenta com a dor sem a projectar em ninguém. Jesus via através das lágrimas aquilo que as motivava e ao constatar a comédia que a vida organiza não aguentou mais … e quebrou com o seu silêncio. As lágrimas não seriam em vão se no outro dia as pessoas fossem diferentes… Jesus quebrou o silêncio ante tanta falta de entendimento.

  1. Jesus cai pela terceira vez sob o peso da cruz

Se Jesus tivesse ficado na Galileia como muitos outros, como fazem aqueles que procuram o sucesso da vida, nada disto teria acontecido e o mundo continuaria na mesma, prisioneiro de ideias a viver ideais, longe da vida; se não tivesse levado tão a sério o seu Pai, se tivesse sido mais diplomático e hipócrita como todos nós, o sofrimento seria um pouco anestesiado pelo dia-a-dia. Em última análise Jesus é que foi o culpado por querer afirmar no mundo uma nova consciência de ser humano; uma consciência de homem livre e sem medo, liberta de opiniões e outras sujeições. Ele é culpado por ter ousado querer fazer de cada um de nós o caminho a verdade e a vida e não apenas expectadores e seguidores de seja quem for.

Jesus superou as medidas do bom pensar e do bom sentir. É abandonado dos homens bem-pensantes que se sentem obrigados a controlar e determinar o que é bom e o que é mau, o que é verdadeiro e falso. Sob a verdade destes homens sofre a Verdade que é vida e contacto directo com Deus. (Imaginem que alguém se distanciasse das escolas de ensino, das estruturas religiosas e políticas, das opiniões dominantes, seria deitado ao ostracismo tal como Jesus o foi. A malta quer é teatro para aplaudir ou condenar para seguir as práticas e as regras do jogo que se destinam a manter a hipocrisia, o domínio e as vaidades; imaginemo-nos que nos encontraríamos com Jesus de cara a cara de olhos nos olhos; isso não pode acontecer porque teríamos de nos tornar nus para não cairmos no equívoco de pensarmos que nos encontramos com o outro quando na realidade nos encontramos com a ideia que fazemos dele,  presos que andamos nos argumentos, do cálculo, da insensatez numa tática de vida a meias entre proveito e ânsia de vaidade,

Entendiam que Jesus deveria reagir à sua maneira, uma maneira dialética e polar do que é bom e mau pensar. De todos abandonado sem braços acolhedores, nem seio de mãe que o acolha fica entregue à liberdade dos braços de Deus. Dois criminosos a seu lado Lc 23,32

10. Jesus é despojado de suas vestes

Jesus confessa: “O Filho do Homem será entregue aos seres humanos”. Os discípulos não entendiam o significado daquelas palavras (Lc 9,44s).

Os soldados roubaram-lhe a roupa, mas embora ladrões, foram justos, à maneira mundana, no repartir entre eles a roupa (Jo 19,23-24). Roubaram-lhe a dignidade humana, a ética e agora fazem negócio com os seus restos.

11. Jesus foi pregado na cruz

No alto do monte, lá onde as ideias e as palavras se cruzam em sequências lógicas, Jesus é pregado na cruz e em nome da lei. Aquele Jesus queria levar tudo conscientemente até ao fim recusando mesmo o mórfico.

No contemplar da cruz, a inteligência e os sentimentos escurecem até à mudez. Jesus encontra-se sozinho e a sós com o Pai.” Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Sl 22,2).

 12. Jesus morre na cruz

Mais forte que a morte é o amor. Crucificaram-no “à terceira hora … e à hora nona (15h00) morreu” (Lc 15.44). Jesus não morreu para apaziguar o medo daqueles que têm medo de Deus… Jesus morreu como viveu, dando testemunho do Homem livre e comprometido com o Homem, perdoando sempre (Lc.23,34). “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46).

 13. Jesus é descido da cruz

Jesus morre abandonado dos seus e um estranho vem descê-lo da cruz. Já antes um samaritano (Lk 10,30-37), um estrangeiro cuida do homem roubado, não o padre, nem o doutor da lei. José de Arimateia- um homem honrado que esperava pela vida do messias, cheio de compaixão arranjou um lugar para colocar o corpo de Jesus, doutro modo teria sido colocado na vala comum dos crucificados… José tirou-o da cruz e envolveu-o num manto (Mk 15,42 – 46). Em torno da morte de Jesus também havia justos como este José (Lc 23,51).

 14. O Corpo de Jesus é colocado no sepulcro

Deus não é um Deus dos mortos mas dos vivos (Mc.12,26s), por isso tem de ser procurado entre os vivos. A José junta-se Nicodemos que trouxe mirra e aloés para ungir o Senhor. Depois o sepulcro encontra-se vazio; Jesus adiantou-se, “o túmulo se esvaziará tal como o meu, um dia, se esvaziará”!

 15. Deus despertou Jesus!

Teresa de Lisieux dizia, “não olheis para a cruz! Olhai para o crucificado!” Nele Deus continua a história de cada um de nós. Não procureis entre os mortos quem vive, Ele ressuscitou. O nosso Deus não é um Deus do destino, ele é um Deus da relação, um Deus que se trata com denominativos como: paizinho, mãezinha… Se Jesus tivesse morrido a revolução não teria sentido porque permaneceria abandonada à violência em sequências de ritos e rituais repetitivos através da História. Assim permanece um paradigma da vida e de relação de pessoas, da humanidade que é uma família divina a querer encontrar-se e a erguer-se para se encontrar de olhos nos olhos.

Nas sombras das asas do Senhor (PS 63,1-9), nas sombras do seu caminho minha alma se refresca da sede que tem de ti!

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e pedagogo

Pegadas do Tempo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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