Na aldeia de São Martinho das Fontes, o tempo parecia respirar ao ritmo do toque do sino.
O vento, mensageiro de memórias, percorria os becos e, ao passar, fazia as janelas falar e enquanto umas suspiravam de receio, as outras rezavam.
Era a véspera de Todos os Santos.
E como vai acontecendo com o andar dos tempos, a aldeia já não sabia bem o que celebrava.
Nas vitrines do centro comercial da vila vizinha, abóboras ocas e bruxas sinuosas entretinham um diálogo mudo de piscares luminosos, atraindo tanto os olhos curiosos das crianças como o sorriso contido de adultos.
O riso metálico das promoções fundia-se com o alvoroço infantil, enquanto as mães, rendidas ao cansaço e à pressão da quadra, se deixavam levar entre prateleiras que sussurravam promessas de alegria instantânea.
Uma delas, Dona Amélia, segurava a mão do filho, o Tiago, de sete anos.
O menino queria uma máscara.
Ela hesitou.
Sabia que o dinheiro mal dava para o pão e o gás. Mas, ao olhar em volta, viu as outras mães comprando máscaras para os filhos. Sob o peso invisível daquela comparação, soltou um sorriso resignado e disse:
“Vá lá, Tiago, escolhe uma…”
A criança agarrou uma caveira luminosa.
E Amélia pensou, sem o dizer:
“Será que é isto que o mundo quer que eu ensine ao meu filho? Que o riso vem do medo e a alegria do disfarce?”
No regresso, o vento pareceu escutar-lhe o pensamento e murmurou-lhe ao ouvido:
“Nem tudo o que brilha é luz, minha filha. Há brilhos que apenas escondem o escuro.”
À noite (véspera de Todos os Santos), a aldeia parecia ferida ao encher-se de sombras. As crianças, enfeitadas de demónios e fantasmas, percorriam as travessas com risos que não pertenciam à infância, e batiam às portas com vozes de ameaça disfarçada: “Doçura ou travessura!”
E o medo, vestido de brincadeira, passeava-se livremente.
Os risos pareciam leves, mas deixavam no ar um sabor vazio, como o de um pão sem miolo, e uma frieza reminiscente das tardes escuras de novembro.
Sentia-se uma tristeza nas casas meio adormecidas na sua caiada solidão, a contemplar as faces de abóbora que, em papel, consumiam de uma vez só o seu fogo efémero.
As velhas oliveiras da encosta, que guardavam na seiva o sal das lágrimas e da oração, estremeciam e uma delas, muito velha, sussurrou à lua:
“Tantas gerações de mãos que rezaram sob mim… e agora vejo crianças mascaradas de fantasmas, brincando com o que nunca deviam temer.”
A Lua, de rosto magro e saudoso, perguntava-se se os homens ainda se lembravam que ela também iluminava os caminhos dos anjos, mas respondeu:
“Não é o medo o problema, minha amiga, é o esquecimento. O homem esqueceu que a morte é caminho, não destino.”
Mas o tempo, que tudo transforma, caminhou sobre a noite, e quando os galos cantaram, na manhã seguinte, o sino da igreja ergueu-se sobre a aldeia como um coração que desperta.
Era Dia de Todos os Santos.
E as mesmas ruas que na véspera ecoavam gargalhadas, agora acolhiam passos lentos e vozes baixas.
As pessoas subiam ao cemitério com flores e velas, como quem sobe um monte de esperança. E as campas, antes frias, sorriram sob o toque das mãos humanas que as vestiam de flores e velas. Ali até as almas dos finados pareciam espreitar entre as pétalas e o incenso, e as campas, que tantas vezes guardaram lágrimas, murmuraram uma melodia suave:
“Não temais a noite, que ela é apenas o véu da aurora.”
Tiago, o menino da máscara, foi com a mãe ao semitério.
Levava na mão um raminho de crisântemos e no bolso, ainda o resto do doce da noite anterior.
Ao chegar junto da campa do avô, Dona Amélia ajoelhou-se.
Acendeu uma vela.
O lume tremia como uma oração viva.
Tiago perguntou:
“Mãe, o avô ouve-nos?”
E ela respondeu, num murmúrio que parecia também falar consigo própria:
“O avô vive noutro tempo, filho. Num tempo que não passa.”
O menino ficou a olhar o lume e, de repente, retirou do bolso o doce que tinha guardado e colocou-o junto da vela.
“É para o avô.”
E sorriu já com um sorriso leve, sem medo.
A chama comovida dançou mais alta, e o vento soprou suavemente.
Parecia aprovar o gesto.
No dia de Todos os Santos, as crianças da aldeia, já sem máscaras, saíram outra vez às ruas, mas agora, com os bolsos vazios e o coração cheio, dizendo:
“Pão por Deus!”
E cada porta que se abria era uma bênção partilhada, não um negócio programado.
Quem dava, dava por amor, pelas almas dos seus.
Quem recebia, levava o pão como símbolo de amor e memória.
A aldeia parecia renascer nesse gesto simples: um gesto que a indústria não podia vender, porque não cabia em embalagem.
À tardinha, o sol desceu como um sacerdote sobre o vale e o velho padre da paróquia, sentado ao pé do cruzeiro, falava para quem quisesse ouvir:
“As sombras só assustam quem esquece o sol.
O Halloween celebra o medo da morte.
O Dia de Todos os Santos celebra a vida que não morre.
Um vende máscaras, o outro revela rostos.
Um alimenta o vazio, o outro sacia a alma.”
E acrescentou, olhando para as estrelas:
“Aqueles que brincam com a morte como se fosse um brinquedo, acabam por esquecer o valor da vida.
Mas quem contempla a morte à luz de Deus, encontra nela a porta da eternidade e vive sem medos.”
Naquela noite, Dona Amélia adormeceu em paz.
Sonhou com o avô de Tiago, sentado sob uma grande oliveira.
Ele sorria e dizia:
“Ensina o menino a escolher a luz, mesmo quando o mundo vende trevas em promoção.”
E quando o sino tocou de novo ao amanhecer, o vento levou consigo a voz do tempo:
“Entre a Noite das Sombras e o Dia da Luz, o homem escolhe o que servir: o medo ou o amor.”
Na aldeia de São Martinho das Fontes, nunca mais o Halloween teve o mesmo sabor.
As crianças continuaram a brincar, mas agora sabiam que o medo só é senhor enquanto esquecemos o Amor.
E quando chegava o “Pão por Deus”, cada pedaço de pão era uma semente de eternidade partilhada entre o céu e a terra, entre os vivos e os que já vivem noutra forma de luz.
António da Cunha Duarte Justo
© Pegadas do Tempo
Nota do Autor
A sociedade veste o medo de festa e chama-lhe cultura.
Mas há uma diferença profunda entre celebrar a morte e celebrar os mortos.
A primeira afasta-nos do sentido; a segunda reconcilia-nos com o mistério.
O Halloween (noite de 31 de Outubro) alimenta o comércio das sombras; o Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) alimenta a memória da luz.
Ao longo do tempo, tradições e costumes diversos sobrepõem-se. A Igreja Católica, num processo de inculturação, adaptou vários costumes bárbaros à nova cultura vigente, criando rituais substitutos. Um exemplo notável é a substituição dos rituais pagãos destinados a afugentar o medo da morte pela celebração do Dia de Todos os Santos. Atualmente, contudo, são os interesses comerciais que mais proveito tiram destas tradições, ao promoverem e acentuarem os antigos ritos, como se vê na popularização do Halloween.
Talvez o desafio de cada um de nós hoje seja devolver às nossas crianças o sentido do sagrado, para que saibam que, na eternidade, a morte não é um fim, é apenas um novo começo de amor.
medo, vestido de brincadeira, passeava-se livremente.
Os risos pareciam leves, mas deixavam no ar um sabor vazio, como o de um pão sem miolo, e uma frieza reminiscente das tardes escuras de novembro.
Sentia-se uma tristeza nas casas meio adormecidas na sua caiada solidão, a contemplar as faces de abóbora que, em papel, consumiam de uma vez só o seu fogo efémero.
As velhas oliveiras da encosta, que guardavam na seiva o sal das lágrimas e da oração, estremeciam e uma delas, muito velha, sussurrou à lua:
“Tantas gerações de mãos que rezaram sob mim… e agora vejo crianças mascaradas de fantasmas, brincando com o que nunca deviam temer.”
A Lua, de rosto magro e triste, perguntava-se se os homens ainda se lembravam que ela também iluminava os caminhos dos anjos, mas respondeu:
“Não é o medo o problema, minha amiga, é o esquecimento. O homem esqueceu que a morte é caminho, não destino.”
Mas o tempo, que tudo transforma, caminhou sobre a noite, e quando os galos cantaram, na manhã seguinte, o sino da igreja ergueu-se sobre a aldeia como um coração que desperta.
Era Dia de Todos os Santos.
E as mesmas ruas que na véspera ecoavam gargalhadas, agora acolhiam passos lentos e vozes baixas.
As pessoas subiam ao cemitério com flores e velas, como quem sobe um monte de esperança. E as campas, antes frias, sorriram sob o toque das mãos humanas que as vestiam de flores e velas. Ali até as almas dos finados pareciam espreitar entre as pétalas e o incenso, e as campas, que tantas vezes guardaram lágrimas, murmuraram uma melodia suave:
“Não temais a noite, que ela é apenas o véu da aurora.”
Tiago, o menino da máscara, foi com a mãe.
Levava na mão um raminho de crisântemos e no bolso, ainda o resto do doce da noite anterior.
Ao chegar junto da campa do avô, Dona Amélia ajoelhou-se.
Acendeu uma vela.
O lume tremia como uma oração viva.
Tiago perguntou:
“Mãe, o avô ouve-nos?”
E ela respondeu, num murmúrio que parecia também falar consigo própria:
“O avô vive noutro tempo, filho. Num tempo que não passa.”
O menino ficou a olhar o lume e, de repente, retirou do bolso o doce que tinha guardado e colocou-o junto da vela.
“É para o avô.”
E sorriu já com um sorriso leve, sem medo.
A chama comovida dançou mais alta, e o vento soprou suavemente.
Parecia aprovar o gesto.
Mais tarde, as crianças da aldeia, já sem máscaras, saíram outra vez às ruas, mas agora, com os bolsos vazios e o coração cheio, dizendo:
“Pão por Deus!”
E cada porta que se abria era uma bênção partilhada, não um negócio programado.
Quem dava, dava por amor, pelas almas dos seus.
Quem recebia, levava o pão como símbolo de amor e memória.
A aldeia parecia renascer nesse gesto simples: um gesto que a indústria não podia vender, porque não cabia em embalagem.
À tardinha, o sol desceu como um sacerdote sobre o vale e o velho padre da paróquia, sentado ao pé do cruzeiro, falava para quem quisesse ouvir:
“As sombras só assustam quem esquece o sol.
O Halloween celebra o medo da morte.
O Dia de Todos os Santos celebra a vida que não morre.
Um vende máscaras, o outro revela rostos.
Um alimenta o vazio, o outro sacia a alma.”
E acrescentou, olhando para as estrelas:
“Aqueles que brincam com a morte como se fosse um brinquedo, acabam por esquecer o valor da vida.
Mas quem contempla a morte à luz de Deus, encontra nela a porta da eternidade e vive sem medos.”
Naquela noite, Dona Amélia adormeceu em paz.
Sonhou com o avô de Tiago, sentado sob uma grande oliveira.
Ele sorria e dizia:
“Ensina o menino a escolher a luz, mesmo quando o mundo vende trevas em promoção.”
E quando o sino tocou de novo ao amanhecer, o vento levou consigo a voz do tempo:
“Entre a Noite das Sombras e o Dia da Luz, o homem escolhe o que servir: o medo ou o amor.”
Na aldeia de São Martinho das Fontes, nunca mais o Halloween teve o mesmo sabor.
As crianças continuaram a brincar, mas agora sabiam que o medo só é senhor enquanto esquecemos o Amor.
E quando chegava o “Pão por Deus”, cada pedaço de pão era uma semente de eternidade partilhada entre o céu e a terra, entre os vivos e os que já vivem noutra forma de luz.
António da Cunha Duarte Justo
© Pegadas do Tempo
Nota
A sociedade veste o medo de festa e chama-lhe cultura.
Mas há uma diferença profunda entre celebrar a morte e celebrar os mortos.
A primeira afasta-nos do sentido; a segunda reconcilia-nos com o mistério.
O Halloween alimenta o comércio das sombras; o Dia de Todos os Santos alimenta a memória da luz.
Ao longo do tempo, tradições e costumes diversos sobrepõem-se. A Igreja Católica, num processo de inculturação, adaptou vários costumes bárbaros à nova cultura vigente, criando rituais substitutos. Um exemplo notável é a substituição dos rituais pagãos destinados a afugentar o medo da morte pela celebração do Dia de Todos os Santos. Atualmente, contudo, são os interesses comerciais que mais proveito tiram destas tradições, ao promoverem e acentuarem os antigos ritos, como se vê na popularização do Halloween.
Talvez o desafio de cada um de nós hoje seja devolver às nossas crianças o sentido do sagrado, para que saibam que, na eternidade, a morte não é um fim, é apenas um novo começo de amor.