A confissão como ferramenta de individualidade
QUINTA OUTEIRO DA LUZ NA BRANCA – AVEIRO
O Lugar onde a Alma respira e repousa
Quero guardar na memória a paisagem vista das alturas da Branca: o crepúsculo dourado, o cintilar das estrelas e o bailado suave das luzes na noite.
Das varandas da Quinta Outeiro da Luz (1), o olhar perde-se num horizonte marítimo que se estende de Espinho até para além de Aveiro, uma vastidão de mar e céu que toca o interior da pessoa com a delicadeza de um sussurro divino.
Cada pôr-do-sol é um versículo do livro da Criação: uma revelação única, irrepetível, como se o cosmos se abrisse em cor e silêncio para nos dizer algo que nenhuma linguagem humana ousa traduzir. Aqui, como em lugares especiais de Portugal, a paisagem revela-se música no coração.
Ali, ao entardecer, após um dia de lides cumpridas, a contemplação não é fuga, mas mergulho.
Não é o mundo que se abandona, mas sim o mundo que se revela na sua nudez plena, no seu erotismo sagrado, um apelo a olharmos para além de nós mesmos.
À noite, sob o lençol das estrelas, o peito recolhe o universo. Os astros cintilam como seios femininos a roçar a alma, contando histórias de vidas que arderam em pensamento e paixão, numa mesma voz unida de filósofos, santos, trabalhadores, buscadores do eros e peregrinos do Espírito.
Cada estrela é uma memória. Cada brisa é um sopro de quem já passou.
E no repouso e silêncio, tudo vive, mais intensamente que no alarido do dia.
A natureza, aqui, não é cenário, é templo da alma e do corpo.
O mar, o vento, o crepúsculo e as constelações convergem para dentro do ser, insuflando-o como pulmão cósmico.
Há uma espiritualidade que nasce do contacto com o real, não como ideia, mas como carne vibrante.
O eros, aqui, não é apenas desejo, é ligação, pertença, escuta.
É no silêncio contemplativo que o ser reencontra a sua morada.
Não há doutrina mais profunda do que esta: estar diante do mundo com olhos nus, peito aberto e alma porosa.
A vida, enfim, respira-se, enfiando-se por nós dentro.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
(1) https://quinta-vacations.com/pt/home-portugues/
O PÊNDULO E A PRAÇA
Parábola iniciática
Havia, na velha cidade de Bruxelas, um grande relógio no alto da torre da praça. O seu pêndulo, pesado e dourado, oscilava com precisão, marcando as horas que os poderosos decretavam. O Relojoeiro, homem de mãos finas e discurso polido, ajustava os seus mecanismos com ar solene, afirmando que só ele conhecia o ritmo certo do tempo.
Mas o povo, em baixo, sentia nas costas a sombra e o peso daqueles ponteiros. Alguns murmuravam que o relógio atrasava, outros que adiantava e os mais ousados diziam que marcava apenas a hora que convinha ao Relojoeiro.
Um dia, um vento forte soprou das ruas estreitas, trazendo consigo vozes desconhecidas. Eram os Andarilhos, homens e mulheres de passos inquietos, que não se curvavam ao tique-taque da torre. Gritavam que o relógio estava quebrado, que o seu ritmo não era o de todos, mas apenas o dos que o controlavam.
O Relojoeiro, perturbado, chamou os Guardiões do Mecanismo. “Estes ventos são perigosos,” advertiu. “Se deixarmos que soprem livremente, o pêndulo perderá o seu curso, e o caos instalar-se-á!” E assim, começaram a amarrar cordas ao pêndulo, a vedar janelas, a calar bocas, tudo em nome da ordem e da democracia.
Mas o vento não se deu por vencido. Soprava mais forte nas frestas, levando consigo o pó das promessas esquecidas. E o povo, antes silencioso, começou a sentir que seu rosto começava a ser tocado por aquela brisa.
Ninguém sabia, ainda, se o vento traria tempestade ou renovação. Mas uma coisa era certa: Nenhum relógio governa o vento.
No Palco da Democracia
Na praça pública, onde o sol se escondia atrás de névoas de retórica, erguia-se um palco de sombras e gritos. De um lado, os Senhores do Arco do Poder, trajando palavras polidas como fatos de alfaiate, acenando ao povo com promessas tão leves como o papel em que eram escritas. Do outro, os Pretendentes ao Poder, rostos inflamados de indignação, brandindo frases afiadas como foices, prontos a ceifar o trigo do campo alheio. E no meio, a multidão, um corpo cansado, espremido entre a bigorna do controlo e o martelo da revolta.
O populismo de cima descia em cascata, um rio de verniz institucional, enquanto o de baixo jorrava das bocas dos descontentes, ácido e espumante. Os primeiros falavam em ordem, os segundos em justiça, ambos, porém, pareciam concordar em uma coisa: o povo era mero espectador de seu próprio drama.
A Máscara e o Espelho
A esquerda outrora insurgente, agora entronizada, fitava-se no espelho da história e não reconhecia o próprio rosto. Onde antes via rebeldia, agora via apenas gestão. Onde antes havia fogo, agora havia protocolo. E quando os ventos sopravam contra ela, reagia não com argumentos, mas com os usados espantalhos, fascismo, retrocesso, ameaça à democracia, palavras gastas como moedas falsas.
“Como ousam criticar-nos?”, bradavam, confundindo discordância com traição. O povo, que outrora lhes dera voz, agora era tratado como criança caprichosa, a quem se devia calar com paternalismo ou ameaçar com o dedo.
Enquanto isso, a direita conservadora, de gravata bem apertada, murmurava sobre tradição e estabilidade, mas seus olhos cobiçavam o mesmo poder que condenavam nos outros. E nos extremos, os profetas apocalípticos, de esquerda e direita, semeavam ventos que colheriam tempestades alheias.
O Teatro das Sombras
Os meios de comunicação, fiéis cães de guarda do status quo, ladravam em uníssono contra os bárbaros das redes sociais, esses novos gladiadores que ousavam desafiar o circo estabelecido. Cada manchete era um golpe, cada editorial um veredicto. “Populismo!”, gritavam, como se a palavra fosse um feitiço capaz de exorcizar o descontentamento.
Mas o povo já não engolia as narrativas como outrora. Nas entrelinhas das notícias, percebiam o cheiro do medo, o medo dos que temiam perder o monopólio da indignação.
O Pêndulo democrático oscila
A democracia, esse pêndulo eterno, balançava entre o medo do novo e o cansaço do velho. Umas vezes para a esquerda, outras vezes para a direita, mas nunca parava no centro, pois o centro era uma ilusão, um lugar onde ninguém vivia, apenas fingia governar.
Os poderosos, assustados com o movimento, tentavam amarrar o pêndulo com leis e decretos, apertando o cerco sobre a dissidência. “Em defesa da democracia!”, diziam. “Pela ordem!” Mas o povo, cada vez mais encurralado, percebia que o discurso era só pelo poder. Sempre pelo poder.
A Última Metáfora
No fim, restava apenas uma alegoria: a da casa comum. A esquerda, que se julgara arquiteta exclusiva da moradia, agora via surgir inquilinos indesejados, gente que não aceitava os seus planos, que queria reformar as paredes, mudar os móveis. Mas, a esquerda, em vez de debater, trancava as portas e gritava “incêndio!” A sua casa era uma prisão.
A verdade é que o fogo verdadeiro não estava nos críticos nem nos discursos, ele estava na lenha seca acumulada de décadas de promessas queimadas.
E assim, entre o populismo de cima e o de baixo, entre os que mandavam e os que aspiravam mandar, o povo seguia, sem réstia de sol, mas também sem deixar de olhar para o horizonte.
Porque o pêndulo, cedo ou tarde, sempre volta. E quando voltar, quem estará lá para o segurar?
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
ENTRE TEMPO E ETERNIDADE
Eu… cavo.
Sempre a cavar…
Uma cova,
que um dia me há receber,
não de terra, mas feita de palavras.
Daquelas que disse…e das outras,
que… nunca ousei dizer.
Ah, quantas manhãs perdidas!
Nas vielas estreitas
do meu próprio pensamento,
enquanto a vida,
esse rio sem pressa,
me chamava, chamava… em vão.
Pára! Escuta! Olha!
O mundo não cabe
nos teus planos desenhados a lápis.
Vês ali a amendoeira floresce.
E ouves o silêncio
entre dois gritos de pavão?
Isso… também eras tu,
e deixaste-o morrer
sem sequer lhe tocares.
Deus não construiu o mundo
com regras de gramática
Ele escreveu com luz,
não com cinzel em pedra.
Ele é puro verbo,
sem objecto, nem parêntesis.
E do seu sonho nasceram,
o arco-íris, a espiga,
este anseio meu e teu
que não cabe em regra nenhuma.
Contempla as escrituras,
mas não te enterres em ideias!
Não te expulses, tu mesmo, do Éden!
Solta as asas que manténs cativas…
Pois a alma vive do assombro
de ser vento, fogo,
e semente despenteada
ao sol do impossível.
António CD Justo
Pegadas do Tempo
https://poesiajusto.blogspot.com/
ENTRE AS PALAVRAS E O ÉDEN
Não leias só com os olhos da regra,
que até a letra mais santa
pode ser gaiola se a alma não voa nela.
Olha, as Escrituras são janelas,
não paredes;
são asas,
não sepulturas de ideias feitas.
Não te expulses do Éden
por obedeceres a agendas alheias
Deus pôs o jardim em ti,
e nenhum anjo com espada
te impede de voltar,
só o teu próprio medo
de comer o fruto
que já te foi dado.
Em cada um, Deus desvela
um céu por detrás da nuvem,
onde o sonho é a primeira estrela,
a semente da própria obra.
António CD Justo
Pegadas do Tempo