Juízes no papel de maus pais

Um Dia Negro para o Supremo Tribunal da Justiça

Uma educadora acusada de maltratar menores deficientes com palmadas nas crianças e de as fechar em quartos escuros quando se recusavam a comer, foi absolvida pelo Supremo Tribunal da Justiça em Portugal. A decisão do tribunal é questionável. O fundamento da decisão é vergonhoso e anacrónico. O tribunal parece partir do equívoco de que poder, força é igual a direito, justiça
O tribunal abusa do direito ao recorrer a uma generalização ofensiva para muitos pais portugueses para justificarem a sua decisão, com como se vivêssemos numa sociedade repressiva, no Portugal do século XIX. O Supremo Tribunal ao legitimar castigos corporais com argumentos pedagógicos duma “ pedagogia negra” esquece o direito à dignidade da pessoa humana, ignora a psicologia da criança e não tem em conta a sua honra.
O acórdão do Supremo tribunal vai longe demais ao afirmar: “Qual é o bom pai de família que, por uma ou duas vezes, não dá palmadas no rabo dum filho que se recusa a ir para a escola, que não dá uma bofetada a um filho…ou que não manda um filho de castigo para o quarto quando ele não quer comer?” O Supremo perdeu uma boa ocasião para estar calado. Não se trata aqui de se defender uma pedagogia repressiva ou permissiva. Aqui estarão em questão o ânimo leve com que se argumenta, uma mentalidade problemática, a falta de informação de profissionais que nas suas decisões deveriam recorrer ao parecer de peritos.
Bater é grave. Bater no rabo pode conduzir a fixações sexuais ou levar a crónicas tensões musculares e mais tarde a sofrimento de dores nas cruzes e a perturbações sexuais. O rabo está em relação com o sexo. A reacção de contracção do rabo por medo tem consequências psicossomáticas.
A decisão está na linha de comportamento do bater porque tem que ser sem considerar as más consequências que daí advêm.
Uma criança, e mais ainda, uma criança deficiente mental não vê a conexão entre o seu agir e o castigo. Pais e educadores que se vejam na necessidade de castigar deveriam primeiro reflectir se essa necessidade lhes vem da raiva, da vingança ou da fraqueza. A maior parte das vezes actuam sob o sentimento da raiva ou da vingança. Os castigos têm um valor muito limitado porque a crianças não reagem por compreensão mas por medo. Uma criança em situação de castigo não reflecte, apenas reage emotivamente e sente o sentimento do castigador. Por isso o castigo não pode actuar adequadamente. Em vez de se castigar deve-se levar a criança a sofrer as consequências do seu agir. Quem se recusa a comer não deve tomar alimento até à próxima refeição.
O castigo fomenta o medo e até a teimosia e pode reforçar a atitude porque a criança através do castigo cria uma relação com o educador. O educador, ausente e ignorador do outro, passa assim a estar presente embora de forma negativa. A dedicação negativa é melhor que nenhuma dedicação.
Certamente que já observaram a cena em que amigos ou familiares adultos se divertem e conversam à mesa esquecendo-se das crianças ao lado. De repente uma criança deixa cair um copo sem querer. Os adultos reagem mal, criticando ou compreendendo. Esta acção inconsciente da criança pretende castigar a atitude dos adultos que a ignoraram. Estes porém, em vez de compreenderem a intenção que está por baixo daquela acção, reagem só emotivamente ao castigo sem compreenderem a mensagem que estava naquela acção. Tal como o copo que caiu sem intenção também o comportamento indesejado, por exemplo, mentir roubar, fazer xixi na cama, agressividade, etc. tem sempre motivos inconscientes. A atitude das crianças que actuam inadaptadamente têm um sentido mais profundo e por isso o castigo é, em princípio, inconveniente. Castigos são de uma maneira geral desresoponsabilizadores para as duas partes. Em vez de proporcionarem um relacionamento pessoal e de levarem ao auto-domínio fomentam o distanciamento e a superficialidade. Ninguém se leva a sério. Isto tem consequências catastróficas para a nossa vida social. Não se age, apenas se reage! O mais forte leva o outro apenas a calar mas depois de ter perdido a razão. Passou-se a uma relação de objecto-objecto, contra qualquer identificação. Da situação surge apenas a experiência de que força e direito se identificam. O verdadeiro educador prescinde da força. Esta despersonaliza e provoca agressividade ou hipocrisia ou uma sociedade de adaptados de potencialidades criativas apagadas. O mau educador reage ao acto mas não à verdade que está por trás desse mesmo acto. A criança sente-se abandonada e incorrespondida. Educador e educando assumem os papéis de objectos que não os de sujeitos. Segue-se uma cadeia de reacções despersonalizadoras. As crianças refugiam-se no seu cativeiro da imaginação, da solidão…e reagem segundo a sua personalidade e a sua relação com os interlocutores. O amor e a estima, fundamento de toda a educação são ignorados. O amor e a admiração adquirem-se por identificação e não por castigo. Dão-se por internalização e imitação das atitudes e dos valores do outro, compreensão.
O infractor procura atenção que só pode ser mantida no diálogo. Uma educação adequada pressupõe uma consciência forjada não no medo mas na confiança, na autodisciplina e na própria dignidade. O educador tem de partir do princípio de que o educando actuou como actuou porque pensava agir bem. Há imensas razões para agir assim. Talvez tenha sido levado mais por um sentimento do que por uma razão esclarecida. Para fomentarmos a voz da consciência na criança temos que seguir as pegadas ténues da razão e esta acontece longe de qualquer afectividade e na resistência à cólera própria que turva a nossa capacidade de juízo. Esta forma-se sem moralismos, sem sermões nem exigências inoportunas e fora do lugar e do tempo, no distanciamento aos próprios medos e receios em relação às potencialidades futuras. A cólera do educador e o medo do educando embora irmanados no mesmo equívoco desencaminham e não reagem a argumentos. Para a criança chega-lhe o peso do presente não estando aberto ao futuro; o educador sucumbe ao peso do futuro não compreendendo o presente.
O educando procura muitas vezes o castigo inconscientemente por sentir que os educadores não o amam suficientemente. Para educadores a pena serve para descarga da cólera, de sentimentos negativos e de sentimentos de culpa e de frustrações. O castigo desobriga o infractor conduzindo ao equilíbrio entre pais e filhos, entre educadores e educandos. O medo do castigo evita e reprime o sentimento de culpa e os remorsos de consciência, os verdadeiros meios de escaramento. Por um lado o castigo liberta ou cria reconciliação por outro lado faz parte dos actos convencionais que levam as pessoas a não se levarem a sério e a estabelecerem um relacionamento impessoal (embora de carácter emocional positivo ou negativo).
O exemplo de vida dado pelos familiares ou educadores e a confiança neles são fundamentais para a determinação da educação. O educando sabe que o grau de amor dos educadores depende também do seu comportamento e de desenganos. A criança não quer renunciar ao amor pondo-se na disposição de mudar. O distanciamento corporal temporário dum educador dá tempo para reflectir e tem grande efeito no educando. Aqui os pais não castigam mas sentem amorosamente. A privação (pouco tempo) momentânea de amor (distanciamento local da pessoa para que as duas partes dominem os seus sentimentos negativos) é extremamente efectiva porque se realiza na manifestação de sentimentos feridos. Aqui a criança recorda a nível inconsciente o medo da separação dos pais no período de aleitação movendo nela mecanismos compensatórios e reacções gratificantes. Cada um, educando e educador é um ser condicionado às necessidades interiores e inconscientes. Muitas vezes os educandos pagam a factura de incapacidades, insatisfações e fracassos da vida.
Louvor, como manifestação de amor e simpatia em combinação com a privação momentânea de amor são os melhores meios de educação e tornam o castigo supérfluo. Aqui funciona a relação pessoal de Eu-Tu-Nós e não a de pseudosujeito-objecto. Todos nós somos mendigos de amor e alérgicos à crítica e ao castigo. O amor cria proximidade corporal e afectiva.
A falta de objectividade e de distância emocional e talvez a falta de pessoal e de formação profissional serão motivos para desculpar a educadora em causa. A compreensão duma situação não pode porém acontecer à custa da outra.
Neste julgamento do Supremo Tribunal tenho a impressão que os juízes se comportaram como bons pais para com a educadora e argumentaram emocionalmente em desfavor da criança tal como fazem maus pais.
Ama verdadeiramente e então podes fazer o que quiseres!

António da Cunha Duarte Justo
Pedagogo e teólogo

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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