QUANDO O TEMPO PAROU PARA RESPIRAR

Um testemunho do Kairós em voz alta (1)

 

Houve um dia — ou talvez nem dia fosse —

em que o tempo deixou de correr

e, sem aviso, começou a respirar.

 

Não era pausa, era presença.

Como se o ar ganhasse densidade,

e o instante se abrisse por dentro

como um poço sem fundo

a chamar o meu nome.

 

Senti o chão,

mas não como quem pisa —

como quem é pisado pelo sagrado.

E ali fiquei: sem pressa nem relógio.

Sem nada que explicasse,

mas tudo em mim a compreender.

 

Teólogos chamam-lhe Kairós —

eu chamo-lhe o tempo do meio.

Aquele lugar onde vício e virtude

Onde passado e futuro

se calam e só o Aqui do Agora tem voz.

 

Não era visão.

Era um ver que vinha de dentro.

Um saber que me atravessava

sem linguagem.

Uma certeza tão antiga

que parecia não ser minha —

mas era.

Era minha, e era de todos

a do tudo em todos a vibrar em mim.

 

Nesse instante, tudo respirava.

As árvores, as pedras, o vento.

O mundo não estava lá fora:

estava recolhido em mim,

a acontecer com o meu próprio fôlego.

 

E eu… nesse momento,

deixei de ser função,

meta, movimento.

Fui apenas: ritmo, pulsar, ser.

 

Ali não precisei de pedir respostas —

porque não havia mais perguntas.

A verdade não era um conceito,

era uma presença.

Amorosa, silenciosa, imensa.

 

E o corpo?

O corpo deixou de ser obstáculo.

Foi templo, foi harpa,

foi lugar onde o sentido encarnava.

O espírito não me levou para fora —

levou-me mais fundo.

 

Desde então,

sei que há um outro tempo

que não mede, mas molda.

Que não passa, mas revela.

 

E quando ele volta —

quando o Kairós me visita —

já não fujo.

Abro os braços, abro o peito.

Abro os olhos por dentro.

 

Por isso, hoje, digo-vos:

não temam parar.

Não temam silenciar.

Não temam ser tocados

onde não há defesas.

 

Porque é aí — e só aí —

que a vida deixa de ser acaso

e começa a ser chamamento.

 

E quando sentirem o tempo a respirar,

não se distraiam.

Ajoelhem-se por dentro.

E digam: “Sim.”

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1)  Este momento especial — que muitos descrevem como o seu “momento eureka” — vivi-o após um longo esforço e num contexto inesperado: fui repreendido injustamente por uma autoridade— mal informada — enquanto brincava com rapazes da rua, em Manique do Estoril. Magoado, refugiei-me no meu quarto, chorando em oração. Foi nesse recolhimento que experimentei o meu momento Kairós — um instante de luz interior, de sentido. Logo a seguir, desci as escadas em enlevo, com um entusiasmo novo, e voltei ao jogo improvisado como se tudo tivesse sido transformado.

Kairós é o momento do encontro que muitas pessoas conhecem, quando se permitem parar, rezar ou simplesmente agradecer, sobretudo depois de se sentirem mal compreendidas ou injustamente julgadas.

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ANUNCIAÇÃO

 

Entre o ventre da terra e o da mulher,

canta-se a vida —

soprada à sombra do pólen errante,

que, guiado por cardeais do desejo,

pousa onde o amor ainda é promessa.

 

As mulheres —

obreiras do invisível —

acendem o sol em silêncio noturno

e ao amanhecer

despem-se da lua

para dar rosto ao mundo

e corpo a vidas sem rima.

 

Bailarinos, guerreiros e ninguéns —

sustentam o frágil respirar da sociedade,

como relva sob palcos em festim,

como o vazio que molda o real.

Cada um,

mapa de carvão na pele do tempo,

guia o que a luz não revela.

 

No elo entre o feminino e o masculino

vive o Eros primordial —

fogo que move o humano,

gérmen de gesto e sentido,

a centelha que acende

o teatro secreto da existência.

 

A Anunciação (1) não é instante,

mas condição primordial:

o ser aberto em chaga viva,

ferido de eternidade.

 

Maria ainda caminha,

e em seu ventre—

o húmus da terra e o verbo do céu

fundem-se num só ritmo:

sopro de lama e fogo,

gestação do humano no divino.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Nota: António da Cunha Duarte Justo é poeta, ensaísta e observador atento da condição humana, cujos textos conjugam densidade simbólica, enraizamento espiritual e lucidez social. Em Anunciação, parte da imagem arquetípica do anúncio angélico a Maria — momento de revelação, de fecundação divina e humana — para transpor essa experiência simbólica ao ventre da terra e da mulher, fundindo num mesmo sopro o sagrado e o terreno. A poesia surge assim como anúncio e como parto: uma travessia entre o invisível e o vivido. O simbólico e o existencial dialogam, não como categorias opostas, mas como dimensões convergentes do real. Assim a escrita de António Justo convida a uma escuta interior e não a análises ideológicas: nela, o espiritual não é fuga do mundo, mas revelação da sua profundidade. Entre o sensível e o transcendente, entre a carne e o logos, o autor delineia com traços líricos uma antropologia poética da comunhão.

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De Roma, um apelo à razão e à consciência do mundo

Papa Leão XIV clama aos poderosos: troquem as armas pelo diálogo

Num tempo em que o mundo parece andar tolo e perder o rumo, o Papa Leão XIV levanta a voz com firmeza e esperança.

“Peçamos ao Senhor que toque os corações dos poderosos e inspire as suas mentes, para que substituam a violência das armas pela busca do diálogo.”

É um apelo direto. Um sopro de lucidez no meio da confusão.
Porque onde deveria haver liderança com alma, cresce o ruído das ambições.
Poder, dinheiro, influência e controlo — são estes os ídolos de muitos políticos que em vez de servirem o bem comum preferem determinar como o povo e as outras pessoas devem viver, agir, falar e pensar.

Antes das férias, o Papa deixa uma bênção simples, mas necessária:

“Desejo a todos um tempo de descanso para fortalecer o corpo e a mente.”

Mas vai além do descanso. Pede consciência.

Chama-nos à responsabilidade de erguermos a voz em favor do que realmente importa — aquilo que se está a afogar na loucura do nosso tempo.

E que loucura é essa?

É a de um mundo onde a paz já não é prioridade.
Onde os líderes trocam o diálogo pela imposição.
Onde a palavra cede lugar à força e a humanidade fica para trás.

Leão XIV fala para todos. Mas sobretudo para aqueles que detêm o poder de mudar o rumo das coisas.
Que saibam ouvir. Que escolham a paz. Que compreendam que o verdadeiro poder está no serviço, não na dominação.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O Espelho Rachado da Liberdade

(Alegoria da Cidadania Usurpada)

 

Nas praças do tempo ressoam tambores,

mas dançam os mesmos — herdeiros do trono

que de mão em mão passam o cetro mudo,

enquanto o povo, de olhos vendados, aplaude o luto.

 

A política, velha atriz de mil máscaras,

oferece-nos sonhos envernizados,

liberdades com correntes invisíveis,

e um céu onde voar… só com asas emprestadas.

 

Dizem-nos: “És livre! Escolhe!” —

mas entre sombras, quem vê o caminho?

Prometem mundos e fundos

desde que não se deseje o mais simples:

uma vida de pão e alegria,

de riso e responsabilidade partilhada.

 

Vendemo-nos por moedas de direitos vazios,

e em troca tiram-nos a alma do dia.

Chamam a isso progresso —

mas é só o velho truque de sempre:

dar à pedra o nome de pão,

à mordaça o nome de voz.

 

Os plutocratas, senhores da fala,

altifalantes do engano bem vestido,

ensurdecem-nos com promessas,

enquanto a dignidade escorre pelas frestas da história.

 

E nós, filhos da esperança,

tateamos no escuro por um gesto,

um sinal de que viver ainda pode ser mais

do que obedecer sorrindo.

 

Oh, democracia, irmã ferida da justiça,

onde é que te escondes?

Em que canto te recolheste

enquanto te desfiguram com trapos de ideologia e medo?

 

Mas ainda há quem sonhe —

e quem se erga.

Na poeira do esquecimento

nascem vozes que recusam a servidão disfarçada.

 

Que a liberdade não seja licença para a indiferença,

mas sim o fogo que ilumina o rosto de cada um,

na alegria de sermos diferentes

e iguais no direito de existir com dignidade.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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EUROPA SOLO E SEM HERDEIROS

Um Retrato da Solidão Demográfica

A Eurostat, essa discreta contabilista do Luxemburgo, anunciou recentemente que a Europa em 2024 albergava 202 milhões de famílias (agregados domésticos). Deste número, 75 milhões eram compostas por uma única alma — solitários sem filhos, a marchar triunfantes no pódio das estatísticas, com um crescimento de 16,9%. Em segundo lugar, os casais sem filhos (49,1 milhões) e outras configurações domésticas igualmente estéreis (30,5 milhões). E, lá no fim, quase como uma relíquia do passado, os casais com filhos (30,3 milhões), cuja quota encolheu 4,4% desde 2015.

Uma Europa que envelhece, que se fecha em apartamentos minúsculos, que celebra a liberdade individual, mas se assusta com engravidamentos. E, no entanto, essa mesma sociedade lamenta-se da imigração, como se os refugiados fossem um incómodo matemático: queremos menos gente, mas também queremos quem faça o trabalho que já não nos apetece. A economia, essa divindade caprichosa, prefere importar braços em vez de exportar oportunidades. E assim se constrói o paradoxo: condenamos os que fogem da miséria enquanto nos encolhemos no nosso bem-estar estéril.

No meio de tudo isto, a política alimenta fantasmas. Inventa inimigos, semeia divisões, transforma a convivência num campo de batalha. O belicismo, outrora disfarçado de último recurso, agora passeia-se de cabeça erguida, travestido de virtude cívica. E o cidadão, confuso entre slogans e estatísticas, descarrega a sua frustração no estrangeiro — esse bode expiatório sempre conveniente.

Os números, frios e implacáveis, desenham uma Europa em declínio. Seriam ainda mais sombrios se as estatísticas ignorassem os muçulmanos, esses fiéis à “lei natural” que, ao contrário dos nativos, ainda ousam multiplicar-se para poderem engrandecer a sua “Uma”! Ironia das ironias: enquanto uns promovem o aborto como bandeira progressista, outros cultivam guetos onde a natalidade é vista como um dever e indícios de progresso. Dois mundos que coexistem sem se entenderem, alimentando uma guerra cultural que ninguém assume, mas que todos combatem à socapa.

E no meio deste teatro, Bruxelas dança. Os donos do poder e disto tudo deliciam-se com os seus discursos, enquanto a população — nativa e migrante — é reduzida a mero figurante num drama que não escolheu. Vítimas de um sistema que as explora e depois as põe umas contra as outras.

A diminuição demográfica tal como a agressão aos estrangeiros são o sintoma, não a doença. A doença chama-se irresponsabilidade política — essa arte estéril de governar pelo conflito, de alimentar medos em vez de esperanças, de criar bodes expiatórios em vez de assumir falhas. Enquanto o povo e os migrantes se gladiam, os verdadeiros responsáveis observam, impunes, do alto dos seus cadeirões sem terem de ser judicialmente julgados pelos seus actos. São eles os arquitetos desta guerra entre pobres, e, no entanto, continuam a chamar-lhe ‘democracia’ dos seus valores que não dos da Europa.

Resta perguntar: quando a última família tradicional desaparecer, quem trará flores ao seu funeral?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

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