SINFONIA DO SER NO LIMIAR

Levo no peito o influxo das marés,
O vaivém de um oceano interior,
Onde as ondas, em ritmos siderais,
Cristalizam a espuma em pensamento.

É o rugido do mar eternidade?
É um aplauso? Um pranto sussurrado?
Véu sonoro sobre a imensidão,
Que se desfaz em nuvens do tempo.

Meu corpo é um manifesto, memória antiga
Escrita do universo na sua evolução.
Painel de carne, cósmica liturgia
No cérebro, seu passageiro reduto.

E dessa escrita, vozes que se espalham,
Ecoando nos calcanhares da cidade,
Fragmentos de um mistério que se entalham
Na fugacidade da humanidade.

António da Cunha Duarte Justo

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A MORTE DO GATO

Morreu o “Bicho” da nossa estimação. A saudade é grande e a minha maneira de domar a dor é escrever sobre ele, erguendo-lhe um memorial de palavras onde outros, talvez, encontrem consolo para sofrimentos maiores.

Com a partida do Yoschi, o meu “Bicho” de dezanove anos, não partiu apenas um gato. Partiu um pequeno embaixador de um mundo paralelo, que sempre coexistiu com o nosso. Ele era siamês, mas a sua verdadeira pátria era um reino de gestos simples e verdades profundas. Era sábio não por acumular conhecimento, mas por viver numa curiosidade perpétua. Era limpo e aprumado, não por vaidade, mas por um respeito inato pelo seu próprio ser e pelo espaço que partilhava connosco. Chamávamos-lhe Yoschi, seu nome alemão, e “Bicho” para mim; dei-lhe o nome de “Bicho” como título de honra, que celebrava a centelha de selva soberana que nele ardia, domada, mas nunca extinta.

O Yoschi/Bicho era um mestre da arte de ser. As suas lições eram silenciosas. Ensinou-nos que a sociabilidade não é barulho, mas presença selectiva. Afectuoso, mas não carente; aproximava-se para receber carinho e, uma vez satisfeito o seu grau de necessidade sentimental, recolhia-se com uma dignidade serena para as suas “meditações místicas”. Esta independência não era frieza, era autossuficiência. Nós não éramos os seus donos, éramos os seus companheiros de jornada. E, nessa qualidade, servi-lo, encher a taça de água, providenciar o conforto, tarefa que a senhoria assumia com carinho, tornava-se um acto de reverência, não de posse.

A sua maior magia era a sua percepção aguçada do ambiente. Parecia decifrar as emoções humanas com uma precisão que nos humilhava. Se a tristeza ou a doença pairassem no ar, ele dirigia-se ao coração da dor e, com o seu ronronar terapêutico que se assemelhava a um zumbido ancestral que parecia vibrar na própria frequência da cura, oferecendo consolo. Era um calmante vivo, um ajudante antisstress que não exigia mais do que o reconhecimento da sua existência única.

A sua vida foi um testemunho eloquente. Um gato como o Yoschi não é um substituto para uma relação humana; é uma ponte para uma forma de relação diferente, mais silenciosa e intuitiva. Ele não preenchia lacunas humanas; ensinava-nos a preenchê-las connosco próprios, mostrando-nos os valores da autonomia, da percepção e da comunicação não-verbal. Os animais, tantas vezes ignorados, são precisamente estes embaixadores. Eles não anseiam ser humanos, anseiam por ser compreendidos no seu próprio direito que lhe vem da nossa estima e companhia. O segredo da empatia entre os nossos mundos, como o Yoschi tão bem ilustrou, reside na nossa disponibilidade para “entrar em relação”, para ouvir a lição contida no seu olhar sereno, no seu ronronar regenerador, no seu modo de caminhar pelo mundo com uma soberania tranquila. Enfim, um exemplo do modo de se relacionar do cidadão com as suas chefias.

Naturalmente, o preço deste vínculo autêntico é a dor da despedida. No seu último dia, o Yoschi, já debilitado pela diabetes, percorreu todos os cantos da casa que outrora frequentava, um derradeiro ritual de despedida ao seu lar. A sua morte deixa um vazio, mas também a semente de uma compreensão mais profunda. Ele foi feliz, teve um lar como seria de desejar para muitos. E, ao fazê-lo, ofereceu-nos a rara oportunidade de espreitar os mistérios da vida animal, não para os dominar, mas para com eles aprender, honrando a sua memória através de um olhar mais respeitoso e empático para com todas as criaturas com quem partilhamos este mundo.

À memória do Yoschi, o “Bicho”, cuja vida foi uma lição de afeição sem dependência e de uma ligação que liberta em vez de aprisionar.

António da Cunha Duarte Justo

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O ÚLTIMO JARDIM

No alto de uma colina esquecida, existia uma quinta com muitas árvores, destacando-se nela ciprestes antigos. Chamavam-lhe “O Último Jardim”. Lá vivia Aurélio, um velho filósofo que passara a vida a estudar o espírito das máquinas e o silêncio do Homem.

Durante décadas, o mundo lá em baixo transformara-se numa rede cintilante de luzes, ecrãs e promessas. As pessoas comunicavam mais do que nunca, mas já não se olhavam. Trabalhavam, produziam, votavam, seguiam tendências e, no entanto, ninguém parecia saber porquê nem para onde ia a sociedade.
A cada ciclo eleitoral, a multidão subia à praça, esperando um novo messias político que prometia “liberdade”, “progresso”, “crescimento” e “inovação”. Mas o que recebiam era sempre o mesmo: um novo modelo da mesma prisão.

Aurélio observava a sociedade como quem contempla um doente que se recusa a aceitar o diagnóstico. Na quietude do monte, ele procurava um fio de esperança no tear desfeito do mundo. Olhando para o vasto latifúndio cultural à sua frente, um pensamento ecoou dentro de si, claro e frio como o ar da noite:
“A humanidade não padece de falta de liberdade, mas da falta de limite. E quando o limite desaparece, a fronteira entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, o essencial e o supérfluo, o eu e o outro desaparece e a alma evapora-se.

Certa noite, uma jovem de nome Íris, sob um manto de estrelas, subiu a colina. Seus pés, pesados da poeira das cidades-mercado em ruínas, arrastavam o desaponto de uma busca. Outrora, aquelas terras foram um mosaico vibrante, um caleidoscópio de vozes e cantos. Agora, sentia o mundo achatado, reduzido a um deserto uniforme, um latifúndio estéril onde só germinavam as sementes da economia e do poder, ceifadas por um punhado de mãos. Em   Aurélio ela buscava uma resposta que o mundo lá em baixo já não sabia dar.
“Mestre, disseram-me que compreendes as máquinas. Elas agora decidem quase tudo! Decidem o amor, o trabalho e até o que devemos pensar. E a vida do dia-a-adia tornou-se em rotina aborrecida! Vive-se num mundo desarraigado, nutrido pelas miragens enganosas do liberalismo e de outras ideologias sem solo, que prometem um céu e entregam um deserto. Haverá ainda esperança?”

Aurélio sorriu com ternura.
“A inteligência artificial é o espelho mais nítido que agora tivemos. Mas o que ela reflete é a nossa própria sombra. Não temas o espelho, teme o vazio de quem não ousa ver-se nele.”

Íris um pouco confusa insistiu:
“Então a saída está em rejeitar a tecnologia? Em voltar ao passado?”

O sábio sorriu com brandura.
“Não, filha. A solução não está em voltar atrás, mas em relembrar. A tecnologia deve ser a continuação da nossa alma, não um deus faminto que a devora. O perigo nunca esteve no poder da tecnologia ou das máquinas, mas na nossa incapacidade de ver nelas a nossa própria humanidade refletida ao criá-las. Doutro modo torna-se num ídolo que devora os seus criadores.”

Aurélio e Íris desceram juntos ao jardim. Lá, entre árvores e pedras cobertas de musgo, crescia um pequeno altar com três palavras gravadas em pedra:
Limite. Relação. Responsabilidade.

Aurélio explicou:
“O limite é o contorno do ser; sem ele, tudo se dissolve.
A relação é o tecido invisível que faz do indivíduo um nós.
A responsabilidade é o amor tornado ação.”

Íris esforçou-se por suster as lágrimas.
“E quem ensinará isso às cidades?”

O filósofo sentiu em si as lágrimas de Íris correr-lhe pelo pensamento e olhando o horizonte eletrificado pensou para si: a vasta teia luminosa que conecta o mundo, o homem, na sua solidão essencial, nutre-se das próprias vibrações que o mantêm cativo, até que, insensivelmente, se transforma no sustento do labirinto que o envolve! Depois respirou fundo e respondeu:
“As cidades não se transformam por decretos, mas por contágio. Quando um coração desperta, tremem mil algoritmos. Quando duas pessoas se olham e se reconhecem, hesita o sistema inteiro. É assim que começa a cura.”

No dia seguinte, Íris desceu a colina. Levava consigo o sofrimento do mundo e no peito as três palavras que a levaram à autoconsciência.
Por onde passava, desligava um ecrã, escrevia um poema num muro, ensinava uma criança a plantar uma semente.
E em cada gesto simples, nascia o rumor de um novo tempo, de um tempo em que a sociedade deixava de ser máquina e voltava a ser jardim.

Epílogo

Aurélio morreu em paz, certo de que o seu nome seria esquecido.
Mas o Último Jardim floresceu como uma lenda: falava-se de um velho e de uma jovem que semearam uma revolução sem bandeiras; esta verdadeira revolução é feita de consciência, compaixão e silêncio.

E, pela primeira vez em séculos, o mundo não perguntava “para onde vai a sociedade”,
mas para onde vai a alma do homem

e essa, enfim, voltava a caminhar.

António da Cunha Duarte Justo

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O CONFLITO GEOPOLÍTICO NA UCRÂNIA E O REDESENHO DO MUNDO

 

A guerra na Ucrânia expôs as contradições do Ocidente e revelou que o mundo já não se organiza em torno de uma única hegemonia. Entre velhas potências e novos polos, o futuro exigirá reconciliação, complementaridade e coragem política.

A narrativa que se desmorona

Quando o conflito geopolítico na Ucrânia acabar, a classe política e o jornalismo europeus enfrentarão um sério embaraço. Terão de reconhecer que a narrativa que ajudaram a construir foi parcial, simplista e, em muitos casos, manipuladora e enganosa. Portugal, infelizmente, não escapa a esse enredo de formatação da opinião pública que foi conduzida a uma visão distorcida dos factos.

Durante anos, o discurso político-mediático formatou o pensamento coletivo, condicionando a perceção popular dos factos. Mas a realidade factual, uma Europa em declínio, subordinada a uma NATO e a uma burocracia de Bruxelas cada vez mais distantes dos valores humanistas, acabará por impor-se.

Portugal e o peso da submissão diplomática

O Palácio das Necessidades, símbolo da diplomacia portuguesa, tornou-se quase numa “casa de necessidades”, administrando interesses externos em vez de defender a identidade nacional. Portugal, com a sua experiência multicultural e o seu histórico de convivência entre povos, poderia exercer um papel exemplar na diplomacia internacional, defendendo, para isso, uma política externa baseada na irmandade e complementaridade dos povos, e não na submissão a blocos.

Washington e Bruxelas perdem credibilidade à medida que o mundo se reorganiza em torno de novos polos, como os BRICS, que representam uma alternativa concreta à hegemonia anglo-americana. A Europa, porém, insiste num modelo de dependência militar e ideológica que a prende ao passado.

A guerra como instrumento geopolítico

O que se apresenta como uma “guerra entre a Ucrânia e a Rússia” é, na verdade, um conflito instrumentalizado, um tabuleiro geopolítico em que a Ucrânia é usada como “cavalo de Troia” de um mundo velho, por potências que pretendem prolongar a sua influência global. O povo ucraniano, composto por diversas etnias que antes viviam em paz, tornou-se vítima de uma guerra que serve mais os mercados e as indústrias militares do que a justiça ou a democracia.

Países como Estónia, Letónia e Lituânia enfrentam idêntico destino: são peças menores num jogo de hegemonias. Historicamente, o Ocidente tem sido o mais agressivo nas suas políticas expansionistas, fomentando desestabilizações internas para justificar a sua intervenção. Trata-se de um expansionismo refinado e hipócrita, que utiliza as fragilidades dos pequenos para ampliar o poder dos grandes.

O vazio moral da Europa tecnocrática

Enquanto líderes como Viktor Orbán, em Budapeste, afirmam uma visão alternativa de soberania europeia, a União Europeia mostra-se incapaz de responder à mudança histórica em curso. Enredada em contradições, aposta na indústria militar e compromete o seu próprio futuro económico.

A prosperidade europeia floresceu quando predominavam governos social-democratas e conservadores moderados que eram os herdeiros do humanismo cristão e do capitalismo social que nasceram do Iluminismo e da doutrina social da Igreja Católica. Essa herança ética e filosófica foi sendo substituída por um tecnocratismo sem alma, afastado da experiência humana real.

A nova ordem multipolar

A nova geopolítica já não se organiza em torno de um único poder. O futuro do mundo será moldado por hegemonias partilhadas, em que Estados Unidos e China se reconhecerão mutuamente como parceiros e rivais necessários. A paz não virá da imposição de blocos, mas da interligação das economias e da complementaridade entre regiões.

Nesse cenário, a Europa e a Rússia só terão futuro se compreenderem que a reconciliação entre elas é condição de sobrevivência. Ou se reconciliam e colaboram, ou se tornam irrelevantes na nova ordem bipartida que se desenha. O mundo está a tornar-se bipolar, mas ainda há espaço para uma terceira via, a via da lucidez, da dignidade e da paz.

Há momentos em que se torna imprescindível interrogar a legitimidade das decisões proferidas em contextos de profunda incerteza, sob o prisma cultural e político-social, de modo a enriquecer o debate e integrar visões até então marginalizadas.

António da Cunha Duarte Justo

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O JARDIM DOS ESPELHOS PARTIDOS  

A Queda

No princípio, havia o Jardim. Não um jardim qualquer, mas aquele onde cada árvore conhecia o nome dos seus avós, onde as fontes murmuravam histórias de séculos e os caminhos de pedra guardavam a memória dos passos de quem partira. As crianças nasciam já segurando um fio invisível que as ligava às raízes mais profundas, e os anciãos morriam plantando sementes que só germinariam quando os seus bisnetos fossem velhos.

Mas algo mudou quando descobriram que podiam cortar os fios.

Primeiro foi Lúcia, a estudante de quinze anos, que um dia olhou para o cordel prateado que lhe prendia o pulso e pensou: “Isto é pesado”. Com uma tesoura de prata que lhe ofereceram na escola, onde agora ensinavam que libertar-se era o mesmo que ser livre, cortou o fio num gesto seco. Sentiu-se leve como nunca e ao mesmo tempo sentiu-se também a flutuar, como se tivesse perdido a gravidade.

Os vendedores de tesouras chegaram em caravanas coloridas, com ecrãs luminosos nas costas e promessas nos lábios. “O passado é uma âncora”, gritavam nas praças. “O futuro é um rio sem margens, e vocês são os surfistas da eternidade!” Vendiam tesouras de todos os tamanhos: pequenas para crianças, grandes para pais que queriam cortar os fios dos filhos “por amor”, industriais para as instituições que desejavam cortar todos de uma vez, “por eficiência”.

A linguagem começou a decompor-se como fruta esquecida ao sol. As palavras antigas, aquelas que continham dentro de si séculos de significado, como “dignidade”, “sacrifício”, “comunhão”, começaram a apodrecer. Em seu lugar nasceram palavras-fantasma: “impacto”, “relevância”, “visualizações”. Palavras que pareciam dizer tudo, mas não diziam nada, como espelhos que refletem apenas outros espelhos.

João, o pai de Lúcia, era professor. Ou fora. Agora era “facilitador de conteúdos”. Passava as noites a preencher formulários sobre “competências transversais” e “indicadores de performance”. Quando chegava a casa, já não tinha palavras para falar com a filha. Ela também não tinha palavras para ele. Entre eles erguia-se uma Muralha sem portas,alta, lisa, sem frinchas onde pudesse passar sequer um sussurro.

“Pai, não percebes”, dizia Lúcia, olhando para o ecrã onde dezenas de rostos idênticos desfilavam. “Vocês viveram numa prisão e chamavam-lhe tradição.”

“Filha, tu não vês”, respondia João, olhando para ela, mas vendo através dela, como se ela fosse de vidro. “Estão a vender-vos liberdade e a entregar-vos correntes.”

Mas um não ouvia o outro. As suas vozes ricocheteavam na Muralha e voltavam para trás, transformadas em eco que cada um interpretava como confirmação do que já pensava.

No jardim onde fora feliz em criança, João descobriu enterrado, coberto de ervas daninhas, um Relógio de Sol. Já ninguém se lembrava de que existira. O tempo agora era ditado pelos algoritmos, pelas notificações, pelo intervalo de dopamina entre um like e o seguinte. O relógio de sol, que um dia marcara os ritmos das estações, das colheitas, das orações, jazia morto sob a terra. Como se pudessem enterrar o tempo e assim tornarem-se imortais.

O Labirinto

A cidade transformara-se num Labirinto. Não daqueles com corredores de pedra e minotauros escondidos, mas um labirinto líquido, onde os caminhos mudavam de forma de hora a hora. Na segunda-feira defendias uma coisa, na terça-feira o algoritmo mostrava-te o oposto e na quarta já não sabias o que pensavas. A única certeza era a incerteza, e chamavam a isso “pensamento crítico”.

Miguel tinha vinte e um anos e um plano perfeito: tornar-se célebre. Não como os antigos, que escreviam livros em vinte anos, compunham sinfonias ou plantavam bosques. Ele queria a fama imediata, espetacular e irrevogável. Estudara todos os casos: o número de vítimas, as armas, os locais. Nos fóruns escuros da internet, trocava mensagens com outros iguais a ele, todos em busca da mesma coisa: visibilidade absoluta. Mais do que ser, importava estar. No seu mundo, ser visto era existir. Tudo o mais era o vazio.

Nunca ninguém lhe perguntara: “Para onde vais, Miguel?” Nem na escola, nem em casa, nem na sociedade. Todos estavam demasiado ocupados em caminhar, viviam numa marcha frenética sem destino, um marcar passo qualitativo disfarçado de progresso. Miguel sentia-se como um ponto num mapa sem coordenadas, numa caminhada sem bússola.

A mãe de Miguel, Ana, trabalhava num escritório de vidro onde todas as divisórias eram transparentes. “Transparência”, diziam os chefes, “gera confiança”. Mas Ana sentia-se permanentemente exposta, como se vivesse num aquário onde até os seus pensamentos pudessem ser auditados. As métricas eram o novo evangelho: números de produtividade, estatísticas de satisfação, gráficos de eficiência. Nunca se perguntava “porquê?”, apenas “quanto?”.

À noite, via na televisão o mesmo espetáculo em todos os canais; era como ter vinte janelas abertas para o mesmo quarto vazio. Políticos que criavam crises para depois se apresentarem como salvadores. Comentadores que gritavam uns com os outros, não para dialogar, mas para dominar. Programas onde a humilhação pública era entretenimento. Tudo sangue e violência, literal ou metafórica.

O seu filho de catorze anos, Pedro, passava horas a jogar um jogo onde o objetivo era desmembrar corpos digitais. A satisfação máxima vinha quando conseguia cortar o pescoço e o sangue virtual saltava em chafariz. Ana tentava protestar, mas o marido, que já não era bem marido, apenas coabitante, dizia: “É só um jogo. É melhor isto do que estar na rua.”

Mas Pedro já não distinguia bem entre o jogo e a rua. Quando a mãe lhe pedia para estudar mais, para desligar os ecrãs, para falar com ela, sentia a mesma raiva que sentia no jogo quando um inimigo o bloqueava. Era uma raiva limpa, justificada, que pedia resolução imediata sem necessidade de deambular pelas curvas do sentimento ou da relação.

Na escola de Pedro ensinavam-lhe que todas as opções eram igualmente válidas. Que não havia certo ou errado, apenas “perspetivas”. Davam-lhe a liberdade de escolher entre opções idênticas e isso causava-lhe desespero quando necessitava de motivos de esperança. Era como estar num restaurante infinito onde todos os pratos tinham o mesmo sabor: o sabor a nada.

Os novos sacerdotes da humanidade, os influenciadores, os gurus de autoajuda, os vendedores de cursos online, pregavam o evangelho do sucesso rápido e da realização sem esforço. Queriam fazer da realidade um rio fluente sem margens, onde todos pudessem flutuar eternamente sem nunca ter de escolher uma direção. Mas um rio sem margens não é um rio, é uma inundação.

O Espelho de Água

Foi numa manhã de fins de outubro, quando o outono começava a dourar as folhas que ainda restavam no Jardim abandonado, que algo mudou.

Lúcia, agora com vinte anos, estava farta. Farta da liberdade que a prendia, farta das escolhas que não significavam nada, farta de si mesma que se via reflectida em mil ecrãs sem nunca se reconhecer. Voltou ao Jardim, aquele onde cortara o fio cinco anos antes e sentou-se no meio das ruínas.

As árvores tinham crescido de maneira selvagem. A fonte estava quebrada. Mas no centro, onde antes havia apenas terra seca, formara-se um espelho de água, pequeno, quieto, perfeitamente imóvel.

Lúcia aproximou-se com medo. Não olhava para o próprio rosto há muito tempo, na realidade, não. Estava habituada ao filtro de Instagram, ao ângulo perfeito, à versão editada de si mesma. Mas ali, no espelho de água, não havia filtros.

Viu-se. Viu também, refletida na água, a sombra de uma árvore muito antiga que pensava estar morta. E viu uma coisa estranha: na árvore havia um fio prateado a balançar ao vento, como se a esperasse.

Não era o mesmo fio que cortara. Era diferente, mais fino, mais frágil, mas também mais luminoso. Percebeu então que o fio não era uma prisão. Era uma conversa. Um fio que ligava perguntas a respostas, presente a passado, que a ligava ela e a algo maior que ela mesma.

João, o pai, também voltara ao Jardim. Procurava o relógio de sol. Quando o encontrou, começou a desenterrá-lo com as próprias mãos. Demorou horas num acto de esforço e sacrifício como se estivesse a desenterrar o passado. As mãos sangravam. Mas quando finalmente o libertou da terra, algo extraordinário aconteceu: o relógio ainda funcionava. A sombra da haste vertical ainda marcava as horas: as horas reais, as horas que não podiam ser aceleradas por notificações nem interrompidas por anúncios. (Afinal a ancora não prende, é fundamento que orienta e há verdades que resistem às modas!)

Pai e filha encontraram-se junto ao espelho de água. Não falaram logo. Primeiro, olharam, ela para ele e ele para ela, ambos para os seus reflexos na água. E nos reflexos viram algo que tinham esquecido: que eram parte da mesma história. Que entre eles não havia apenas uma Muralha, mas também portas, pequenas, escondidas, mas portas.

“Pai”, disse Lúcia, e a palavra soou diferente desta vez, “acho que cortei algo que não devia.”

“Filha”, disse João, e também a sua voz era outra, “acho que enterrei algo que não devia.”

Não foi um momento de solução mágica. A Muralha não caiu. O Labirinto não desapareceu. Miguel ainda estava lá fora, e Pedro ainda jogava os seus jogos, e Ana ainda preenchia os seus relatórios. A sociedade ainda estava adolescente, ainda marchava sem direção, ainda trocava sacerdotes por vendilhões.

Mas junto ao espelho de água, pai e filha começaram a fazer algo revolucionário: começaram a escutar. Não para responder, não para vencer, mas para ouvir verdadeiramente. (Afinal o diálogo entre gerações pode ser retomado quando recuperamos instrumentos de medida comuns)

E no silêncio entre as palavras, algo antigo acordou. Uma pergunta que todas as gerações tinham feito, mas que esta geração esquecera: “Para onde vamos?” Não “para onde eu vou”, mas “para onde vamos”, juntos, ligados, responsáveis uns pelos outros.

O espelho de água tremeu ligeiramente com o vento. Na superfície, os reflexos misturaram-se, árvore e céu, pai e filha, passado e futuro. E nessa mistura, por um momento, viram não uma resposta, mas uma possibilidade: a de que pudessem tecer novos fios. Não os fios antigos que cortaram, mas fios que eles próprios escolhessem tecer, conscientes de que um fio só existe porque liga duas pontas.

Lúcia pegou numa pedra pequena e atirou-a ao espelho de água. As ondulações expandiram-se em círculos perfeitos, cada vez maiores.

“E agora?”, perguntou.

“Agora”, disse João, “esperamos que as ondas cheguem às margens. E depois, construímos margens que sejam dignas das ondas.”

Era uma resposta imperfeita. Mas era uma resposta que não vinha de um algoritmo, nem de um influenciador, nem de um gráfico estatístico. Vinha deles, da decisão de acreditar que o rio precisava de margens não para prender a água, mas para lhe dar forma, direção, sentido.

No Jardim dos Espelhos Partidos, onde os fragmentos de mil reflexos jaziam na erva, começava a germinar algo pequeno, mas teimoso: não a esperança fácil dos vendedores de ilusões, mas a esperança difícil de quem planta sabendo que talvez não veja a colheita. A esperança de quem tece sabendo que o fio pode partir. A esperança de quem pergunta “para onde?” mesmo sabendo que a resposta demorará uma vida inteira a construir.

E isso, pensou Lúcia olhando para o reflexo do pai ao lado do seu, era mais do que tinham tido em muito tempo. Era o começo de um abraço.

No jardim, o relógio de sol voltava a marcar as horas. Na água, os reflexos continuavam a dançar. E na árvore antiga, o fio prateado balançava ao vento, esperando (1).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Reflexão:

A regeneração da sociedade, simbolizada no conto, é possível, mas exige um esforço activo:

Relógio de Sol: Representa a necessidade de recuperar um tempo autêntico, reconciliando-nos com o passado como fundamento e não como amarra. Mostra que verdades permanentes resistem às modas.

Espelho de Água: Simboliza o reconhecimento de que a vida e a identidade são um processo fluido, reconstruído através das relações. Pequenas ações individuais (como uma pedra atirada à água) criam ondas de transformação.

Árvore Antiga e o Fio: A árvore simboliza a esperança e a resistência das raízes (valores, civilização). O novo fio prateado representa uma reconexão possível, mas frágil e não automática. Ele espera por uma escolha consciente.

Conclusão: A regeneração não é garantida. As estruturas permanecem (relógio) e a vida flui (água), mas a reconexão final (o fio) depende de uma decisão activa de cada um de nós. É uma esperança que pergunta: “E tu, vais pegar no fio?”

 

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