A democracia perde quando se reduz a trincheiras
Na política, a luta pelo poder tende a eclipsar tudo o resto. Mas a vida, como a poesia, não se resume a competição. Há nela espaço para silêncios, perguntas e diálogo.
Quando tudo se converte em arma, desaparece o espaço para a partilha. Na arena partidária, há quem se porte como cão de guarda feroz, sem perceber que até as hienas, depois de se fartarem, permitem que outros se alimentem da presa.
Octavio Paz lembrava que “o poema é um espaço de reconciliação entre opostos”. A poesia pode ser ponte. A vida também. A política, pelo contrário, insiste em dividir para poder dominar: “bem” contra “mal”, reduzindo a multiplicidade dos factores apenas a falso-errado. Esse simplismo não só empobrece a democracia como a falsifica.
Até o voto sofre com essa lógica belicista. O slogan “o voto é a arma do cidadão” reduz a participação democrática a um gesto de guerra. Mas o eleitor não é mercenário. Como dizia Rui Barbosa, “a pior ditadura é a do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. Mutatis mutandis, o mesmo vale para uma política reduzida a trincheiras: nela, não há escapatória possível; deste mal sofre principalmente quem aspira ao poder pelo poder.
O voto não é bala. É ferramenta de construção coletiva. Alexis de Tocqueville já advertia: “a saúde de uma democracia depende da qualidade das funções privadas”. Ou seja, não basta ir às urnas de quatro em quatro anos. A democracia exige vigilância cívica, exigência de transparência e envolvimento comunitário.
A arte lembra-nos que nem tudo precisa de ser útil para ter valor. Nietzsche dizia que “temos a arte para não morrer da verdade”. O inútil, o lúdico e o contemplativo também sustentam a vida. A política faria bem em aprender com isso: governar não é apenas vencer lutas, é também criar encontros.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo