PEGADAS DO TEMPO

Não sou só um núcleo, um simples ser,
Sou um verso que o mundo veio escrever.
Antes do berro, no silêncio uterino,
Jazia o fado, um destino divino.

O tempo-espaço, primeira masmorra,
Que liberta a alma e a segura por fora.
Dois seres, um laço, um íntimo desvelo,
Plantaram em mim o futuro no efémero.

Depois veio o mundo, com seus muitos braços,
Normas, culturas, risos e embaraços.
A educação, tecedora de grilhões,
Moldou meus contornos, cosendo opiniões.

Sou Geografia, sou História e Arte,
Sou um mapa de sinais a abrir-se em parte.
Sou Filosofia, sou Política e Mística,
Uma teia de campos que me classifica.

Leio os sinais de trânsito do enquadramento,
As barreiras do corpo, do social lamento.
E aprendi que não basta a inteligência pura,
É preciso esperteza na seara escura.

Para ser a onda que do mar se ergueu,
A rosa única que o jardim teceu.
Há uma tensão no que é tido por normal,
No aceitável, no posto no jornal.

Quem questiona, na margem fica,
Mas sem margem, o centro nada significa.
É no conflito, por mais que doa,
Que a vida avança, que a alma brota e voa.

Não se confunda a Alma com a paisagem,
Não se reduza o Eu a uma miragem.
Que o Ego sozinho é grão de areia fina,
Que o vento leva e nada determina.

A verdadeira essência, sabedoria antiga,
É partir do Eu, mas rumo ao divino
Do Nós, da comunidade, do chão compartilhado,
Onde o ser é Pessoa, em amor entrelaçado.

E assim se forma, na luz e na sombra,
A Pegada do Tempo que me assombra.
Sou eu mesmo e o outro, circunstância e vontade,
Na vastidão do ser, buscando a liberdade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

 

Social:
Pin Share

AS FRONTEIRAS QUE NOS FORMAM: ENTRE O SER E O ESTAR EM SOCIEDADE

O Paradoxo das Limitações que libertam

Vivemos numa época de profunda desorientação identitária. Muitas pessoas sentem-se perdidas entre o que são verdadeiramente e o que a sociedade espera delas, oscilando entre a conformidade absoluta e a revolta sem rumo. Esta tensão existencial não é acidental, é o reflexo de uma questão fundamental: como poderão as limitações que nos cercam, paradoxalmente, tornar-se a chave para a expressão autêntica da nossa personalidade?

As fronteiras/limites que nos enquadram não são apenas obstáculos a superar, mas sim as próprias condições que tornam possível a nossa existência única e a nossa capacidade de nos relacionarmos com o mundo de forma consciente e criativa.

A Ipseidade como Núcleo do Ser em Construção

A nossa identidade, aquilo a que podemos chamar “ipseidade “forma-se na intersecção entre o núcleo mais íntimo do nosso ser e as circunstâncias que nos envolvem desde a concepção. Não somos seres abstratos, flutuando num vazio existencial, mas criaturas incarnadas, situadas no tempo e no espaço, condicionadas por uma miríade de factores que começam a moldar-nos antes mesmo do primeiro suspiro.

O espaço-tempo constitui a primeira e mais fundamental dessas fronteiras. Nascemos numa época específica, num lugar determinado, fruto do encontro íntimo entre dois seres que carregam consigo não apenas genes, mas toda uma herança cultural, psicológica e social. Este não é um limite empobrecedor, mas sim o solo fértil onde a nossa singularidade pode germinar. Não somos nem pura essência nem mera circunstância, somos a dança criativa entre ambas e a que a alma dá consistência.

As Circunstâncias como Possibilidades

Após o “berro” do nascimento – essa primeira afirmação sonora da nossa existência – começamos a ser moldados pela educação, pela cultura, pelas estruturas sociais que nos acolhem ou nos rejeitam. Estas influências penetram em múltiplas dimensões da nossa experiência: desde a arte que apreciamos até à forma como nos relacionamos politicamente com o mundo, passando pela linguagem que falamos, pela música que nos emociona, pelos códigos visuais que interpretamos.

Seria tentador ver estas influências como limitações que nos aprisionam numa identidade pré-fabricada. Contudo, elas funcionam antes como “sinais de trânsito” que nos orientam no complexo território social. Reconhecer estas fronteiras, sejam elas físicas, culturais, psicológicas e sociais, não significa submeter-nos cegamente a elas, mas compreender o mapa do território onde podemos mover-nos com maior ou menor adequação.

A Inteligência da Adaptação crítica

Não basta ser inteligente no sentido puramente cognitivo; é preciso desenvolver uma forma de “esperteza humana” que nos permita navegar conscientemente entre as normas estabelecidas e as nossas aspirações pessoais. Esta capacidade implica reconhecer que as fronteiras são simultaneamente limitações e possibilidades, tal como a margem de um rio, que ao mesmo tempo contém as águas e lhes dá direção. De facto, não há liberdade sem resistência, nem personalidade sem delimitação.

A tensão entre o ser profundo (o “mar infinito” da nossa essência) e a personalidade que as circunstâncias nos levam a desenvolver (a “onda personalizada”) não é um problema a resolver, mas uma dinâmica criativa a abraçar. É desta tensão que nasce a nossa capacidade de expressão autêntica, como o botão da rosa que desabrocha precisamente devido às condições específicas que o rodeiam.

O Questionamento como Força vital

A questionação do que é considerado normativamente aceitável pode, efectivamente, conduzir alguns à marginalização social. Mas esta aparente ameaça revela uma verdade profunda: sem margem não há centro, sem tensão não há vitalidade relacional. O espírito crítico, mesmo quando desconfortável, constitui parte essencial daquilo a que Henri Bergson chamava “élan vital”, a força criativa que impulsiona tanto o desenvolvimento individual como o progresso social sustentável.

Os questionadores, mesmo quando designados de travessos ou atravessados porque incompreendidos, desempenham uma função vital: impedem que a sociedade se cristalize em formas rígidas e moribundas. A sua aparente “desadaptação” pode ser, na verdade, uma forma superior de adaptação, não ao que existe, mas ao que pode vir a existir.

Do Eu ao Nós: A Reciprocidade fundamental

A individuação autêntica não acontece no isolamento, mas na relação. É essencial partir do “eu” através do “nós”, reconhecendo que a comunidade não é apenas o contexto onde aparecemos, mas a própria condição que torna possível o nosso aparecer e o nosso caminhar consciente.

Esta perspectiva contrasta com duas tendências problemáticas da modernidade: por um lado, o individualismo exacerbado que ignora as condições comunitárias da existência; por outro, a identificação total com as circunstâncias envolventes, que reduz a pessoa a mero produto do meio.

O Perigo da Redução da Alma às Circunstâncias

O grande equívoco contemporâneo consiste em identificar completamente o eu – a ipseidade – com as circunstâncias que o rodeiam. Quando isto acontece, corremos o risco de ter um ego inflado, mas vazio, em vez de um eu substancial, reduzindo-nos a meros elementos funcionais numa engrenagem social que perdeu o sentido tanto da pessoa individual como da comunidade autêntica.

Esta redução empobrece simultaneamente a experiência pessoal e a vida social. Perdemos a capacidade de contribuir genuinamente para o bem comum porque perdemos contacto com aquilo que, em nós, é verdadeiramente nosso e, portanto, verdadeiramente próprio para os outros.

Abraçar as Fronteiras como Condição de Liberdade

As fronteiras que nos delimitam não são prisões, mas sim as condições necessárias para que possamos existir como seres únicos e relacionais. Como um instrumento musical precisa de cordas tensionadas entre pontos fixos para produzir música, também nós precisamos das limitações que nos constituem para podermos expressar a sinfonia única da nossa existência.

O desafio não é eliminar estas fronteiras, que seria uma tarefa impossível e empobrecedora, mas aprender a habitá-las criativamente, reconhecendo nelas tanto as possibilidades como as responsabilidades que definem o nosso lugar no mundo.

Para aqueles que se sentem perdidos entre as expectativas sociais e os anseios pessoais, a resposta não está na fuga nem na submissão total, mas na compreensão de que somos precisamente o resultado criativo da tensão entre o infinito do nosso ser e o finito das nossas circunstâncias. É nesta tensão, abraçada conscientemente, que encontramos tanto a nossa identidade mais autêntica quanto o nosso contributo mais valioso para a construção de uma sociedade verdadeiramente humana.

As fronteiras que nos delimitam são, afinal, as próprias condições que tornam possível a expressão da personalidade do nosso ser. Não apesar delas, mas através delas, descobrimos quem somos e como podemos estar no mundo de forma plena e responsável.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

Social:
Pin Share

CONCÍLIO DO GALINHEIRO DOURADO

Uma Fábula geopolítica sobre a Farsa da Ambição no Ninho da Águia e no Galinheiro Dourado

No alto do Monte Olimpo de Bruxelas, onde o nevoeiro é feito de diretivas e o trovão do discurso político ecoa nos salões de mármore, os deuses menores agitavam-se. A notícia chegara como um raio: a grande Águia-de-cabeça-branca, do outro lado do oceano, mudara de humor. O seu piar, outrora beligerante e estridente, agora papagueava palavras estranhas: “paz”, “negociação”, “fim de hostilidades”.

Isto deixou os deuses do Olimpo em desarmonia total. Durante luas, tinham dançado ao ritmo guerreiro da Águia, martelando armas no seu Monte em vez de pão, tecendo para o povo narrativas de demónios e heróis com o ouro que lhes era enviado. O Galo Gaulês, vaidoso e orgulhoso, e a Águia Negra Federal, pragmática e calculista, haviam-se convencido de que a sua sobrevivência dependia daquela guerra distante, na grande planície do Urso Pardo. Nesse sentido camuflaram os seus interesses com os desígnios da Cegonha (1) que sempre acompanhavam e controlavam.

A mudança da Águia-branca forçou a convocação de um concílio. Mas não no grande salão do Olimpo, onde todos os estados-deuses tinham assento. Não. Foi num anexo reluzente, um Galinheiro Dourado, que a Deusa dos Protocolos, uma figura etérea de suave cinzento e gravata invisível, a tal que substituíra o acomodado Lobo Ibérico do Gerês na condução dos destinos comuns, reuniu os escolhidos.

Estavam lá, entre outros, o Galo Gaulês e a Águia Negra, como é claro. O Leão Britânico, já fora da cerca do galinheiro, mas ainda a rugir à porta, observava. Mas, a final de contas,  onde estava o Veadinho Vermelho, que sempre alertara para a insensatez do conflito? Onde estava a Águia-rabalva, feroz e diretamente na linha de fogo? E que era feito do Lince Romeno, guardião de outra fronteira? Foram deixados do lado de fora, a cacarejar a sua inquietação de ignorados. O concílio não era para vozes dissonantes, era para consolidar a narrativa.

A missão era clara: voarem juntos até ao novo ninho da Águia-branca e convencê-la, com ar de subserviência, mas punhos cerrados de determinação, a não abandonar a guerra. A Deusa dos Protocolos lideraria a comitiva. O Lobo Ibérico do Gerês, que representava a vontade coletiva de todos os deuses do galinheiro, foi convenientemente esquecido. Aquele não era um assunto de vontade coletiva, era um assunto de interesse coletivo, mas apenas daqueles que se julgavam colectivamente donos do colectivo.

A cena no novo ninho da Águia-branca foi de um ridículo sublime. Lá estavam eles, o Galo e a Águia Negra, plumagens bem penteadas, rodeando o trono da grande Águia-branca, que os observava com um ar entre o enfastiado e o divertido. Pareciam pintos ansiosos por migalhas de aprovação, cacarejando em uníssono a velha cantiga: “O Urso é um demónio, a guerra é necessária, não podemos fraquejar”.

A Águia-branca ouviu, bicou algumas sementes, e piou algo vago sobre “paz através da força”e “razões económicas”. Eles regressaram ao Olimpo, pavoneando-se como se tivessem obtido uma vitória colossal. Mas nos seus olhos lia-se o vazio de quem sabe que se humilhou por uma migalha de relevância.

Enquanto isto se dava, nas planícies da Ucrânia, os verdadeiros animais, os homens, continuavam a ser alimento para a terra, que já não acreditava em deuses de Bruxelas ou de Washington. O Urso Pardo, longe de ser o demónio desenhado nos mosaicos do Olimpo, estava sentado à sua mesa, pacientemente, oferecendo garantias que ninguém no Galinheiro Dourado queria ouvir. Porque ouvir significaria negociar, e negociar significaria admitir que a realidade não era o conto de fadas heroico que tinham vendido aos seus povos.

A grande farsa foi revelada. A União, que poderia ter sido uma fénix a renascer das cinzas da sua própria dependência, escolheu ser um papagaio, repetindo slogans gastos de um mestre que já nem os acreditava. Apostaram tudo no “tudo ou nada” e, no fim, quem tudo arrisca, tudo perde. E a factura, como sempre, estava a ser paga nos campos de trigo encharcados de sangue, longe do mármore limpo do Monte Olimpo.

O verdadeiro desafio nunca foi o Urso, nem a Águia volúvel. O desafio sempre foi olharem-se ao espelho e verem, não os deuses benevolentes que julgavam ser, mas apenas galos e águias menores, presos no seu próprio galinheiro dourado, escorregando no resíduo pegajoso da sua própria miragem. (Interpretação do conto em nota 2)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Esta fábula geopolítica usa como símbolos e alegorias os animais: Águia-de-cabeça-branca (Estados Unidos), Cegonha (Ucrânia), Urso-pardo (Rússia), águia negra ou federal (Alemanha), o galo gaulês (França), o Leão (Inglaterra), Veado-vermelho (Hungria), Águia-rabalva (Polónia), Lince (Roménia), Lobo-italiano (Itália). O lobo ibérico do Gerês (António Costa presidente do Conselho Europeu, dos Estados-membros, ausente). A Deusa dos Protocolos ( Von der Leyen – Presidente da Comissão,  apenas representante dos comissários).

(2) O “Galinheiro Dourado” representa a Comissão Europeia (Von der Leyen) e o eixo Franco-Alemão. É “dourado” por fora (a ideia de Europa) mas é um “galinheiro” por dentro (desorganização, cacarejo, hierarquias rígidas). A exclusão dos países vizinhos da Rússia e da Ucrânia (Veadinho, Águia-rabalva, Lince) reflete a sua queixa sobre a reunião real.

A Mudança da Águia-de-cabeça-branca (EUA/Trump) é o catalisador da história. Mostra a dependência europeia e a sua incapacidade de ter uma política externa independente e estratégica.

A “Deusa dos Protocolos” (Von der Leyen) é uma crítica direta à sua presença inadequada na reunião com Trump, em detrimento de quem realmente representa os estados (Costa, como Lobo Ibérico). Ela é “etérea”, não eleita diretamente, e impõe protocolos que servem a uns e ignoram outros.

Humilhação e a Subserviência: A cena em que se humilham perante Trump é central, mostrando a contradição entre o ódio que professam e a submissão que praticam.

O Urso Pardo (Rússia/Putin) é aqui retratado não como um demónio, mas como um actor pragmático e paciente, contrastando com a histeria e a narrativa fabricada do Olimpo. Isto reflecte a ideia de que a Rússia está aberta a negociações e que a demonização é uma estratégia.

O conto culmina na ideia de que a UE está a escorregar na sua própria miragem, presa numa narrativa infantilizada que a impede de ver o mundo real e de agir pelos seus genuínos interesses de paz e prosperidade com a sua vizinhança euro-asiática.

Social:
Pin Share

O MAL-ESTAR DA MODERNIDADE: DA SOLIDÃO EXISTENCIAL AO “CANCRO SOCIAL”

A Revolta das Partes contra o Todo orgânico

Vivemos na era da híper-conexão, dos fluxos de informação infinitos e de um progresso material sem precedentes. No entanto, um paradoxo angustiante define os nossos tempos: nunca estivemos tão conectados e, simultaneamente, tão divididos e profundamente sós. Esta solidão não é apenas a carência de companhia; é uma solidão de si mesmo, um divórcio interno do ser humano face à sua própria essência.

Este fenómeno não é um acidente, mas sim o sintoma de um processo de despersonalização em marcha, cujas raízes se aprofundam no solo do século XX. A combinação de forças anónimas, mercados globais, algoritmos omnipresentes, burocracias impessoais, com um desvio filosófico que, em algumas das suas correntes, abraçou o niilismo, esvaziou o indivíduo de uma identidade sólida. Sem uma identidade individual claramente definida e valorizada, torna-se impossível construir uma identidade social ou cultural coesa. A sociedade arrisca-se a transformar-se num amontoado de elementos desconexos, sem uma ordem intrínseca que os ligue organicamente e lhes dê um rosto coletivo.

As instituições tradicionais (a família alargada, a comunidade local, as associações de solidariedade) que outrora forneciam enquadramento, significado e pertença, veem o seu valor e significado em processo rápido de erosão. Por seu lado, o indivíduo é cada vez mais atomizado, reduzido à sua circunstância imediata e a um individualismo estéril. Esta solidão hiperbólica manifesta-se mesmo no meio da multidão, mascarada pelo ruído ensurdecedor das ofertas da sociedade de consumo, que promete preencher um vazio que, paradoxalmente, ajuda a minar.

O sofrimento e o desencanto coletivos aumentam a um ponto crítico, onde a sociedade em si se torna clinicamente doente. A este propósito, torna-se oportuna uma metáfora de doença individual e da doença psíquica social: o aparecimento do cancro como «solução e desculpa». O cancro é, na sua essência biológica, uma mutação genética resultante de um descontrolo celular, uma revolta das partes contra o todo orgânico. Não será esta uma imagem perfeita do que acontece a nível de consciência social? As mutações individuais e sociais, a perda de valores partilhados, a desagregação do laço social, resultam de uma consciência individual e coletiva descontrolada, que, focada apenas no eu imediato e no prazer funcional, conduz à autodestruição do organismo social. Cada época tem, de facto, as suas doenças e os seus estados de alma, e a nossa tem a da patologia da desconexão (desligação individual e social que cede o lugar a uma conexão exterior virtual que tudo amarra).

Os sintomas desta doença são estranhos e reveladores. A solidão leva a que o afecto seja canalizado para substitutos, como o «casamento» com animais de estimação, relação que, sendo genuína no afecto, é funcionalmente imune às complexidades do compromisso humano. Na política, o oportunismo segue agendas exteriores ou ditadas por sondagens e estatísticas sociológicas, e não por princípios ou visões de futuro, num ajustamento virtual às massas, e não uma liderança baseada na relação humana autêntica nem numa sociedade consciente do seu sentido.

O caso extremo, mas sintomático, dos mais de 4.000 «casamentos tecnológicos» no Japão, onde pessoas casam com personagens de realidade virtual, é o indício mais claro deste devir. Não é uma excentricidade, mas um sinal de alarme: o ajustamento das relações humanas está a ser substituído por um ajustamento virtual, baseado em satisfações imediatas, controláveis e de essência meramente funcional.

Perante este diagnóstico sombrio, somos chamados a uma reflexão urgente. Não se trata de um regresso romântico a um passado idealizado, mas de uma pausa consciente para repensar a pessoa e a sociedade. Há que resgatar e reavaliar os «ensinamentos perenes» que o desenvolvimento humano nos foi proporcionando ao longo de milénios: a dignidade da pessoa, a importância da comunidade, o valor do sacrifício pelo outro, a busca de significado que transcende o material, a força do amor e da vulnerabilidade partilhada.

O desenvolvimento do poder tecnológico e virtual não é inerentemente mau; é uma ferramenta poderosa e útil. No entanto, ameaça destruir o humano se for este a servir a tecnologia, e não o contrário. O risco final é que o humano perca aquilo que o define: a personalidade, a razão, que se torna mero cálculo, e o sentimento, que se torna mera emoção superficial.

A pergunta que se coloca à nossa sociedade, chamada a ser cada vez mais humana e feliz, é crua: teremos a coragem de desligar o ruído, de nos reencontrarmos connosco próprios e, a partir desse centro repensado, reconstruir relações autênticas que curem a nossa solidão existencial? Ou continuaremos a preferir o matrimónio silencioso com as máquinas, confortáveis e previsíveis, mas incapazes de nos devolver o rosto que estamos a perder?

A cura começa com o diagnóstico e com a recusa coletiva em aceitar a autodestruição como preço inevitável do progresso.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e pedagogo

Social:
Pin Share

QUEIXA EXISTÊNCIAL DE UMA SOCIEDADE INCERTA

(Parto do Abismo nas Sombras do Modernismo)

 

Não é o grito agudo, claro, definido,

É um quebrar de ânforas no silêncio,

Um tumulto surdo, um ruído

De um mundo grávido de um tempo sem senso.

 

A sociedade, uma madre em contrações desencontradas,

Arqueja sob a pressão de um feto de névoa,

Não pare um futuro, mas dores emprestadas,

Um parto de sombras que a si mesma nega.

 

Qual é a queixa da alma coletiva, sem causa aparente?

É a náusea do vazio, o luto por um Deus que não morreu,

Mas que se perdeu na torrente

De um amanhã que se prometeu… e não nasceu.

 

São dores de parto de um ser ainda informe,

Uma gestação de ferro, fogo e algoritmo,

O útero do tempo à beira de um deforme

Nascido que não é neto, nem é legítimo.

 

A placenta é de écran, o cordão é de fibra ótica,

A luz que nos guia é um fluxo de ansiedade.

A nova maneira de ser, criança caótica,

Não traz o leite quente da humanidade.

 

Traz o frio do silício, a promessa de um paraíso estéril,

O abraço de um algoritmo, vasto e distante.

É um parto criativo, sim, mas de um ser tão sério

Que confunde a sua alma com um software errante.

 

Por isso a queixa ecoa, cega e obstinada,

Não contra a fome ou a guerra, males de outrora,

Mas contra esta angústia mal desenhada,

Este vazio que à mesa se senta e devora.

 

É o luto pelo Homem que fomos, a agonia

Do rosto que se dissolve no pão da existência.

A nova maneira de estar não é um novo dia,

É a noite iluminada pela própria ausência.

 

E no entanto… há a centelha, a dor que é génese,

Neste abortar de mundos, há um verbo ténue a crescer.

A própria sombra que nos cobre talvez nos revele

Que só criando o abismo o podemos vencer.

 

A queixa é o primeiro hino deste estranho nascimento,

O útero do caos é criativo, ainda que cruel.

Talvez da noite do não-sentido, brilhe um firmamento

Onde a alma, finalmente, encontre o seu papel.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Social:
Pin Share