O Espelho Rachado da Liberdade

(Alegoria da Cidadania Usurpada)

 

Nas praças do tempo ressoam tambores,

mas dançam os mesmos — herdeiros do trono

que de mão em mão passam o cetro mudo,

enquanto o povo, de olhos vendados, aplaude o luto.

 

A política, velha atriz de mil máscaras,

oferece-nos sonhos envernizados,

liberdades com correntes invisíveis,

e um céu onde voar… só com asas emprestadas.

 

Dizem-nos: “És livre! Escolhe!” —

mas entre sombras, quem vê o caminho?

Prometem mundos e fundos

desde que não se deseje o mais simples:

uma vida de pão e alegria,

de riso e responsabilidade partilhada.

 

Vendemo-nos por moedas de direitos vazios,

e em troca tiram-nos a alma do dia.

Chamam a isso progresso —

mas é só o velho truque de sempre:

dar à pedra o nome de pão,

à mordaça o nome de voz.

 

Os plutocratas, senhores da fala,

altifalantes do engano bem vestido,

ensurdecem-nos com promessas,

enquanto a dignidade escorre pelas frestas da história.

 

E nós, filhos da esperança,

tateamos no escuro por um gesto,

um sinal de que viver ainda pode ser mais

do que obedecer sorrindo.

 

Oh, democracia, irmã ferida da justiça,

onde é que te escondes?

Em que canto te recolheste

enquanto te desfiguram com trapos de ideologia e medo?

 

Mas ainda há quem sonhe —

e quem se erga.

Na poeira do esquecimento

nascem vozes que recusam a servidão disfarçada.

 

Que a liberdade não seja licença para a indiferença,

mas sim o fogo que ilumina o rosto de cada um,

na alegria de sermos diferentes

e iguais no direito de existir com dignidade.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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EUROPA SOLO E SEM HERDEIROS

Um Retrato da Solidão Demográfica

A Eurostat, essa discreta contabilista do Luxemburgo, anunciou recentemente que a Europa em 2024 albergava 202 milhões de famílias (agregados domésticos). Deste número, 75 milhões eram compostas por uma única alma — solitários sem filhos, a marchar triunfantes no pódio das estatísticas, com um crescimento de 16,9%. Em segundo lugar, os casais sem filhos (49,1 milhões) e outras configurações domésticas igualmente estéreis (30,5 milhões). E, lá no fim, quase como uma relíquia do passado, os casais com filhos (30,3 milhões), cuja quota encolheu 4,4% desde 2015.

Uma Europa que envelhece, que se fecha em apartamentos minúsculos, que celebra a liberdade individual, mas se assusta com engravidamentos. E, no entanto, essa mesma sociedade lamenta-se da imigração, como se os refugiados fossem um incómodo matemático: queremos menos gente, mas também queremos quem faça o trabalho que já não nos apetece. A economia, essa divindade caprichosa, prefere importar braços em vez de exportar oportunidades. E assim se constrói o paradoxo: condenamos os que fogem da miséria enquanto nos encolhemos no nosso bem-estar estéril.

No meio de tudo isto, a política alimenta fantasmas. Inventa inimigos, semeia divisões, transforma a convivência num campo de batalha. O belicismo, outrora disfarçado de último recurso, agora passeia-se de cabeça erguida, travestido de virtude cívica. E o cidadão, confuso entre slogans e estatísticas, descarrega a sua frustração no estrangeiro — esse bode expiatório sempre conveniente.

Os números, frios e implacáveis, desenham uma Europa em declínio. Seriam ainda mais sombrios se as estatísticas ignorassem os muçulmanos, esses fiéis à “lei natural” que, ao contrário dos nativos, ainda ousam multiplicar-se para poderem engrandecer a sua “Uma”! Ironia das ironias: enquanto uns promovem o aborto como bandeira progressista, outros cultivam guetos onde a natalidade é vista como um dever e indícios de progresso. Dois mundos que coexistem sem se entenderem, alimentando uma guerra cultural que ninguém assume, mas que todos combatem à socapa.

E no meio deste teatro, Bruxelas dança. Os donos do poder e disto tudo deliciam-se com os seus discursos, enquanto a população — nativa e migrante — é reduzida a mero figurante num drama que não escolheu. Vítimas de um sistema que as explora e depois as põe umas contra as outras.

A diminuição demográfica tal como a agressão aos estrangeiros são o sintoma, não a doença. A doença chama-se irresponsabilidade política — essa arte estéril de governar pelo conflito, de alimentar medos em vez de esperanças, de criar bodes expiatórios em vez de assumir falhas. Enquanto o povo e os migrantes se gladiam, os verdadeiros responsáveis observam, impunes, do alto dos seus cadeirões sem terem de ser judicialmente julgados pelos seus actos. São eles os arquitetos desta guerra entre pobres, e, no entanto, continuam a chamar-lhe ‘democracia’ dos seus valores que não dos da Europa.

Resta perguntar: quando a última família tradicional desaparecer, quem trará flores ao seu funeral?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

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O Ensino da Língua Materna: Realidade, Intenções e Interesses

Uma Reflexão Crítica e Experiencial

Introdução

O ensino da língua materna em contextos de emigração transcende largamente a mera transmissão de competências linguísticas. Envolve, de forma indissociável, questões culturais, identitárias, políticas e estratégicas. O meu percurso enquanto docente e representante do ensino do Português no estado alemão do Hesse ao longo das décadas de 1980 e 200 permitiu-me observar de perto não só as realidades práticas do ensino, mas também os fios subterrâneos — por vezes invisíveis, outras vezes descaradamente evidentes — que conectam intenções políticas, interesses institucionais e decisões pedagógicas.

Este ensaio pretende, à luz dessa experiência concreta, articular uma análise crítica da evolução dos cursos de formação de professores e do ensino da Língua Materna (LM) no Hesse, expondo simultaneamente as convergências e tensões entre os interesses portugueses e alemães, e refletindo sobre as implicações mais profundas desta realidade. É, entretanto, de reconhecer que o ensino da Língua Materna (LM) no Hesse era exemplar em comparação com outros estados porque reconhecia o ensino da língua materna integrando a nota da língua materna com nota relevante no meio das outras disciplinas curriculares.

As Primeiras Estruturas: Intenções Declaradas e Realidades Paralelas

Nos anos 80, Portugal e o Hesse deram os primeiros passos concretos para estruturar o ensino do Português como Língua Materna. À superfície, destacava-se o propósito nobre de garantir aos filhos dos emigrantes portugueses o acesso à sua língua e cultura, conforme plasmado nos compromissos constitucionais portugueses, mas também de abertura e boa vontade alemã. No entanto, a forma como este processo se desenrolou, revelou desde o início um jogo complexo de interesses, metodologias e visões divergentes.

Enquanto Portugal, através dos seus cursos de formação (1) organizados por Lisboa e dinamizados pelo consulado em Frankfurt, seguia uma abordagem de cima para baixo, ancorada primeiro na pedagogia  behaviorista (Pavlov) de aprendizagem (repetição memorização) seguindo-se depois  a aplicação das teorias linguísticas e pedagógicas (como a gramática generativa de Chomsky), o Hesse optava por uma estruturação prática e administrativa, partindo da realidade concreta das escolas, dos professores e dos alunos.

Este contraste não se traduzia apenas em metodologias pedagógicas diferentes, mas refletia também diferenças profundas na conceção do papel da língua: Portugal via-a inicialmente como veículo de cultura e identidade; a Alemanha, como ferramenta de integração escolar e social.

O Conflito Subtil: Entre Teoria e Pragmática

A convivência destas duas linhas — a portuguesa, mais teórica e cultural, e a alemã, mais pragmática e administrativa — gerou inevitavelmente pequenos atritos. Recordo-me dos seminários no consulado de Frankfurt, sob a orientação do Dr. Silvério Marques, marcados por um discurso fortemente conceptual e ideológico, contrastando com as reuniões da responsabilidade de Wiesbaden, lideradas pela Prof.ª Zulema de Sousa, onde prevalecia a preocupação prática e a maior articulação com as políticas educativas do estado do Hesse. Posteriormente, quando a Prof. Cristina Arad assumiu a representação da LM em Wiesbaden, isso trouxe estabilidade e reduziu os conflitos.

Não obstante, foi precisamente na dialética entre estas duas abordagens que os professores de LM puderam beneficiar de uma formação contínua relativamente equilibrada, ainda que, como observei, o interesse prático e a procura de materiais aplicáveis às aulas se sobrepusessem frequentemente à compreensão crítica das orientações políticas subjacentes.

A Mudança dos Anos 90: Da Cultura à Funcionalidade

A década de 1990 trouxe consigo uma inflexão clara no ensino da LM, tanto em Portugal como no Hesse. Sob o manto da integração europeia e da globalização, o ensino da língua materna começou a ser progressivamente esvaziado do seu conteúdo cultural identitário, reduzido a uma competência funcional, instrumental, desligada da alma da nação, parafraseando António Sérgio.

A criação do Instituto Camões, com sucessivas reestruturações e reorientações sob tutela ora do Ministério da Educação, ora do Ministério dos Negócios Estrangeiros, simboliza esta transição. A promessa constitucional de assegurar o ensino da língua e cultura portuguesas aos filhos dos emigrantes foi, na prática, diluída num discurso técnico de ensino da língua, formatado segundo os parâmetros europeus, mas amputado do seu enraizamento cultural.

No Hesse, esta mudança encaixou-se perfeitamente na tradição administrativa alemã, onde o ensino da LM, embora reconhecido e integrado no currículo escolar, sempre foi visto mais como ferramenta de integração social do que como espaço de afirmação cultural.

Intenções e Interesses: As Camadas Invisíveis da Realidade

Qualquer análise séria da evolução do ensino da LM não pode ignorar o entrelaçamento de intenções e interesses — uns legítimos, outros discutíveis — que sustentam as políticas educativas. No caso do ensino do Português no Hesse, destaco três níveis de interesse que, ao longo dos anos, se cruzaram e por vezes colidiram:

Interesses Pedagógicos: A preocupação com a qualidade do ensino, a formação dos professores e o sucesso educativo dos alunos.

Interesses Políticos e Geoestratégicos: A utilização da língua como instrumento de soft power, de afirmação internacional ou de diluição identitária, conforme as conjunturas.

Interesses Administrativos e Sociais: A necessidade de gerir a diversidade cultural nas escolas, promover a integração e evitar conflitos sociais.

Estes interesses nem sempre foram transparentes, e o professor no terreno, embora peça fundamental do sistema, foi frequentemente tratado como mero executante, muitas vezes alheio às motivações mais profundas das mudanças curriculares ou institucionais.

Considerações Finais: O Risco da Língua sem Alma

A minha experiência no Hesse mostrou-me que a língua, quando separada do seu contexto cultural, perde a sua força transformadora e identitária, tornando-se um mero código funcional. Esta tendência, que se acentuou com a entrada de Portugal na União Europeia e com o advento de políticas educativas cada vez mais globalizadas, representa um empobrecimento não apenas linguístico, mas também humano: a língua perde a sua alma para se reduzir a corpo.

O ensino da Língua Materna não pode ser reduzido a um produto para consumidores ou a uma competência desprovida de contexto. A língua é portadora de memória, de identidade, de pertença. Negá-lo é empobrecer as gerações futuras, transformando cidadãos em meros operadores linguísticos, desenraizados e moldáveis segundo interesses alheios.

Conclusão

O ensino do Português na Alemanha ao longo das últimas décadas revela, na sua microescala, as grandes tensões e dilemas do nosso tempo: entre cultura e funcionalidade, entre integração e identidade, entre interesses políticos e necessidades pedagógicas. Reconhecer estas tensões, nomeá-las e debatê-las abertamente (2) é o primeiro passo para uma educação mais consciente, humanista e verdadeiramente emancipadora.

Hoje tona-se cada vez mais evidente a necessidade de uma política que defenda uma educação que preserve a riqueza cultural da língua enquanto património vivo.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Dadas as circunstâncias da imigração — especialmente quando se formam guetos intencionalmente criados dentro de um país — torna-se difícil discutir o problema da «desculturalização» do ensino de línguas quando certos guetos bloqueiam o diálogo cultural e, por conseguinte, desafiam a cultura maioritária. Isto torna-se difícil no contexto actual, em que se debate o equilíbrio entre a integração, a identidade cultural e a globalização.

É mais fácil de reconhecer no ensino da língua materna, a sua marginalização pela primazia das políticas utilitaristas e globalistas sobre uma visão humanista da educação.

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NO PRINCÍPIO DOS PRINCÍPIOS

(Céu e Terra, masculino e feminino são parábolas e eu o enredo delas)

 

Sou a miniatura do universo criado,

um segredo que se dobra em si mesmo —

matéria e verbo entrelaçados,

terra que gera e relâmpago que queima,

silêncio húmido da terra virgem,

semente que espera o grito do rebento.

 

Sou Adão que traz na carne a memória do primeiro sopro,

nas veias, o rumor do rio antigo

que nunca cessa de procurar o mar,

no peito, o incêndio da fronteira,

o fogo que delimita, que fere, que protege,

mas também o ardor que deseja dissolver-se,

ser nuvem, ser fonte, ser mar.

 

Dentro de mim, o masculino e o feminino

não são rótulos, não são géneros, mas chaves,

idiomas secretos de um mesmo abismo —

o fogo que cerra e contém,

o rio que abre e acolhe.

Sou ambos, sou ponte,

sou aquilo que a Criação continua a revelar.

 

Minha carne é gramática do Mistério,

verbo que se faz limite e, inquieto,

Nome na procura do que o transcende.

Habito na fresta onde os opostos se beijam:

sou o barro que sonha ser estrela,

a palavra que, encarnada,

se descobre inacabada,

anseia ser mais que som,

mais que corpo,

ser o eco inteiro da Trindade,

onde o Um se desfaz no Três,

e o Três se resolve no Um.

 

E é no abraço — mais que de corpos, de contrários

que reencontro a pegada do Início,

a linguagem secreta da Origem,

onde ser limite é apenas o princípio

de aprender a ser infinito.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A Onda Guerreira Ameaça Dominar os Diferentes Setores da Sociedade: Um Apelo à Consciência

Kassel: Do Passado Destruído ao Presente Belicista

Durante a Segunda Guerra Mundial, dois terços da cidade de Kassel, na Alemanha, foram reduzidos a escombros devido à sua importância estratégica na indústria de armamentos. Ironia da história, hoje, Kassel volta a ser um dos maiores centros da produção bélica germânica. O ciclo parece repetir-se, mas desta vez com um agravante: a normalização da guerra como política de Estado.

O Requerimento que Simboliza uma Tendência Perigosa

Recentemente, em Niestetal-Kassel, o partido CDU apresentou no parlamento um pedido para a construção de uma pista de testes de tanques, com uma extensão de 100 hectares — o equivalente a 140 campos de futebol. Este projeto não é um caso isolado. Em toda a Alemanha, os partidos do arco do poder têm abraçado um discurso belicista, pressionando por mudanças legais que facilitem o armamento e a militarização. Manifestação em Niestetal. Há 8 horas — Manifestação em frente ao conselho distrital

Contra essa corrente, manifestantes tomaram posição (4/6/2025) em frente ao conselho distrital com palavras de ordem que ecoam como um grito de alerta: “Carteiras escolares em vez de carreiras de tiro”, “Capacidade de paz em vez de capacidade de guerra”, “Mais ativistas da paz e menos belicistas”. No entanto, a resposta da imprensa mainstream tem sido uma “artilharia pesada” contra os pacifistas, enquanto o governo alemão justifica o investimento militar como motor de recuperação económica.

A Militarização da Educação e a Lavagem Cerebral das Novas Gerações

O cenário torna-se ainda mais sombrio quando empresas de armamento buscam infiltrar-se nas escolas, participando em feiras de orientação profissional para recrutar jovens. Com financiamento estatal, ambicionam também influenciar a investigação universitária, direcionando-a para o desenvolvimento de tecnologias bélicas.

Onde estão os espaços que promovam a cultura da paz? As escolas preparam os alunos para a competição, mas não para a cooperação. Quem defende a presença da Bundeswehr (Forças Armadas alemãs) nas salas de aula não fala do futuro — fala da guerra. E, pior ainda, está a servir um “modelo de negócio de morte”.

A Hipocrisia dos Partidos “Cristãos” e a Manipulação da Opinião Pública

Os partidos com a letra “C” (de cristão) no nome abandonaram qualquer princípio pacifista, alinhando-se com a indústria da guerra. Sob o pretexto de “todos queremos a paz”, promovem as “oficinas da guerra” com um fervor inédito. Enquanto isso, a opinião pública é manipulada por uma narrativa que esconde os verdadeiros problemas sociais, transformando a população em marionetas de um jogo geopolítico perigoso.

O Papa Leão XIV já alertou: “A aprendizagem do respeito e da amizade é condição prévia para a paz.” Mas a Alemanha, aspirante a líder da União Europeia, parece empenhada em transformar o continente no “segundo grande polo armamentista”, logo atrás dos EUA.

A Esperança Resiste: Os Jovens e a Resistência Pacifista

Apesar da propaganda, um estudo recente — “Jovem Europa 2025” — revela que 55% dos alemães entre 16 e 26 anos rejeitam o serviço militar obrigatório. Apenas 38% apoiam a medida. Os Verdes, por sua vez, tentam trazer transparência, prometendo tirar a Bundeswehr e as empresas de armamento “da sombra”.

A Cultura como Último Bastião da Paz

É urgente que a arte — o teatro, a música, a literatura — assuma o seu papel como “mensageira da paz”, recusando-se a ser instrumentalizada como “música de fundo” da política belicista. A sociedade não pode permitir que a guerra seja normalizada.

Chegamos a um ponto de viragem. Ou escolhemos o caminho da diplomacia e do humanismo, ou seremos arrastados por uma onda de militarismo que só trará mais destruição. A pergunta que fica é: Onde é que chegámos? E, mais importante ainda: Para onde queremos ir?

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

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