Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo
A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.
O símbolo como acesso ao real
A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.
Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).
Conhecimento, consciência e limites da objetividade
Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.
Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.
Virgindade e novo paradigma ontológico
A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.
Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.
Encarnação e superação da dualidade
A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.
Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.
Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade
Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.
A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.
Conclusão: uma verdade em processo
A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.
Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.
“A verdade não é algo que possuímos, mas uma realidade que nos envolve e transforma.”
(K. Rahner)
Parabéns a todas as mães biológicas, espirituais e simbólicas.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo