O JARDINEIRO E AS PLANTAS COM ESPINHOS

O Irmão Mateus subiu a colina sob um céu de chumbo; sentia o seu coração mais pesado do que os sapatos enlameados. Cada passo era um eco das dores que o traziam à cela do Abade Tomás, um homem cuja idade parecia ter-se fundido com as próprias paredes do mosteiro, tornando-o numa figura serena e inabalável.

Ao entrar, o aroma a cera e a ervas secas acalmaram-lhe o espírito, mas não apagaram a amargura. O Abade, sentado num banco rústico, entalhava uma pequena ave num pedaço de madeira. Nem precisou de olhar para o jovem.

“Mateus, os teus passos hoje não trazem a leveza de quem vem buscar paz, mas o peso de quem carrega ferrugem”, disse de voz suave como o vento nos ciprestes.

Mateus desfiou a sua ladainha de desilusões: o irmão que o humilhara em público, o amigo da aldeia que tecera mentiras sobre ele, a confiança traída por alguém a quem dedicara anos de lealdade. “Padre, como posso perdoar? Como posso encontrar Deus nestas ações tão vis?”

O Abade pousou a ave de madeira e apontou para a janela, que dava para o horto. “Vem, olha para o jardim do mosteiro. Vês aquele roseiral?”

“Vejo, Padre. Está cheio de rosas magníficas.”

“E vês aquele cardo, ali ao lado, espinhoso e agreste?”

“Vejo. É uma praga. Deveria ser arrancado.”

“Talvez”, segredou o Abade. “Mas olha mais de perto. Ambos crescem no mesmo solo. A rosa, para florescer, precisa de sol e de água boa. O cardo, porém, cresce onde a terra é pobre, seca e pedregosa. Os seus espinhos não são maldade intrínseca; são a sua linguagem de sobrevivência. É a forma que a natureza encontrou para ele dizer: ‘Estou a sofrer’. Quem anda descalço e é espetado por ele tem uma dor real e legítima. Mas a culpa não é apenas do espinho; é da terra árida que o criou.”

O Abade virou-se para Mateus, de olhos profundos como lagos de montanha. “Compreender que quem te espezinha pode esconder uma dor própria, não torna a tua ferida menor. A compaixão é ver o cardo na pessoa, mas a sabedoria é calçar as sandálias para não te magoares.”

Mateus ficou em silêncio, ponderando. “E a mentira, Padre? Como pode a mentira ter uma causa que não a malícia?”

O Abade levou-o até à fonte no centro do claustro. “Vês esta água? É clara e reflecte a verdade do céu. Mas experimenta atirar uma pedra ao charco. A água turva-se, o lodo do fundo sobe e a imagem desfaz-se. Quem mente, meu filho, muitas vezes tem a sua fonte interior turva por medo ou por um vazio tão grande que teme que os outros vejam o fundo seco. A mentira é a agitação que tenta esconder a falta de água pura.”

“Compreender que a mentira pode ser um grito de um vazio interior, não significa que devas beber da água enlameada. A tua tarefa é compreender a sede do mentiroso, mas construir a tua casa junto da fonte da honestidade.”

“E a traição?”, insistiu Mateus, com a voz mais contida. “Essa é a ferida que mais sangra.”

O Abade conduziu-o até à muralha do mosteiro. “Este muro protege-nos dos ventos gélidos e dos invasores. Foi construído pedra sobre pedra, com confiança. Se uma pedra for mal assentada ou se soltar, todo o muro fica vulnerável. Quem trai é como essa pedra solta. Muitas vezes, não é por desejar a queda do muro, mas porque ela própria está rachada por uma solidão profunda, incapaz de suportar o peso da confiança.”

“Ter empatia pela solidão do traidor não te obriga a reconstruir o muro com a mesma pedra quebrada. Perdoar é reconhecer a falha na pedra; seguir em frente é escolher pedras sólidas para a tua própria fortaleza.”

O jovem monge respirou fundo. As alegorias do Abade começavam a clarear a sua mente. “E o escárnio? O desrespeito?”

“Ah”, o Abade sorriu tristemente. “Isso é o fumo, não o fogo. Quem escarnece de ti está a apontar para um espelho quebrado que carrega dentro de si. O desrespeito é o cheiro da miséria interna a queimar. Tu podes reconhecer o incêndio na alma do outro sem teres de te deixar consumir pelas chamas. A auto-compaixão é a manta corta-fogo da alma.”

“E a inveja?”

“A inveja é o sinal mais claro de frustração. É um homem a morrer de sede a observar outro a beber de um poço que julga ser seu por direito. Entender a sede do invejoso não significa que lhe entregues o teu cântaro, pois ele não o quer para matar a sede, mas para o partir.”

Mateus olhou novamente para o jardim. Já não via um cardo a ser arrancado, mas uma planta a clamar por melhor solo. Já não via um inimigo no mentiroso, mas um sedento. Já não via um traidor, mas uma pedra solta.

“Padre”, disse ele, de voz já mais leve. “Então, o caminho não é ignorar a dor que me causam, mas também não é deixar que ela defina o meu terreno.”

“Exatamente, meu filho”, concluiu o Abade, voltando à sua ave de madeira. “Entre a compreensão infinita e a autoproteção necessária, há um equilíbrio: o de ser terra fértil para os que buscam cura, mas ser também jardineiro sábio, que sabe podar os galhos doentes para que todo o jardim não pereça. Na vida mística, encontramos o outro não na conivência com a sua sombra, mas na coragem de lhe mostrar, com os nossos próprios limites, onde começa a luz.”

E pela janela, um raio de sol furou as nuvens, iluminando tanto as rosas como o cardo, sem fazer distinção (1).

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Em homenagem ao mestre de noviços salesiano, o Pe. Magni, no meu noviciado em Manique do Estoril

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ÁFRICA A CONTAS

Já se passaram sessenta anos na promessa solar,

mas a fome permanece fiel, constante a bailar.

A liberdade, dama nobre de fraque elegante,

vende o seu por parcelas, em prestações picantes.

 

Surgem doutores do mundo com gráficos na mão,

com juros, receitas e sábia lição.

“Ajuste estrutural!”  que palavra sonora,

corta raízes, a cultura já chora.

 

Espetáculo de cetim, algoritmos em dança,

povos viram figurantes numa falsa esperança.

A soberania, boneca delicada e frágil,

dança conforme a batuta, submissa e dócil.

 

“Para o vosso bem!” Assim soa, suave e claro,

“este neoliberalismo é vosso altar mais caro.”

Ah, mais pesado que o jugo colonial antigo,

pois lá restava um ser, aqui só inimigo.

 

Reina o capital, global e sublime senhor,

escavadora que enterra almas sem pudor.

Apaga identidade, esmaga todo canto,

em nome do “progresso”, vazio como pranto.

 

Não queremos crédito cego e tão pesado,

nem desenvolvimento em modelo copiado.

Queremos germinar da própria razão,

política que nasça da terra, sã tradição.

 

Como a Europa, outrora devastada e em guerra,

encontrou renovação em sua própria terra.

Mas África, dizem, não deve ousar tal coisa,

seu futuro é ser apêndice, eterna lousa.

 

Ó senhores do FMI, príncipes do banco,

vossa ajuda é corda embrulhada em papel branco.

Guardai planos, a magia fria e vazia,

deixai África criar seu próprio novo dia.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo, Arte crítica

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O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS 

(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, ao ser confrontado em férias com o triste latir dos cães)

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pêlo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu:

«Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras.

«É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor:

«Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu:

«Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite.

«Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
https://poesiajusto.blogspot.com/2025/09/o-concerto-dos-caes-acorrentados.html

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A RESSONÂNCIA DO “OBRIGADO”

O outono pintava de ocre e carmesim os jardins do antigo sanatório, agora convertido em residencial para seniores. O Dr. Eduardo Almeida, neurologista aposentado, observava a paisagem da varanda do seu quarto. O seu mundo, outrora palco de diagnósticos certeiros e intervenções precisas, reduzia-se agora àquele espaço e àquela vista. Um frio interior, um “cortisol” da alma, como ele próprio, irónico, definia, mantinha-o num estado perpétuo de luta surda contra a irrelevância. A sua mente, treinada para o cepticismo científico, via a vida como uma sucessão de reações bioquímicas, onde conceitos como “gratidão” lhe pareciam placebos para mentes fracas.

A sua rotina era solitária. Até que, numa tarde, um novo habitante chegou à residencial. Apresentou-se como António. Trazia consigo uma serenidade palpável, uma luz nos olhos que contrastava com a penumbra do lugar. António fora educado num mosteiro na sua juventude, e trazia consigo hábitos antigos.

Todas as noites, pontualmente às nove, António parava à porta do Dr. Almeida. Não impunha a sua presença, mas simplesmente ali ficava, com um sorriso tranquilo.
– Boa noite, Doutor – dizia ele, com uma voz que era uma carícia.
O Dr. Almeida limitava-se a anuir com a cabeça, num gesto seco. Mas António insistia, gentilmente.
– Hoje, o sol entrou pela minha janela e aqueceu o chão. Fui grato por esse momento de graça. E o Doutor, teve algum instante pelo qual se sinta agradecido?

Eduardo revirava os olhos. “Instantes de graça?”, pensava. “A única coisa pela qual poderia ser grato é que a minha artrose não doeu tanto hoje.” Mas a persistência serena de António começou a criar uma fenda na sua armadura. Ele lembrava-se do texto que lera sobre gratidão, daquelas ideias que considerara “pensamento positivo”. No entanto, algo no tom de António ecoava aquelas palavras: “a energia da gratidão dá saúde e amplia os nossos próprios horizontes”.

Uma semana depois, num dia particularmente cinzento, o Dr. Almeida, movido por um impulso que não conseguiu decifrar, murmurou em resposta:
– Bom, a sopa… a sopa estava quente. – Soou ridículo aos seus próprios ouvidos.
O rosto de António, porém, iluminou-se.
– Que belo motivo! O calor que nutre o corpo e a alma. Boa noite, Doutor. Durma em paz e grato.

Naquela noite, pela primeira vez em anos, Eduardo adormeceu sem a habitual ruminação de pensamentos negativos. A simples admissão de um pequeno conforto, por mais ínfimo que fosse, operara uma magia subtil. Era como se uma serotonina espiritual, daquelas de que falava Emmons, lhe tivesse sido ministrada.

Os dias transformaram-se. A prática do “Boa Noite” tornou-se um ritual. Eduardo começou a procurar, conscientemente, motivos de agradecimento: o canto de um pássaro, a memória remota de um caso médico bem-sucedido, a gentileza de uma enfermeira. A sua “antena” interior, até então sintonizada na frequência estática do desdém, começou a captar os “sinais electromagnéticos e espirituais” de beleza à sua volta. A sua perceção da realidade alterava-se, reescrevendo, como sugeria o texto, uma memória ancestral que sempre o inclinara para o pessimismo.

O clímax desta transformação deu-se numa manhã de Natal. O salão comum estava decorado, mas o ambiente era da melancólica obrigatoriedade. O Dr. Almeida, sentado num canto, observava os outros residentes, muitos deles mergulhados no seu isolamento. Então, viu António. Com a mesma serenidade de sempre, António aproximava-se de cada um, não para oferecer um presente material, mas para lhes sussurrar algo ao ouvido. Em cada pessoa que ouvia aquelas palavras, observava-se uma mudança: os ombros relaxavam, um sorriso tímido brotava, os olhos marejavam. A gratidão tornava-se presente como uma lua que ilumina o caminho na noite.

Intrigado, Eduardo esperou que António se aproximasse.
– O que estás a dizer-lhes? – perguntou, em voz baixa.
António fitou-o, e os seus olhos pareciam conter a luz de todas as estrelas da noite de Natal.
– Estou apenas a agradecer-lhes.
– Agradecer? O quê? Mal os conheces!
– Agradeço-lhes simplesmente por existirem. Por fazerem parte deste todo. Por estarem aqui e me permitirem partilhar este espaço e este momento com eles. É o meu exercício do “Dia da Boa Morte” (1): agradecer a vida que nos é dada, hoje, agora, intensamente.

António pousou a mão no ombro de Eduardo.
– E a si, Doutor, quero agradecer profundamente.
Eduardo ficou estupefacto. Surpreendido por ter sido agradecido. Ele, que se considerava um fardo, um homem amargo no outono da vida.
– A mim? Pelo quê, pelo amor de Deus?

António sorriu, num gesto de pura e simples fraternidade.
– Por me ter ouvido. Por ter aceitado o meu “Boa Noite”. Por ter permitido que eu praticasse a minha gratidão consigo. A gratidão, para ser completa, precisa de ser partilhada. Precisa de um outro para quem se direcionar. Você, ao aceitar o meu agradecimento, tornou-o real. Foi o recipiente que permitiu que a minha gratidão se manifestasse no mundo. Por isso, sinto-me em dívida consigo. Obrigare (2). Sinto-me ligado a si.

O Dr. Almeida não conseguiu conter as lágrimas. Compreendeu, naquele instante, a dimensão espiritual daquela virtude. Não era uma mera transação de favores; era uma força de ligação, uma ressonância do amor que unia as almas. Ele não era um mero recebedor, mas um elemento vital no circuito da graça. A gratidão de António não o colocava numa posição inferior, mas elevava-os a ambos, criando um laço de fraternização inexplicável.

Naquela noite, o Dr. Eduardo Almeida foi quem procurou António. Parou à sua porta, e com uma voz embargada, mas firme, disse:
– António, boa noite. Hoje… hoje sou grato por ti. Sou grato por teres surpreendido esta alma velha e céptica com o teu “obrigado”. Iluminaste a minha noite.

E, sob a luz prateada da lua, que como uma lâmpada divina clareava as sombras da dúvida, os dois homens trocaram um olhar. Não havia juízo, não havia análise, não havia bem nem mal. Havia apenas, tal como o texto previra, a calorosa, luminosa e amorosa ressonância energética que tudo inundava. Eram, finalmente, gratos e portanto, finalmente, felizes, por lhes ser dada a graça do reconhecimento de interdependência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Alusão ao hábito que tínhamos nos Salesianos de uma vez por mês fazermos o “Exercício da Boa Morte”. O “Dia da Boa Morte” refere-se ao “Exercício da Boa Morte”, uma prática espiritual mensal introduzida por São João Bosco para preparar a comunidade e cada um para o encontro com Deus no momento da morte.  Isto incentivava a revisão da vida através do exame de consciência, a organização pessoal de modo a deixar o nosso interior e exterior em ordem.

(2) A palavra “obrigado” deriva do latim obligatus, particípio do verbo obligare, que significa “ligar”, “atar” ou “ficar preso por uma obrigação”. A palavra dirigida uma pessoa que é com que um comutador que liga, “estar ligado”

Gratidão além de virtude é um remédio eficaz: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/gratidao-alem-de-virtude-e-um-remedio-eficaz

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O QUE NÃO SE FALA NÃO EXISTE!

Pois é, meus caros, que bela notícia!

Afinal de contas, a injustiça e a pobreza já são problemas ultrapassados, resolvemos não falar mais deles, e, como bem se sabe, o que não se fala não existe.

Agora, o verdadeiro progresso está em rearmar a Europa! Que alívio saber que os 800 mil milhões de euros que a UE planeia gastar em defesa nos próximos anos vão certamente tornar-nos todos mais seguros… principalmente contra a ameaça terrível de idosos sobreviverem com 250 euros por mês ou pensionistas portugueses que ousam receber pensões de até 500 euros. Em Portugal em 2024 havia 1,4 milhões de pensionistas que  recebiam uma pensão de velhice de até 500 euros, o que representava quase metade dos pensionistas da Segurança Social.

É claro que faz todo o sentido que Portugal gaste 6.256 milhões de euros em defesa até 2029, afinal, quem precisa de reformas decentes, serviços públicos que funcionem ou apoio social quando podemos ter mísseis mais modernos e tanques reluzentes?

O importante é manter as prioridades em ordem: primeiro, enchemos os arsenais; depois, talvez, se sobrar algum trocado, lembramos que há pessoas a viver na miséria.

Mas calma, não sejamos dramáticos! Afinal, o que é a pobreza perante a grandiosa estratégia geopolítica europeia?

Sigam em frente e não se esqueçam de apertar o cinto… mas só até 2029. Em compensação, sentimo-nos bem-comportados e esforçados em cumprir as estratégias de Trump em relação à NATO! Isso dá mais honra e lustro aos nossos engravatados quando se passeiam em Bruxelas!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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