O ESPELHO E A NÉVOA

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução

Este conto é, também, uma alegoria.
António e Leonor são espelhos de um casal, de uma época, de nós mesmos.
A sua história, embora inventada, repete o que tantas vezes se oculta sob o nome de amor: dor travestida de entrega, fantasmas e feridas antigas que se insinuam no presente e procuram redenção nos outros.
O propósito é duplo: literário e pedagógico. Contar a beleza e a ruína de um vínculo, mas também iluminar os movimentos invisíveis de mecanismos inconscientes que mantêm tantas almas cativas.

O Jardim e a Janela
António via-a através do vidro da janela da sala. No jardim, Leonor girava sobre si mesma, de braços abertos, o vestido branco a ondular como névoa em turbilhão. Parecia uma bailarina entregue a uma música secreta, invisível ao mundo. A cena era de uma beleza dolorosa, quase fílmica ou mesmo sagrada.
Mas António sabia: aquele riso cristalino podia, a qualquer instante, dissolver-se em choro convulso, em silêncio glacial, em gritos que atravessavam as paredes. Era o equilíbrio precário da sua rainha, da sua menina, da sua condenação.

Dentro de casa, o telefone tocou. Era a mãe de Leonor, agora confinada a um lar.
A voz de Leonor mudou de repente: da euforia infantil e meiga para uma gravidade quase litúrgica.
– Já vou, mãe. Sim, levo o que precisa. Está tudo bem.

António suspirou. Conhecia bem esse duplo registo. Na noite anterior, aquela mesma boca que agora falava com doçura gritara-lhe que era um inútil, um imbecil que a sufocava com a sua paixão doente, que nunca a entenderia.

Era o mesmo ciclo de há trinta anos, repetindo-se em discussões vazias que mais pareciam diálogos com fantasmas, as mesmas vozes do passado, dançando sobre a lama onde antes houvera vida.

O Círculo de Giz

– Não me olhes assim! – irrompeu Leonor, entrando na sala como um furacão. – Esse teu olhar de cão abandonado faz-me sentir… suja!

– Eu só estou a olhar para ti, Leonor. Só te admiro e sempre te compreendi – disse António, numa voz que parecia um fio gasto de paciência e compaxão.

– Admiras? Ou toleras? Tu és tão passivo! Um zero! Casei contigo para não ser o tapete de ninguém e afinal tornei-me a esposa de um tapete!

António calou-se, pensando na farsa de Inês Pereira e a sua relação com Pêro Marques. Sabia a cena de cor.
Ela, a filha maltratada por um pai colérico e ignorada por uma mãe distante e fria, procurara nele o príncipe salvador. Ele, apaixonado e culto, enfeitara-a com ouro e joias, construiu-lhe uma gaiola dourada pensando erguer-lhe um trono. Mas Leonor descobrira cedo o seu trauma infantil e que só deixaria de ser vítima se se tornasse algoz. E António, cúmplice perfeito, oferecia-se ao sacrifício.

– Desculpa, Leonor – murmurou ele, repetindo o mantra que o definia.

Ela saiu, deixando para trás perfume caro e a névoa de incompreensão que o asfixiava.

Os Conselheiros do Labirinto

Na semana seguinte, dois gabinetes, duas vozes, dois mapas diferentes.

No psicólogo:
– Sinto que ele me anula, doutor. Sinto que a minha energia se esvai…
– A sua verdade é soberana, Leonor, deve centrar-se na sua perspetiva. A vida é sua e o seu marido, com todo o respeito, é uma figura coadjuvante na sua narrativa. A Leonor precisa de adquirir poder e autoridade.

Leonor saiu dali eufórica e reforçada no seu ego. Foi ao shopping às compras. Gastou ainda mais do que de costume. Comprou vestidos e ilusões, sentindo-se rainha por algumas horas.

No gabinete do Director Espiritual (Padre Fernandes):
– Padre, sinto um vazio. Vivo como se fosse um jogo de sombra. Faço as lidas da casa e cuido de diversos afazeres… Não sinto alegria e só em pensar na família a falta de ar atafega-me.
– Talvez o caminho seja olhar para além de si. Não como dever, mas como dom. Olhe para o António não como um espelho que reflete o que você é, mas como uma outra alma, com as suas próprias lutas. Na vida de casal há um eu, um tu e um nós e o nós é aquela “personalidade” que integra os dois e os faz crescer cada qual no seu ser de pessoa.

Leonor saiu dali comovida e a pensar no altruísmo. Decidiu visitar a mãe todos os dias. Esqueceu-se, porém, que era o aniversário de António. Ele jantou sozinho, diante de um bolo frio.

A Alegoria da Farsa
Chegada a noite, a crise explodiu.
– Onde estiveste? – perguntou António, sem acusar.
– Com a minha mãe! A fazer o que tu nunca farias! A ser uma pessoa decente! És tão egoísta! Só pensas em ti!

Ele deixou escapar uma gargalhada amarga.
– Isto é uma farsa, uma farsa de uma genialidade trágica, Leonor. Passo a vida a pensar em ti, a aceitar os teus caprichos, a engolir os teus insultos, tolero o desprezo e as projeções a que me atiras… e sou eu o egoísta? Não vês que me castigas pelo crime do teu pai e pela negligência de tua mãe? Eu não sou ele nem tão-pouco sou tua mãe que vingas em mim!

Leonor empalideceu. A sua narrativa interna vacilou ao ser tocada no seu roteiro inconsciente. Gritou, mas o grito soou oco, até aos seus próprios ouvidos. Caiu em lágrimas. O seu mundo de fantasia, onde ela era a vítima perpétua, entrou em colapso por um segundo.
– Porque é que ninguém me ama? Porque é que eu sou assim?

António aproximou-se, mas não a tocou. O seu amor doentio, simbiótico, pedia-lhe para a abraçar, para a salvar, mas conteve-se. Algo novo emergiu: uma claridade dolorosa.

A Intervenção do Espectador

Não foi um psicólogo específico, mas a própria vida que os levou finalmente a uma consulta conjunta. António colapsara também: o corpo não aguentara mais o peso do silêncio e de tantos sapos engolidos.

O doutor, de fala serena e olhar analítico, parecia um retrato vivo de Jung. Escutou-os. Horas seguidas. Depois falou.

– O que temos aqui não é um campo de batalha com um culpado e uma vítima. É um sistema de espelhos quebrados, onde cada um reflete no outro as feridas do passado de forma distorcida. Leonor, dentro de si insurge-se um vazio insaciável, onde ainda grita a dor da menina que não foi vista nem tida em conta na infância. A Leonor, inconscientemente, exige que António pague essa conta: que a veja, a preencha, a cure. Mas nenhum homem pode ser o pai ou a mãe que faltou, nenhum ser humano pode ser a salvação de outro. A sua instabilidade, a sua hipersensibilidade, a sua raiva, a sua fantasia de abandono… são sintomas de uma dor antiga. É a sua ‘menina maltratada’ que grita, mas quem ouve e as paga é o homem que a ama, não o pai que a magoou. A Leonor revive o abandono que experimentou na infância e fatidicamente auto-castiga-se ao fazer por voltar a ele.

O terapeuta junguiano voltou-se para António.

– E você, António, o seu apaixonamento é nobre, mas tornou-se numa renúncia a si mesmo e isso não é sadio. A sua tolerância não é amor, a sua paciência transformou-se em conivência com a doença. Ao não estabelecer limites, ao tolerar tudo, ao viver em simbiose, você não a está a ajudar. Está a alimentar os sintomas de Leonor. Com a sua exagerada compreensão está a dar-lhe mais razões para ela não se respeitar a si mesma e como pode ela respeitar alguém que se anula por ela? A sua paciência é, paradoxalmente, uma forma de egoísmo: você prefere o sofrimento conhecido à coragem de uma mudança real. O seu sacrifício, longe de ser amor, tornou-se uma prisão que o impede a si mesmo de ser e de se afirmar e assim impede Leonor de se enfrentar a si mesma e deste modo ela reconhecer o jogo entre a menina abandonada que aspira a ser rainha e fatalmente se vinga.

– O caminho, continuou o doutor, não é um resgatar o outro, mas cada um resgatar-se a si mesmo, numa de complementaridade, interajuda e compreensão. Leonor, a sua jornada é aprender a descobrir-se e encontrar a realidade para além do filtro da sua dor e que o mundo não gira à sua volta, porque esta crença isola-a e destrói-a.
António, a sua jornada é aprender que o amor não é fusão e sofrimento. É aprender a ser um indivíduo completo, que apoia e ama sem desaparecer. Você conhece o segundo maior mandamento cristão que é amar o outro como a si mesmo. Isto pressupõe um nível saudável de amor-próprio para poder amar e cuidar do próximo de forma genuína.

A Névoa e o Mapa
António e Leonor deixaram o consultório sem dizer uma palavra.
Não sentiam culpa, mas compreenderam algo mais profundo: a consciência de que estavam presos a padrões que agora se revelavam, como se uma máscara tivesse caído.
Não havia redenção milagrosa, apenas a clareza que obriga à mudança.
Diante dessa nova consciência, reconheceram a necessidade ética da reconciliação consigo mesmos e de se responsabilizarem por si e pela humanidade que representam.
Perceberam que o caminho seria longo, talvez não tivesse fim
Naquele dia, António não pediu desculpa. E Leonor não o acusou. Pela primeira vez, não há acusações nem desculpas. Caminham lado a lado, duas solidões distintas, mas agora conscientes dos fantasmas que dançavam neles e entre eles. A névoa não se levantara, mas possuíam agora um mapa rudimentar para não se perderem nela para sempre. E nesse mapa, a primeira indicação era a mais clara e a mais subtil: a de que a única libertação possível começava no autoconhecimento.
Consideração Final

Este conto não ensina, reflete. É um espelho erguido diante do humano onde a alma se reconhece e se estranha.
Em António e Leonor, cada leitor poderá entrever-se a si mesmo! Neles cintilam as múltiplas faces do humano: o que fere e o que cura, o que ama e o que teme, o que se entrega e o que foge, sempre como parte do mesmo círculo de amor e perda.
A libertação não está no sacrifício do outro, mas na lucidez de quem se encontra consigo mesmo e descobre, na relação autêntica, a força que sustenta o real que leva à travessia interior que conduz ao reconhecimento da própria verdade.
Talvez o destino mais alto do amor e a plenitude de uma vida partilhada seja este: compreender e pensar o eu a partir do nós, no espaço vivo do eu-tu-nós, essa teia de reciprocidade onde o humano pressente o mistério da Trindade.

© António da Cunha Duarte Justo, Pegadas do Tempo, dezembro 2019
https://poesiajusto.blogspot.com/2025/10/o-espelho-e-nevoa.html

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António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

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