ENTRE A SOBERANIA ISLÂMICA E A SOBERANIA CONSTITUCIONAL

Como o globalismo liberal e as migrações transnacionais desafiam o modelo constitucional do Estado-nação

A evolução dos fluxos migratórios transnacionais ao longo do século XX e início do século XXI produziu transformações profundas nas sociedades europeias. As primeiras grandes vagas migratórias do pós-guerra, nomeadamente as dos Gastarbeiter, inscreveram-se num quadro funcional e economicista temporário: tratava-se de suprir necessidades económicas concretas de reconstrução industrial, pressupondo-se um regresso progressivo aos países de origem. O modelo subjacente era assimilacionista ou, no mínimo, integrador, ainda que imperfeito, e assentava numa expectativa de interculturalismo gradual.

As vagas migratórias contemporâneas diferem qualitativamente. São estruturalmente transnacionais, duradouras e enquadradas por uma ideologia de globalismo liberal que relativiza as categorias clássicas de soberania, fronteira, cidadania e pertença nacional. Simultaneamente, a União Europeia encontra-se num processo contínuo de transferência de competências soberanas dos Estados-nação para instâncias supranacionais, criando um duplo movimento de diluição: por um lado, da soberania política; por outro, da homogeneidade cultural mínima que historicamente sustentou a coesão constitucional europeia.

Estas duas dinâmicas convergentes, globalização migratória e integração supranacional, geraram um desconforto social crescente. Tal desconforto manifesta-se na perceção de abdicação cultural e social por parte do Estado, que parece incapaz de articular uma narrativa coerente de cidadania, pertença e futuro comum. Aqui os políticos europeus em vez de se abrirem a uma solução dos problemas que eles mesmos criaram às populações autóctones, tentam desviar a atenção dos mesmos recorrendo a discursos abusivos e antidemocráticos em torno do populismo e numa atitude dogmática perante a crítica americana à maneira de agir da política da EU.

Multiculturalismo, guetização e o fim do interculturalismo esperado

A presença islâmica na Europa, particularmente visível em países como a Alemanha, onde residem cerca de seis milhões de muçulmanos, caracteriza-se em muitos contextos por uma forte concentração territorial e social. A formação de grandes guetos urbanos, associados a um multiculturalismo fechado, tem frustrado a expectativa intercultural que marcou o período dos Gastarbeiter. Em vez de uma interação transformadora entre culturas, tem-se afirmado uma coexistência paralela, com sistemas normativos, simbólicos e identitários distintos.

Este fenómeno coloca desafios não apenas sociológicos, mas profundamente constitucionais. O conceito europeu de Estado, fundado na tríade pessoa, território e constituição, entra em tensão quando parcelas significativas da população estruturam a sua identidade cívica a partir de uma pertença religiosa transnacional, cuja referência normativa não é a constituição do Estado de residência, mas a Ummah, entendida como comunidade islâmica global.

Cidadania europeia e cidadania islâmica: conflito de antropologias jurídicas

No constitucionalismo europeu, a cidadania articula elementos de pertença (direito de sangue e/ou de solo) com direitos e deveres civis e políticos universais, assentes numa conceção de dignidade humana inerente a cada indivíduo. Esta matriz, historicamente influenciada por uma antropologia cristã secularizada, reconhece a dignidade como pré-política e inata.

Em contraste, a cidadania islâmica, enquanto conceito normativo, funda-se na Sunnah e na trilogia Corão-Sharia-Ahadith. Os direitos e deveres derivam da pertença religiosa à Ummah, sendo os princípios de dignidade, igualdade e justiça plenamente aplicáveis apenas aos membros dessa comunidade. Trata-se de uma conceção coerente no seu próprio sistema, mas não universalista no sentido ocidental. Daí a guerra aberta de grupos islâmicos que se sabem cobertos pela doutrina islâmica contra o “modernismo ocidental e cristão”, mas que a sociedade europeia qualifica de extremistas, numa de se enganarem a si mesmos!

Este desfasamento antropológico e jurídico gera conflitos estruturais. Não se trata apenas de práticas culturais distintas, mas de modelos constitucionais incompatíveis no plano dos fundamentos. A exigência de aplicação da Sharia em contextos europeus, como se observa no Reino Unido, onde operam tribunais islâmicos paralelos em matérias civis, questiona diretamente o monopólio estatal do direito e da jurisdição, elemento essencial da soberania moderna e que os políticos oportunisticamente tomam como dado aceite.

O embaraço político e o recurso ao eufemismo

Perante esta realidade, elites políticas e peritos europeus enfrentam um dilema comunicacional e normativo. A dificuldade em nomear claramente as tensões existentes conduz frequentemente ao uso de eufemismos e narrativas simplificadoras. O resultado é um défice informacional que afeta tanto as populações autóctones como as comunidades migrantes, criando uma paz aparente sustentada por desinformação tácita.

A emergência de manifestações públicas a favor de um califado em cidades europeias, como Hamburgo, revela que o problema não é meramente teórico. No entanto, o debate permanece frequentemente interdito pelo receio de estigmatização, o que paradoxalmente impede a formulação de soluções democráticas e juridicamente sólidas, além de conduzirem a uma atitude política e mediática hipócrita e de má-fé em relação ao futuro.

Inteligência Artificial como apoio à análise do fenómeno

O saber abrangente da Inteligência Artificial poderia oferecer uma contribuição relevante na análise da problemática em via. A IA contemporânea, especialmente nos domínios da ciência de sistemas complexos, análise de redes e modelação preditiva, demonstra que sociedades são sistemas adaptativos não lineares. Pequenas alterações nos parâmetros normativos, por exemplo, no conceito de cidadania ou no reconhecimento jurídico de sistemas paralelos, podem gerar efeitos emergentes imprevisíveis a médio e longo prazo.

Além disso, o emprego da IA poderia evidenciar os limites das narrativas ideológicas simplificadas. Modelos baseados em dados mostram correlações entre guetização, ausência de mobilidade social, radicalização identitária e enfraquecimento da confiança institucional. Ignorar estas variáveis por razões políticas ou meramente de interesse económico equivale a treinar um sistema com dados enviesados: o resultado será inevitavelmente disfuncional, vindo-se a criar problemas previsíveis como os acontecidos no território da antiga Jugoslávia.

Dos dados algorítmos conclui-se que sistemas normativos concorrentes dentro do mesmo espaço jurídico reduzem a coerência do “modelo constitucional”, levando à fragmentação da autoridade. Um Estado que abdica da clareza normativa comporta-se como um sistema sem função-objetivo definido.

Soberania em transformação e o risco de um novo tipo de Estado

A soberania, entendida modernamente como elemento constitutivo do Estado, perde densidade quando subordinada exclusivamente à lógica económica do globalismo liberal. A cultura autóctone, longe de ser um resíduo folclórico, funciona como infraestrutura simbólica da coesão social. A sua erosão sem substituição funcional coloca em causa o próprio povo enquanto sujeito político.

A Europa encontra-se, assim, num momento de transição para uma forma ainda indefinida de Estado. Esta transição exige uma análise comparativa rigorosa entre o conceito europeu de nação e o conceito islâmico de Ummah, entre constitucionalismos seculares e religiosos, e entre modelos de soberania territorial e comunitária.

Integração, cidadania e honestidade política

A questão central permanece: como articular imigração, integração e cidadania sem exigir uma transformação radical apenas aos cidadãos autóctones, preservando intactas visões do mundo incompatíveis com o constitucionalismo europeu? Esta assimetria normativa corrói a legitimidade democrática e alimenta ressentimentos mútuos.

Só uma política séria, baseada num interculturalismo exigente e não num multiculturalismo acrítico, poderá preparar uma sociedade europeia verdadeiramente humanista e pacífica. Tal política exige coragem intelectual, análise interdisciplinar (convergência de saberes a nível de direito, sociologia, ciência política, ciência de dados, IA) e rejeição da hipocrisia discursiva.

Enquanto o Islão for tratado como tabu analítico, e não como objecto legítimo de estudo comparado, a Europa continuará a adiar soluções, criando situações de Soberania Islâmica em desafio com a Soberania Constitucional. A inteligência humana e concretamente a tradição europeia ensina que problemas não explicitados não podem ser resolvidos; devido à incúria política e ao oportunismo partidário, apenas se acumulam até atingirem pontos de rutura.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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CONSCIÊNCIA A CHAMA SECRETA

Não veio do trono nem da lei,
nem da voz da praça em claridade.
Veio do centro onde ninguém
assina pactos com a cidade.

Não tem estandarte nem sinal,
não conta tempos nem razões.
Arde em silêncio original,
sem pedir forma às instituições.

A fé passa, não se vê,
por entre datas e poderes.
Quem nela mora aprende a ser
mais do que o mundo quer dizer.

É o lugar que não admite
posse, voto ou majestade. (É luz que não se decreta)
Por isso os tronos têm temor
da luz sem rosto e sem medida.

 

Quem guarda o fogo interior
pode perder tempo e visão.
Mas leva intacto o seu senhor:
um reino já fora da nação.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(Poema desabafo feito como grito de alerta durante o “governo” Covid-19)

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SANÇÕES DE OPINIÃO E LIBERDADE EM BRUXELAS: UM ALERTA

Não estará a UE a preparar os Estados membros para uma Democradura?

A recente decisão (1) do Conselho da União Europeia de sancionar doze cidadãos europeus no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum, incluindo analistas, autores e comentadores públicos, levanta questões sérias que não podem ser ignoradas numa Europa que se pretende humanista, democrática e fundada no Estado de Direito.

As medidas agora aplicadas, congelamento de bens, proibição de disponibilização de recursos económicos e interdição de entrada ou trânsito no território da União, não são meramente simbólicas. Na prática, configuram uma forma de exclusão civil e económica que afeta profundamente a vida pessoal e profissional dos visados. Embora juridicamente qualificadas como “medidas restritivas” e não como penas criminais, o seu impacto real aproxima-se de uma morte civil parcial, decretada sem julgamento penal, sem contraditório prévio e sem decisão de um tribunal independente.

O contexto político não é neutro

A guerra na Ucrânia não surgiu num vazio histórico nem político. Diversos analistas, académicos e responsáveis políticos, incluindo vozes ocidentais, reconheceram ao longo dos anos que o alargamento da NATO para Leste, a instrumentalização política de divisões internas na Ucrânia e a transformação do país num palco de confronto geoestratégico contribuíram para a escalada de tensões que desembocou no conflito armado.

Reconhecer esta complexidade não equivale a justificar a invasão russa, mas sim a rejeitar leituras simplistas que reduzem a guerra a uma narrativa maniqueísta entre o bem absoluto e o mal absoluto. É precisamente este espaço de análise crítica que parece hoje cada vez mais estreito na União Europeia.

Sanções da opinião: uma fronteira perigosa

O elemento mais inquietante da decisão europeia reside no facto de várias das pessoas sancionadas o terem sido não por actos materiais comprovados, mas essencialmente por discursos, análises e interpretações consideradas “alinhadas” com narrativas russas ou classificadas como “manipulação de informação”.

Aqui surge um problema central: quem define, em última instância, a fronteira entre análise dissidente, opinião crítica e propaganda hostil? Quem manipula quem?

Quando essa definição é feita por um órgão político, sem controlo judicial prévio, abre-se um precedente perigoso. A liberdade de expressão, consagrada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, deixa de ser um direito fundamental e passa a ser um direito condicionado à conformidade com a narrativa oficial do momento.

Uma comparação desconfortável, mas instrutiva

A comparação com a Inquisição medieval é frequentemente rejeitada como exagerada. Contudo, do ponto de vista histórico-jurídico, ela merece reflexão. A Inquisição, apesar da violência, intolerância e abusos que a caracterizaram, acabou por introduzir, paradoxalmente, elementos processuais como a necessidade de formular acusações, ouvir o acusado e permitir alguma forma de defesa.

No caso das sanções europeias atuais, assistimos a uma regressão inquietante: não há acusação penal formal, não há julgamento, não há defesa prévia. O visado toma conhecimento da sua “condenação” apenas após a sua publicação no Jornal Oficial. A possibilidade posterior de recurso aos tribunais europeus existe, mas ocorre a posteriori, quando o dano pessoal, reputacional e económico já está consumado.

Lições recentes que não deviam ser esquecidas

A experiência das medidas excecionais durante a pandemia da Covid-19 mostrou como, em situações de medo e urgência, direitos fundamentais podem ser suspensos ou relativizados com surpreendente facilidade. O autoritarismo que então foi justificado em nome da saúde pública surge agora sob o pretexto da segurança, da guerra e da luta contra a desinformação.

O denominador comum é claro: a normalização do estado de excepção.

O risco para a Europa

Uma Europa que pune opiniões dissidentes com sanções administrativas de efeito devastador decompõe os valores que proclama defender. A força moral da União Europeia sempre residiu na sua adesão ao pluralismo, ao debate livre e à primazia do direito sobre a conveniência política.

Transformar a divergência intelectual em ameaça à segurança equivale a empobrecer o espaço público e a fragilizar a própria democracia europeia, que, entretanto, se transforma numa democradura. Podemos interpretar a atuação recente das instituições europeias como um passo no sentido de um ‘hiperpresidencialismo’ a nível da UE, em detrimento do poder dos parlamentos nacionais? Seria de questionar a razão porque os Media europeus não tematizam este facto.

Conclusão

Este não é um apelo à defesa de qualquer potência estrangeira, nem à legitimação da guerra. É um apelo à lucidez.
A União Europeia deve combater a desinformação com argumentos, transparência e debate, não com listas negras políticas. Caso contrário, arrisca-se a trocar a sua herança humanista por uma lógica de exclusão que a história europeia conhece bem e que deveria ter definitivamente superado.

A resposta a crises sucessivas (financeira, migratória, sanitária) tem consistido numa transferência permanente de poderes para Bruxelas. Não estaremos a caminho de uma ‘democracia sem escolha’ a nível europeu?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Council Decision (CFSP) 2025/2572 of 15 December 2025 amending Decision (CFSP) 2024/2643 concerning restrictive measures in view of Russia’s destabilising activities

https://eur-lex.europa.eu/eli/dec/2025/2572/oj

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O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

Um povo com medo aceita quase tudo.
Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso
não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

O medo inato: dom ambíguo da sobrevivência

Nem todo o medo é patológico ou manipulável. Há um medo originário, inscrito na carne, anterior à cultura e à ideologia. É o medo que protege: diante do abismo, do fogo, do predador, da ameaça real. Ele prepara o corpo para lutar ou fugir, aguça os sentidos, preserva a vida. Sem ele, não haveria humanidade.

Este medo é pré-moral: não é bom nem mau; é necessário. O problema começa quando o medo deixa de responder a perigos concretos e passa a ser alimentado por cenários, narrativas e projeções. O instinto torna-se imaginação ansiosa. A defesa transforma-se em suspeita permanente. Deste modo, uma emoção saudável pode ser colonizada.

O medo da imagem: de ser visto, julgado, rejeitado

Há um medo menos visível e talvez mais profundo: o medo do olhar do outro. O receio de não corresponder, de perder estatuto, de ser julgado pela sociedade. Este medo toca a nossa identidade e a imagem que construímos de nós próprios.

Aqui, o medo já não protege o corpo, mas protege uma máscara.
Tememos: perder reconhecimento, ser desclassificados, deixar de pertencer.

Este medo social cria conformismo, silêncio, cumplicidade passiva. Ele explica por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente sabem ser frágeis: discordar custa mais do que obedecer e pensar faz doer.

Existencialmente, este medo revela uma fragilidade profunda: quando a dignidade depende do aplauso, qualquer ameaça simbólica se torna insuportável.

O medo teológico: da confiança quebrada à idolatria da segurança

Na linguagem bíblica, o medo surge quando a confiança ontológica se rompe. Não é Deus que provoca o medo; é a perda da relação. A partir daí, o mundo torna-se perigoso.

Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro ou na justiça, ela substitui Deus pela segurança. E a segurança, quando absolutizada, torna-se ídolo. Tudo o que ameaça esse ídolo é demonizado.

O estrangeiro, o diferente, o dissidente deixam de ser pessoas: tornam-se símbolos do caos. O medo já não pergunta “o que é verdadeiro?”, mas “o que me protege?”.

O medo político-crítico: governa-se melhor quem treme

As elites políticas, económicas ou mediáticas conhecem bem esta dinâmica. O medo é uma ferramenta de governo porque: simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excpecionais.

Em contextos de guerra geopolítica, como no conflito na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções: medo do inimigo externo, medo do colapso económico, medo do isolamento e medo de questionar narrativas dominantes.

Não se trata de negar a complexidade nem a gravidade real da guerra. Trata-se de reconhecer que o medo, quando não é pensado, torna-se argumento político. Ele transforma cidadãos em espectadores emocionais, prontos a aceitar sanções, rearmamentos, censuras ou sacrifícios sociais sem debate proporcional.

O medo deixa de ser reação a um perigo e passa a ser condição permanente de governo.

Pensar o medo: o gesto verdadeiramente subversivo

O problema não é sentir medo. O problema é não o interrogar.

Pensar o medo é perguntar: é proporcional ao perigo? Quem ganha com ele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe?

Quem pensa o seu medo não se torna violento. Torna-se livre. E a liberdade é sempre desconfortável para quem governa através da ansiedade.

Parábola do vale enevoado

Havia um vale cercado por montanhas. Durante gerações, as pessoas atravessavam-no para chegar ao outro lado, onde havia água e árvores. Um dia, uma névoa começou a descer lentamente.

No início, ninguém se preocupou. Mas alguns disseram:
E se houver monstros na névoa?”

Outros começaram a ouvir ruídos que sempre existiram, mas que agora pareciam ameaçadores. Um grupo construiu uma torre e declarou:
Só nós vemos o que está escondido. Sigam-nos e estarão seguros.”

A cada dia, a névoa parecia mais densa, não porque aumentasse, mas porque ninguém ousava atravessá-la. As crianças nasceram a ouvir que o vale era mortal. Nunca tinham visto monstros, mas tinham aprendido a temê-los.

Um idoso, que ainda se lembrava do caminho, disse um dia:
A névoa não mata. O que mata é esquecer para onde se ia.”

Poucos o ouviram. Mas os que o seguiram atravessaram lentamente o vale. Descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. Do outro lado, viram algo curioso: a torre continuava de pé, mas sem ninguém dentro. Ela só funcionava enquanto todos acreditavam que era necessária.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

RESUMO:

O MEDO QUE NOS GOVERNA: INSTINTO, IMAGEM E PODER

O medo humano manifesta-se em múltiplas dimensões que vão do instinto biológico à manipulação política. Compreender esta complexidade é essencial para distinguir entre proteção legítima e submissão instrumentalizada.

O medo como instinto vital

O medo originário é um mecanismo de sobrevivência necessário, inscrito biologicamente antes de qualquer construção cultural. Ele protege-nos de perigos reais e prepara o corpo para responder a ameaças concretas. Este medo é pré-moral e funcional. O problema surge quando deixa de responder a perigos objetivos e passa a ser alimentado por narrativas, cenários projetados e imaginação ansiosa, transformando-se num estado permanente de suspeita.

O medo social e a tirania da imagem

Existe um medo mais subtil mas igualmente poderoso: o receio do julgamento alheio. Tememos perder reconhecimento, estatuto e pertença social. Este medo já não protege o corpo, mas sim uma máscara identitária que construímos. Ele gera conformismo, silêncio e cumplicidade passiva, explicando por que pessoas inteligentes aceitam narrativas que interiormente reconhecem como frágeis. Discordar exige mais coragem do que obedecer, e o pensamento crítico torna-se doloroso quando a dignidade depende do aplauso externo.

A dimensão teológica: da confiança à idolatria

Na perspectiva bíblica, o medo surge quando se rompe a confiança ontológica fundamental. Quando uma sociedade perde a confiança no sentido, no futuro e na justiça, substitui essas âncoras pela segurança absoluta, que se transforma em ídolo. O diferente, o estrangeiro e o dissidente deixam de ser pessoas para se tornarem símbolos do caos. O medo deixa de perguntar “o que é verdadeiro?” para apenas questionar “o que me protege?”.

O medo como ferramenta de poder

As elites políticas, económicas e mediáticas reconhecem o medo como instrumento eficaz de governo porque ele simplifica a realidade, suspende o pensamento crítico e legitima decisões excecionais. Em contextos como a guerra na Ucrânia, o medo é amplificado em múltiplas direções, transformando cidadãos em espectadores emocionais dispostos a aceitar sanções, censuras e sacrifícios sem debate proporcional. O medo deixa de ser reação pontual para se tornar condição permanente de governação.

Pensar o medo como acto de libertação

O verdadeiro problema não é sentir medo, mas não o interrogar. Pensar o medo exige perguntar: é proporcional ao perigo? Quem beneficia dele? Que imagens o alimentam? Que silêncios impõe? Quem pensa criticamente o próprio medo não se torna violento, mas livre. E essa liberdade é sempre incómoda para quem governa através da ansiedade coletiva.

A parábola do vale enevoado

O autor conclui com uma parábola ilustrativa: num vale cercado por montanhas, uma névoa desceu e alguns começaram a falar de monstros invisíveis. Uma torre foi erguida por quem prometia segurança. As gerações seguintes cresceram temendo atravessar o vale, não pela névoa em si, mas pelas narrativas que a rodeavam. Um idoso que se lembrava do caminho ensinou que “a névoa não mata; o que mata é esquecer para onde se ia”. Os que ousaram atravessar descobriram que a névoa apenas escondia, não destruía. A torre permanecia de pé, mas vazia, funcionava apenas enquanto todos acreditavam na sua necessidade.

Um povo que pensa o seu medo torna-se perigoso não para os outros, mas para quem vive do medo deles.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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QUANDO A CONFIANÇA ACENDE A NOITE

Medo, confiança e o sagrado da infância

O medo acompanha o humano desde sempre. Antes de ser emoção psicológica ou instrumento político, é experiência elementar; é a reação do corpo e da imaginação perante o desconhecido. No escuro, o medo intensifica-se porque a realidade perde contornos. O invisível expande-se e, com ele, a sensação de ameaça. No entanto, não é o escuro em si que paralisa, mas a ausência de confiança.

A confiança não elimina a noite da vida! Ela acende uma luz interior que permite caminhar nela.

O medo como experiência originária

Há um medo saudável, inato, ligado à sobrevivência. Ele protege, alerta, prepara o corpo para reagir. Mas há também um medo que nasce quando o mundo deixa de ser percebido como habitável. Este medo não reage a um perigo concreto; reage à incerteza radical.

Na criança, essa experiência é total. O escuro não é apenas falta de luz: é espaço onde fantasia e realidade caminham juntas. O medo não é irracional; é proporcional à intensidade do mistério. A criança ainda não separou o visível do invisível, o simbólico do real. Por isso, o medo é também abertura, abertura mal protegida.

A infância como lugar do sagrado

A infância é o lugar onde o mundo ainda se apresenta como presença antes de conceito. O sagrado não é uma ideia, mas uma atmosfera. A criança não pergunta se algo é verdadeiro; pergunta se é confiável.

Por isso, a confiança é a primeira forma de fé. Antes de qualquer doutrina, há a experiência de se ser acompanhado. O sagrado manifesta-se como proximidade, como guarda silenciosa, como certeza difusa de que o mundo, apesar do escuro, não é hostil.

Quando essa confiança existe, o medo não desaparece, mas perde o poder de fechar o horizonte.

Uma memória: rezar no escuro

Entre os nove e os doze anos, quando regressava sozinho de casa da minha avó, em Santa Marinha de Tropeço, situada atrás de um monte, a cerca de um quilómetro da casa dos meus pais, em Várzea, atravessava a noite envolto no escuro e nas sombras. O caminho era o mesmo, mas à noite tornava-se outro: sombras, ruídos, imaginação desperta. Para uma criança, a noite não é apenas ausência de luz: é espaço povoado de presenças, de figuras indefinidas, de receios que não são ainda distinguidos entre o imaginado e o real.

Não combatia o medo com explicações, mas com uma prática simples aprendida de minha mãe. Rezava todo o percurso uma oração popular. Ao rezar, algo mudava: o espaço deixava de ser vazio, o caminho tornava-se habitado. O medo continuava presente, mas já não estava sozinho. A oração não afastava perigos reais nem imaginários; reinscrevia o medo numa relação. O escuro continuava escuro, mas já não era absoluto. (Talvez seja isso que mais nos falta hoje: não a ausência de medo, mas palavras, rituais e vínculos que nos permitam atravessá-lo sem nos deixarmos governar por ele.) Apresento aqui a oração, uma memória da minha infância, tempo em que o mundo ainda se apresentava como imagem habitada de sentido e onde fantasia e realidade percorriam a mesma estrada.

São Bartolomeu me disse
que não tivesse medo de nada,
nem da noite nem da sombra
nem do que tem a mão furada.

Quatro cantos tem a casa,
quatro velinhas a arder.
Quatro anjos me acompanhem,
se esta noite eu morrer.

Hoje compreendo: aquela oração era um interruptor de luz. Não iluminava o caminho exterior, mas acendia uma confiança interior que permitia avançar. funcionava como teologia elementar. Como criança não precisava de explicações; precisava de saber-me acompanhado. A fé, antes de ser conceito, era companhia no escuro.

Confiança: não é negação do medo, mas abertura à vida

A confiança não é ingenuidade nem fuga da realidade. É uma decisão existencial: aceitar que a vida não é totalmente transparente, mas também não é absurda. Onde há confiança, o medo deixa de ser centro organizador da experiência.

Teologicamente, a confiança é relação. Não se confia no vazio, mas numa presença, nomeada ou não, algo que nos acompanha. A confiança cria ressonância: com o mundo, com os outros, consigo mesmo. Ela abre em vez de fechar, acolhe em vez de excluir.

Por isso, um ser humano confiante não precisa de controlar tudo. Pode caminhar no escuro sem se deixar dominar por ele.

Quando a confiança desaparece, o medo governa

Uma sociedade que perde a confiança fundamental torna-se vulnerável à manipulação. O medo ocupa o lugar do sentido. Fecha-se ao outro, ao futuro, à complexidade. O escuro deixa de ser mistério e torna-se ameaça absoluta.

Por isso, quem governa pelo medo desconfia profundamente da confiança. Um povo confiante pensa, discerne, dialoga. Um povo dominado pelo medo aceita quase tudo.

Acender a luz sem destruir a noite

A confiança não destrói a noite; ela humaniza-a. Não elimina o medo; coloca-o numa relação maior. Talvez seja esta a tarefa espiritual do nosso tempo: reaprender a acender pequenas luzes interiores que nos permitam caminhar juntos no escuro.

A criança que reza no caminho ensina ao adulto que pensa: a vida não precisa de ser totalmente compreendida para ser vivida. Basta que seja confiável. E quando a confiança se acende, o mundo, mesmo na sombra, volta a ressoar como lar.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

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