A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa na Construção da Paz

Quando a Consciência se torna o último Bastião da Liberdade

Vivemos numa época de paradoxos desconcertantes. Nunca se falou tanto de democracia, inclusão e direitos humanos e contudo, nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas, munidas de tecnologias de persuasão cada vez mais sofisticadas, descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, direcionar emoções, fabricar consensos. A liberdade exterior pode subsistir enquanto a interior se dissolve, quase sem resistência, nas ondas algorítmicas e mediáticas que nos dizem o que pensar antes mesmo de o pensarmos.

É neste contexto que se impõe uma reflexão urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, ao contrato social, à identidade coletiva, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta? Ou estamos condenados a assistir ao eterno confronto entre o público e o privado, entre o Estado e a alma, entre a multidão e o silêncio?

A Sedução Silenciosa do Poder Democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

Esta mutação do poder democrático em pedagogia obrigatória do pensar tornou-se particularmente evidente nos últimos anos. A pandemia de COVID-19 funcionou como um catalisador, revelando até que ponto os Estados contemporâneos estão dispostos a penetrar no santuário da consciência. Não se tratou apenas de impor medidas sanitárias, legítimas ou não, mas de exigir uma adesão emocional, moral, quase religiosa a narrativas oficiais, sob pena de exclusão social, estigmatização pública ou censura.

A filosofia antiga já conhecia este perigo. Platão, na sua “República”, sonhou com um Estado onde os guardiões seriam educados através de mitos cuidadosamente selecionados para moldar as suas almas. Mas foi precisamente contra essa tentação que se ergueram os grandes defensores da consciência individual, de Sócrates a Agostinho, Kant, etc (1). A verdadeira liberdade, insistiram, não está na possibilidade de escolher entre opções pré-determinadas, mas na capacidade de discernir, no silêncio da interioridade, o que é verdadeiro e o que é justo, mesmo quando todo o mundo diz o contrário. O despertar da consciência individual leva ao processo de ampliar a percepção sobre si mesmo, sobre a vida e sobre a realidade.

O Santuário interior: Onde nenhum Poder pode entrar

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser.” Esta definição do Concílio Vaticano II não é apenas uma formulação teológica; é uma declaração de independência antropológica. Há em cada pessoa um espaço inviolável, uma cidadela interior onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar, nenhuma propaganda pode semear.

É precisamente aqui que a fé pessoal se distingue radicalmente da fé civil. A fé civil, por mais nobre que seja, permanece ligada à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo, aos consensos temporários. Ela pertence ao domínio do que Hegel chamava “espírito objetivo”: as instituições, as leis, os costumes partilhados. Mas a fé pessoal, a consciência iluminada, pertence a outra ordem: a do “espírito absoluto”, que transcende as circunstâncias e se enraíza numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Pelo contrário, uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir a coesão, a solidariedade, o sentido de pertença; mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando a maioria se torna multidão, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia e a Visão que resiste

Não é por acaso que a tradição cristã celebra, nesta época do Advento, Santa Luzia, (2) a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio, mais do que um facto histórico distante, funciona como parábola permanente da condição humana. A verdadeira cegueira, ensina-nos Luzia, não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria, por medo ou sedução, consinta em extingui-la.

Esta metáfora da luz interior atravessa toda a história da espiritualidade humana. Das cavernas platónicas ao “lumen naturale” de Descartes, da “luz interior” dos quakers à “chama da consciência” de que fala Martin Luther King, a humanidade sempre soube, intuitivamente, que há uma luminosidade própria da pessoa que nenhum poder exterior pode fabricar ou confiscar. É esta luz que permite a Gandhi jejuar até que um império se dobra, a Mandela sobreviver décadas de prisão sem perder a dignidade e a Dietrich Bonhoeffer escrever, da sua cela nazi, que “não são as experiências boas ou más que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências”.

A Ilusão da Bolha e o Perigo das Indignações fabricadas

Vivemos tempos em que as multidões se formam e dissolvem com uma velocidade vertiginosa. As redes sociais criaram o que poderíamos chamar “comunidades de indignação instantânea”: grupos de pessoas que se agregam em torno de uma causa, de uma revolta, de uma denúncia, mas que, muitas vezes, não partilham verdadeira reflexão, apenas reflexos emocionais sincronizados.

Esta dinâmica é profundamente perigosa para a consciência. Quando a comoção pública substitui o discernimento pessoal, quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento. E instrumentos, mesmo quando acreditam lutar pela justiça, podem ser facilmente manipulados por interesses obscuros e partidários que nada têm a ver com o bem comum.

A filosofia política clássica sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes, capazes de deliberação racional; a multidão é um agregado emocional, movido por impulsos, facilmente manipulável. Nas democracias contemporâneas, assistimos frequentemente à transformação do povo em multidão; isto acontece não pela força, mas pela saturação emocional, pela sobrecarga informativa, pela polarização artificial de debates.

É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz. Quem possui uma bússola interior, orientada por princípios que transcendem as flutuações da opinião pública, não se deixa arrastar pelas correntes. Não se trata de recusar o diálogo com a sociedade, mas de entrar nesse diálogo como pessoa íntegra, não como eco das últimas tendências.

Fé Civil e Fé Religiosa devem ser dois Polos complementares não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas, sejam elas laicas ou religiosas, foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência. Os jacobinos quiseram eliminar Deus para instaurar a religião da Razão; os fundamentalistas querem eliminar o Estado laico para instaurar teocracias. Ambos partem do mesmo pressuposto falso: que só pode haver uma fonte de autoridade moral, um único horizonte de sentido.

A verdade é mais subtil e mais fecunda. A fé civil e a fé religiosa não são adversárias, mas complementares, desde que cada uma reconheça os seus próprios limites e respeite o espaço da outra. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum, o mínimo ético partilhável; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo e no materialismo.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante, onde tudo se reduz ao cálculo de utilidades e às estatísticas de maiorias. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, caritas concreta.

O desenvolvimento humano autêntico, não o mero crescimento económico ou tecnológico, mas o amadurecimento integral das pessoas e das sociedades,  exige esta dialética permanente: o reconhecimento dos erros para os superar, a humildade para aprender com as múltiplas tradições de sabedoria, a coragem para não absolutizar nenhuma forma histórica de organização social.

A Função da Palavra: Despertar

Há uma tentação, particularmente forte em épocas de polarização, de usar a palavra como arma de persuasão, como instrumento de convencimento, quase como forma de dominação intelectual. Escreve-se para provar que se tem razão, para derrotar o adversário, para conquistar adeptos.

Mas existe outra forma de escrever e de ler: aquela que serve não para convencer, mas para despertar. Não para impor verdades prontas, mas para acender interrogações fecundas. Não para fechar debates, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

Esta escrita, poderíamos chamá-la “escrita socrática”, não oferece sistemas completos nem respostas definitivas. Ela propõe, sugere, interroga, convida. Confia na capacidade de cada leitor de descobrir, no silêncio da sua própria interioridade, a luz que já lá estava, à espera de ser reconhecida.

É por isto que a verdadeira cultura de paz não se constrói através de doutrinação, mas através de educação no sentido mais profundo: “educare”, conduzir para fora, ajudar a pessoa a emergir da caverna das opiniões legadas, dos preconceitos não examinados, das certezas fabricadas. Uma cultura de paz pressupõe cidadãos interiormente livres, capazes de pensar por si mesmos, de resistir às manipulações, de discernir entre verdade e propaganda.

Pressupostos para uma Cultura de Paz

Se quisermos genuinamente construir uma cultura de paz, precisamos de começar por reconhecer algumas verdades desconfortáveis:

Primeiro: A paz não é ausência de conflito, mas capacidade de gerir conflitos sem violência. Isto exige pessoas com maturidade interior, capazes de suportar a tensão da divergência sem precisar de aniquilar o outro.

Segundo: Não pode haver paz duradoura sem justiça, e não pode haver justiça sem verdade. Mas a verdade não é fabricável por consenso ou decreto; ela exige uma busca honesta, humilde, permanente, que respeite a dignidade da consciência individual.

Terceiro: Uma sociedade verdadeiramente pacífica não é aquela onde todos pensam o mesmo, mas aquela onde diferentes visões do bem podem coexistir, desde que partilhem um compromisso comum com o respeito pela dignidade humana e pela liberdade de consciência.

Quarto: A cultura de paz requer o cultivo da vida interior. Sociedades compostas por pessoas esvaziadas interiormente, reduzidas a consumidores e espectadores, são manipuláveis e, portanto, potencialmente violentas. A paz verdadeira nasce de pessoas que possuem um centro, uma bússola, uma luz própria.

Quinto: É preciso reabilitar o silêncio. Numa cultura saturada de ruído, onde a informação corre mais depressa do que a capacidade de a processar, o silêncio não é vazio mas plenitude, é o espaço onde a consciência pode finalmente ouvir-se a si própria e, ouvindo-se, discernir.

O Advento interior é sempre que a Humanidade espera a Luz

O Advento cristão, esse tempo de espera e preparação antes do Natal, funciona como metáfora de uma condição humana permanente: somos seres que aguardam a luz, que anseiam por ela, que não se resignam à escuridão. Mas esta luz que esperamos não vem apenas de fora, como presente caído do céu; ela também precisa de ser cultivada dentro de nós, como chama que se protege do vento.

Santa Luzia, no seu testemunho, ensina-nos que a verdadeira iluminação não é passiva. Não basta aguardar que alguém nos ilumine; é preciso decidir, ativamente, manter acesa a luz interior, mesmo quando tudo conspira para a apagar. Esta decisão,  ética, espiritual, existencial, é o ato fundador da liberdade humana.

Numa época em que tantas forças querem retirar às pessoas a fé e a liberdade interior para melhor as dominar, é preciso lembrar uma verdade antiga mas sempre nova: a fé autêntica, aquela que nasce da luz interior e não da imposição exterior, é a força mais revolucionária que existe. Ela rompe com a injustiça não através de violência, mas através da recusa silenciosa, mas firme de colaborar com a mentira. Ela transforma sociedades não através de decretos, mas através do testemunho de vidas íntegras que, sem alarde, mostram que é possível viver de outro modo.

Conclusão: A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação, todas elas são preciosas e devem ser defendidas. Mas há uma liberdade mais fundamental, da qual todas as outras dependem: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, confronto honesto com as próprias contradições, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro).

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, da fé pessoal autêntica, da interioridade cultivada é, no fim de contas, a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas, por mais sofisticadas que sejam as formas de dominação que o futuro nos reserve. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez seja este, afinal, o sentido mais profundo de escrever e ler: não para encerrar o pensamento em fórmulas definitivas, mas para manter acesa, geração após geração, a chama que impede a consciência de adormecer. Porque enquanto houver quem leia, quem pense, quem se recuse a entregar a sua luz interior, haverá resistência contra toda a forma de opressão, e haverá esperança de que a paz, não como silêncio imposto, mas como harmonia livremente construída, seja possível.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Há várias encíclicas em que a consciência é  tema central como em “Veritatis Splendor” (João Paulo II, 1993), que discute a lei moral e a formação da consciência, e a encíclicas como “Pacem in Terris” (João XXIII, 1963) sobre direitos e deveres, e a última encíclica do Papa Francisco,  “Dilexit nos” (Francisco, 2024), que trata a consciência, e a necessidade de formar uma consciência reta com base na verdade e na lei divina, não em subjetivismos, sendo um tribunal interno que julga nossas ações.

(2) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491

Segue-se a versão resumida para eitores mais apressados:

A LUZ QUE NINGUÉM DECRETA

Fé civil e Fé religiosa de Mãos dadas

Vivemos tempos paradoxais. Nunca se falou tanto de liberdade, mas nunca a consciência individual pareceu tão sitiada. As sociedades contemporâneas descobriram que o controlo não precisa de correntes, basta moldar convicções, fabricar consensos, direcionar emoções. A pandemia de COVID-19 revelou até que ponto os Estados estão dispostos a penetrar no santuário da consciência, exigindo não apenas obediência exterior, mas adesão emocional a narrativas oficiais.

É neste contexto que se impõe uma pergunta urgente: pode a fé civil, essa adesão aos valores da polis, caminhar lado a lado com a fé religiosa, essa luz interior que nenhum poder decreta?

A Sedução silenciosa do Poder democrático

A tradição política moderna ensinou-nos, com razão, a desconfiar dos tiranos. Mas talvez não nos tenha preparado suficientemente para desconfiar das tiranias suaves, aquelas que se apresentam com a face amável da maioria, do progresso, do “bem comum”, dos “valores europeus”. Todo o poder, mesmo quando nasce do voto livre, carrega em si uma tendência totalitária: deseja não apenas a obediência exterior, mas a adesão interior. Quer não só que cumpramos a lei, mas que a amemos; não só que aceitemos as decisões coletivas, mas que as interiorizemos como verdades inquestionáveis.

O Santuário Interior

“A consciência é o núcleo mais secreto e o sacrário do homem”, ensina o Concílio Vaticano II. Há em cada pessoa um espaço inviolável onde nenhum decreto pode penetrar, nenhuma maioria pode legislar. É aqui que a fé pessoal se distingue da fé civil: esta pertence à contingência histórica, às ideologias, às formas de governo; aquela enraíza-se numa verdade que não se constrói, mas se acolhe.

Esta distinção não significa antagonismo. Uma sociedade verdadeiramente livre necessita de ambas: precisa de fé civil para garantir coesão e solidariedade, mas precisa igualmente de consciências individuais fortes, capazes de resistir quando a própria comunidade se extravia, quando o consenso se transforma em conformismo.

Santa Luzia: A Visão que Resiste

Nesta época do Advento, Santa Luzia (1) surge como símbolo luminoso: a que preferiu perder os olhos a perder a visão interior. O seu martírio ensina-nos que a verdadeira cegueira não está na ausência de visão física, mas na rendição da consciência. Pode-se arrancar os olhos a uma pessoa, mas não se pode apagar a luz que habita o seu interior, a menos que ela própria consinta em extingui-la.

Esta luz interior é a que permite pessoas críticas como Luther King a resistir contra a injustiça social nos EUA, a Gandhi resistir a um império, a Mandela sobreviver décadas de prisão e a Bonhoeffer escrever da sua cela nazi que “não são as experiências que dão sentido à vida, mas o sentido que damos às experiências.”

O Perigo das Indignações Fabricadas

As redes sociais criaram “comunidades de indignação instantânea” onde a comoção pública substitui o discernimento pessoal. Quando as ondas de indignação varrem a capacidade de pensar, a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar instrumento facilmente manipulável por interesses obscuros.

A filosofia política sempre soube distinguir entre povo e multidão. O povo é um corpo organizado de cidadãos conscientes; a multidão é um agregado emocional, facilmente manipulável. É contra esta dissolução que a fé pessoal, entendida como cultivo da interioridade consciente, se torna resistência silenciosa, mas eficaz.

Polos complementares e não concorrentes

O grande erro das ideologias modernas foi pensar a relação entre fé civil e fé religiosa em termos de concorrência (esse erro ainda hoje doutrina foi espalhado pelo marxismo materialista como verdade científica fundada na velha física e na estratégia do divide para imperar). A verdade é mais fecunda: ambas são complementares. A fé civil fornece o quadro de convivência, as regras do jogo comum; a fé religiosa oferece a profundidade, a transcendência, a reserva de sentido que impede a vida humana de se esgotar no pragmatismo ou na visão do mensurável.

Mais ainda: ambas se necessitam mutuamente como corretivo. Uma fé civil sem abertura à transcendência corre o risco de se fechar num imanentismo sufocante. Uma fé religiosa sem responsabilidade civil corre o risco de se perder em abstração desencarnada, esquecendo que a verdade só é verdadeiramente humana quando se faz justiça, compaixão, cuidado concreto.

A Liberdade que sustenta todas as Outras

Há uma hierarquia nas liberdades. A liberdade de movimento, de expressão, de associação e  todas elas são preciosas. Mas há uma liberdade mais fundamental: a liberdade interior, a capacidade de pensar por si próprio, de discernir, de manter a consciência acordada.

Esta é a liberdade mais difícil de conquistar porque exige trabalho interior constante: leitura, reflexão, cultivo do silêncio. Mas é também a liberdade mais impossível de confiscar, porque reside num lugar onde nenhum poder pode entrar sem consentimento.

Quando fé civil e fé religiosa caminham lado a lado, reconhecendo-se mutuamente, respeitando os seus limites, fertilizando-se reciprocamente, criam-se as condições para uma sociedade verdadeiramente humana: livre sem ser caótica, ordenada sem ser opressiva, plural sem ser fragmentada, justa sem ser uniformizadora (a sábia palavra de Jesus “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, de Mt 22,21, é um convite a viver plenamente tanto no mundo material (cumprindo deveres) como no espiritual (vivendo a fé e os valores divinos), reconhecendo que ambos têm seus lugares e exigem o devido respeito e dedicação, sem que um se sobreponha ou se confunda com o outro)

A luz que ninguém decreta, essa luz da consciência iluminada, é a única garantia real de que a humanidade não se perderá nas trevas. Porque onde houver uma única consciência livre, lúcida, firme nos seus princípios, mas aberta ao diálogo, aí a esperança permanece viva, e com ela a possibilidade de um mundo mais pacífico, mais justo, mais verdadeiramente humano.

Talvez escrever e ler sirvam precisamente para isto: não para convencer, mas para despertar. Não para dar respostas fechadas, mas para manter viva a chama que impede a consciência de adormecer.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Artigo em Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10491

 

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A CONSCIÊNCIA SOBERANA

Não nasceu do decreto
nem do voto contado ao entardecer.
Não se ergueu em parlamentos
nem aprendeu a linguagem das maiorias.
A fé, essa da consciência,
nasceu onde o poder não entra:
no silêncio em que o homem
se sabe mais do que função.

As fés seculares constroem-se em andaimes:
supraestruturas de sentido calculado,
máquinas de consenso,
pedagogias da obediência feliz.
Prometem liberdade administrada,
direitos garantidos por sistemas
que pedem, em troca,
a rendição íntima do olhar.

Mas a consciência não se assina.
Não obedece à geometria dos regimes
nem ao tempo curto das ideologias.
Atravessa impérios,
sobrevive a constituições,
assiste, paciente,
à queda sucessiva das formas
que juraram ser eternas.

Por isso a fé pessoal incomoda.
Porque não depende do Estado,
nem da técnica,
nem do aplauso moral do tempo.
Ela subsiste como brasa
sob a cinza das épocas,
esperando apenas
que o tempo mude de voz.

Até na Igreja, feita de Pedra e história,
há trono e há limite.
Há autoridade,
mas há um santuário que nem o Papa habita:
a consciência, esse espaço inviolável
onde Deus fala sem intermediários
e o homem responde sem delegar.

É aí que o cristianismo se torna constitucional
antes de o ser político:
quando afirma que nenhuma ordem,
nem mesmo sagrada,
pode substituir o juízo último
do coração iluminado.

Por isso os regimes desconfiam.
Os de ferro, como o chinês,
e os de veludo, como a nossa democracia.
Ambos toleram a fé
desde que domesticada,
desde que aceite ser cultura
e não critério,
rito e não resistência.

Mas a luz interior,
como a de Luzia,
prefere perder os olhos
a perder a visão.
E lembra ao mundo, século após século,
que a verdadeira soberania
não se governa: testemunha-se.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A LUZ INTERIOR COMO FORMA DE LIBERDADE

Santa Luzia e a resistência da consciência face às ideologias do tempo

Cada época observa o mundo através dos seus próprios óculos. Mudam as linguagens, os contextos e as estruturas, mas certos padrões repetem-se ao longo dos séculos. A história humana revela sinais recorrentes que exigem discernimento: compreender a presente passa, muitas vezes, por interpretar o passado também à luz do agora sem se deixar diluir no aspeto folclórico. Para isso importa interpretar a Tradição como linguagem da liberdade

Em Portugal, as festas de Santa Luzia (Santa Lúcia) são amplamente difundidas e enraizadas na tradição popular. Na Escandinávia, porém, a sua veneração assume uma dimensão particularmente expressiva. No dia 13 de dezembro, não só católicos, mas também comunidades inteiras celebram Santa Luzia de Siracusa com procissões de túnicas brancas e coroas de luzes. Este gesto simples carrega uma memória profunda: a de uma mulher do século III que se recusou a ser subjugada.

O nome Luzia significa “a Brilhante”. Não se trata de uma luz exterior, decorativa ou imposta, mas de uma força que brota do interior. Num mundo que reduzia as mulheres à condição de propriedade, ao casamento obrigatório e ao silêncio social, Luzia rompeu com a ordem estabelecida. Escolheu a fé, a liberdade interior e a autodeterminação. A sua vida foi um ato de resistência.

Santa Luzia é venerada como padroeira da visão e protetora contra a cegueira e as doenças dos olhos. Simboliza a fé, a pureza e o martírio, mas também algo mais profundo: a capacidade de ver para além das trevas. Ao descobrir a luz de Cristo em si mesma, tornou-se portadora dessa luz para o mundo. A tradição que fala da mutilação dos seus olhos, como forma extrema de resistir à tentação de renegar a fé, culmina simbolicamente na restituição de novos olhos, sinal de uma visão renovada, interior e espiritual.

Esta narrativa interpela-nos hoje. Há, no nosso tempo, tentativas subtis e persistentes de retirar às pessoas a sua fé, não apenas a fé religiosa, mas a fé interior, a confiança na própria consciência e na liberdade espiritual. Quem detém o poder sabe que um povo sem fé própria se torna facilmente manipulável, sujeito à ideologia dominante e à imposição de narrativas únicas.

Lúcia não cedeu e declarou com firmeza: “Adoro um só Deus verdadeiro, e a Ele prometi amor e fidelidade.”
Por essa fidelidade, foi decapitada a 13 de dezembro de 304.

As coroas de luzes usadas nas celebrações de Santa Luzia, também presentes no tempo do Advento, não são meros adornos folclóricos. Elas preservam uma mensagem essencial: a verdadeira luz não vem apenas de fora. É transportada por Luzia, por todo o cristão consciente e por toda a pessoa desperta para a sua dignidade interior. A auréola luminosa simboliza o a autoconsciência e poder pessoal, a orientação enraizada na fé e a independência de espírito.

Santa Lúcia ensina-nos que a fé autêntica rompe com a injustiça. Convida-nos a defender a liberdade onde quer que ela seja ameaçada, especialmente nos contextos em que mulheres e outros grupos continuam a ser controlados, silenciados ou oprimidos.

No tempo do Advento, somos chamados a despertar. A resistir às trevas, mesmo quando somos lançados, como uma frágil luz de inverno, num mundo que insiste em espalhar o frio, o medo e a escuridão. A luz, porém, permanece. E quando nasce de dentro, nenhuma força exterior a pode apagar. A fé pessoal é a luz que ninguém pode apagar. Ela é a última fronteira da Liberdade; a luz interior e a fé pessoal são a melhor defesa cultural da liberdade (por isso quer o poder autoritário, quer até o democrático procuram assenhorear-se das consciências individuais apresentando-se eles como os portadores da liberdade).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A NOVA BARREIRA ALFANDEGÁRIA DA UE

Protecionismo, Receita fiscal ou uma Medida contra a China?

Num movimento que marca uma viragem significativa na política comercial europeia, os Estados-Membros da União Europeia aprovaram a imposição de taxas alfandegárias sobre todas as importações, incluindo pequenas encomendas com valor inferior a 150€. A partir de julho de 2026, estas encomendas, até agora isentas, estarão sujeitas a uma taxa fixa de 3€. A medida, justificada pela Comissão Europeia como uma forma de nivelar o campo de jogo perante a avalanche de importações baratas, gera um intenso debate. Para muitos, é um passo necessário para proteger a economia europeia; para outros, representa mais uma forma de o Estado “encher os seus próprios bolsos” sob o pretexto de medidas contra a China.

O Fim de uma Era: A Isenção dos 150€
Desde há décadas, o limiar dos 150€ funcionou como um estímulo ao comércio internacional de baixo valor, permitindo aos consumidores europeus com menos recursos adquirir bens de todo o mundo sem burocracia ou custos adicionais. Esta isenção foi, no entanto, corroída pela explosão do e-commerce transcontinental, particularmente com a ascensão de gigantes baseados na China como Shein, Temu e AliExpress. Estas plataformas, com seus modelos de negócio baseados em volumes astronómicos de pequenas encomendas diretas ao consumidor, dominam agora o fluxo de bens de baixo custo para a UE. A Comissão Europeia estima que, só em 2024, 12 milhões de encomendas cheguem diariamente ao espaço comunitário, um número que pressiona os sistemas logísticos e alfandegários e que, argumenta Bruxelas, distorce a concorrência com os retalhistas europeus.

Objetivos Declarados e Críticas
Os proponentes da medida defendem-na com três argumentos principais:

– Equidade no Mercado: Acabar com a vantagem competitiva “injusta” de retalhistas não-europeus que não cumprem as mesmas regras fiscais, ambientais ou laborais.

– Nivelamento Fiscal: Combater a evasão do IVA, garantindo que todas as encomendas contribuem para as receitas dos Estados-Membros.

– Financiamento da Maquinaria Aduaneira: A taxa fixa de 3€ ajudará a financiar os custos operacionais crescentes do controlo aduaneiro desta miríade de pequenas encomendas.

No entanto, a medida é alvo de veemente crítica. Os governos usam o pretexto geopolítico e de “proteção do mercado único” para aumentar a receita fiscal à custa do consumidor comum. A taxa de 3€ sobre uma encomenda de 5€ ou 10€ representa um acréscimo percentual brutal, funcionando efetivamente como um imposto regressivo que pesa mais sobre as famílias com menos recursos.

Impacto em Cadeia: Consumidores, Plataformas e a Logística
As consequências serão vastas:

– Para o Consumidor: O fim da “pechincha” verdadeiramente global. O preço final dos artigos baratos aumentará substancialmente, podendo reduzir o poder de compra e a variedade de escolha.

– Para as Plataformas Online (Shein, Temu, AliExpress): O seu modelo de negócio, assente em margens baixíssimas e volume extremo, enfrenta um desafio existencial. Terão de absorver o custo, repassá-lo ao cliente, ou reinventar as suas cadeias logísticas, possivelmente através de armazéns dentro da UE.

– Para os Serviços Aduaneiros e Correios: Pressupõe uma complexidade logística monumental. Processar milhões de micro-taxas diárias exigirá uma automação e eficiência sem precedentes, sob o risco de criar enormes gargalos e atrasos na entrega.

Uma Medida Antichinesa?
Embora a medida seja tecnicamente “neutra” e se aplique a encomendas de qualquer origem, o alvo político e mediático é claro: a China e as suas plataformas de e-commerce. A medida insere-se num contexto mais amplo de reavaliação das relações económicas UE-China, que inclui investigações por subsídios, preocupações com direitos humanos e dependências estratégicas. A taxação das pequenas encomendas é, assim, a frente mais visível e diária desta nova postura comercial defensiva.

Um Novo Paradigma com Custos
A aprovação desta taxa alfandegária simboliza o fim da era de um comércio global sem atritos para o cidadão comum. A UE, ao desmantelar a isenção dos 150€, escolhe prioritariamente proteger a sua base industrial e arrecadar receitas, aceitando o custo político de um consumo mais caro. A medida pode, de facto, forçar uma maior internalização das cadeias de abastecimento e oferecer um fôlego aos retalhistas europeus. No entanto, como bem aponta a crítica, o risco de ser percebida como mais um imposto disfarçado, que beneficia o Estado sob o manto de uma narrativa geopolítica, é real. A partir de julho de 2026, o preço da globalização, até para a mais pequena encomenda, terá um custo mais visível: 3 euros.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A DECISÃO DE EMERGÊNCIA DA UE SOBRE ATIVOS RUSSOS EXIGE VIGILÂNCIA DO CIDADÃO

Introdução: Um Precedente Perigoso
A recente decisão da União Europeia de manter imobilizados os ativos do Banco Central da Rússia, baseada numa cláusula de “emergência económica”, consolida um padrão preocupante porque arbitrário. Este mecanismo, justificado como excecional, permite contornar a regra da unanimidade entre Estados-Membros, princípio fundador que garante equilíbrio e soberania dentro do bloco. A prática, já testada durante a pandemia de COVID-19, revela como a classificação de uma situação como “emergência” serve frequentemente de pretexto para decisões políticas rápidas, pouco escrutinadas e potencialmente arbitrárias.

O Equilíbrio Perdido: Segurança contra Soberania
Este caso vai além do juízo sobre a Rússia e coloca uma questão fundamental: qual é o equilíbrio adequado entre medidas de segurança económica ou estratégica e os princípios de propriedade privada e soberania financeira? E, sobretudo, quem decide esse equilíbrio, e com que mandato? O que hoje se aplica a ativos russos pode, amanhã, justificar o bloqueio de contas de qualquer cidadão ou Estado sob nova “emergência”. A arrogância do poder, a pretexto do COVID e da Guerra, está a corroer as garantias legais e a tornar-se insuportável para cidadãos conscientes.

Geopolítica na UE: A Lei do Mais Forte
A guerra na Ucrânia evidenciou, de forma crua, as divisões geopolíticas na Europa. Em vez de uma resposta verdadeiramente coletiva, assistiu-se ao oportunismo de uma Europa dividida, onde os interesses das grandes potências, notadamente o núcleo da E-3 (Alemanha, França e, outrora, o Reino Unido), frequentemente se sobrepõem aos dos demais Estados-membros. Para impor os seus interesses, estas potências recorreram ao estratagema da “emergência”, suspendendo o compromisso da unanimidade e, com ele, o principal mecanismo de proteção das soberanias nacionais mais pequenas.

Os Pequenos Estados: Campo de Batalha das Potências
Esta dinâmica segue a lógica da “lei do mais forte”, que só é contida por um poder equivalente. Na sua ausência, os países menores tornam-se o campo de batalha onde as potências disputam influência, vendo-se obrigados a “pôr-se em bicos de pés” para se alinharem com os grandes. Essa posição é instável e leva à abdicação dos seus próprios interesses nacionais, como se observa no isolamento imposto a países como a Hungria quando ousam divergir. O fraco é instrumentalizado, e a solidariedade europeia revela-se seletiva.

Consequências: Erosão da Confiança e Danos Colaterais
O congelamento prolongado de ativos soberanos, agora normalizado como procedimento automático, fragiliza a confiança no sistema financeiro internacional e levanta sérias dúvidas sobre a proporcionalidade e a transparência das instituições da UE. Além disso, o recurso crescente a sanções económicas como instrumento político raramente atinge apenas as elites; os danos espalham-se maleficamente por sociedades inteiras, afetando cidadãos comuns tanto do lado sancionado como do lado sancionador. A história mostra que os conflitos são muitas vezes alimentados por elites, mas os custos são invariavelmente distribuídos pelos povos.

Conclusão: O Imperativo da Vigilância Cívica
Num momento em que decisões cruciais são tomadas em nome da Europa, é fundamental que os cidadãos mantenham um espírito crítico aguçado e exijam transparência absoluta. É urgente recordar aos representantes que a democracia não pode degenerar num governo tecnocrático, autoritário e opaco, desligado do bem comum. A vigilância cívica é o último garante contra a corrosão da democracia, das liberdades e o abuso de poder. Não podemos permitir que “emergência” se torne sinónimo de arbitrariedade institucionalizada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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