CUIDAR DE QUEM CUIDA

Satisfação vocacional e o Risco de burnout na Vida sacerdotal

Inquéritos feitos a padres nos EUA em 2025 (e na Europa) revelam níveis elevados de sacerdotes que vivem a sua vocação com satisfação e sentido, mas enfrentam desafios estruturais graves: sobrecarga, solidão, risco de exaustão, falta de apoio institucional. Ao mesmo tempo, os padres revelam uma clara visão de futuro: priorizar juventude, famílias, evangelização e serviço social, uma Igreja mais “de rosto humano”, comprometida com o mundo real (1).

As percepções sobre liderança, bem-estar comunitário, confiança etc. podem variar muito de diocese para diocese; os resultados gerais não dizem tudo sobre contextos particulares.

Uma realidade que pede atenção e misericórdia

A Igreja é uma família. E como em qualquer família, quando alguém se sente cansado, sobrecarregado ou só, todos somos chamados a reparar, escutar e ajudar.

Em muitas comunidades portuguesas e europeias, os padres vivem hoje com grande dedicação, mas também com um peso crescente de responsabilidades: várias paróquias a cargo da mesma pessoa, exigências administrativas, deslocações constantes e expectativas que nem sempre são humanas porque puxam mais para fora do que para dentro.

Muitos continuam a servir com alegria e fidelidade. Outros vivem momentos de cansaço profundo, solidão ou stress, nem sempre visíveis, nem sempre partilhados.

Reconhecer esta realidade não é criticar a Igreja, mas amá‑la com verdade porque somos todos humanos.

Alguns dados simples para compreender melhor

– Em várias regiões da Europa, incluindo Portugal, a proporção aproxima‑se hoje de 1 padre para 3.000 a 4.000 fiéis.

– Estudos europeus e internacionais indicam que cerca de 30% a 40% dos padres apresentam sinais de cansaço emocional prolongado (burnout) em algum grau.

– Padres mais jovens ordenados após 2000 ou com múltiplas paróquias tendem a sentir maior pressão e solidão.

– Em Portugal, uma investigação recente em que foi aplicada a ferramenta psicológica Francis Burnout Inventory (FBI) que mede a saúde mental no trabalho (exaustão emocional e satisfação no ministério) aplicada a padres portugueses (amostra de 266) confirma que também entre nós existem sinais de exaustão associados à falta de descanso, de apoio regular e de partilha fraterna e também pensamentos sobre deixar o ministério.

Estes dados não descrevem pessoas concretas, mas ajudam‑nos a perceber melhor o contexto em que muitos sacerdotes vivem hoje.

Quando o cansaço se prolonga

Quando a sobrecarga se prolonga e não se é escutado nem cuidado, o desgaste pode levar a:

– Ansiedade, depressão e doenças psicossomáticas;

– Solidão profunda e perda de alegria ministerial;

– Distanciamento afetivo das comunidades;

– Risco de abandono do ministério;

– Empobrecimento da vida pastoral das paróquias e da vida comunitária.

Cuidar dos padres é cuidar da qualidade da vida cristã de todos.

Uma palavra de gratidão aos padres

A entrega do sacerdote é preciosa e a sua humanidade também.

Jesus não chamou servidores incansáveis, mas amigos. Descansar, pedir ajuda, partilhar o peso com irmãos e comunidades não diminui a vocação, pelo contrário, protege‑a.

A fraternidade entre padres, vivida com amizade, oração e partilha sincera e com a oração partilhada é uma das maiores fontes de cura e perseverança.

A paróquia é uma comunidade de vida

A paróquia não é apenas o lugar onde o padre trabalha, é uma comunidade de corresponsáveis, uma comunidade de vida.

Cada comunidade pode ser mais leve e mais fraterna quando: partilha tarefas e responsabilidades; respeita limites e tempos de descanso; valoriza a presença humana do padre, não apenas o que ele faz; cria equipas e ministérios activos e valoriza momentos simples de convivência.

Uma comunidade viva não sobrecarrega o padre, caminha com ele anunciando o Evangelho com gestos concretos.

Caminhar juntos com esperança

A Igreja precisa de bispos que sejam pais e pastores, não apenas gestores.

Estas palavras não nascem de críticas, mas de um desejo simples: uma Igreja mais atenta, mais humana e mais evangélica.

Cuidar de quem cuida é uma missão de todos.

“Vinde repousar um pouco comigo.” (Mc 6,31)

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) O relatório do inquérito de 2025 feito nos EUA a padres sobre a sua situação pode ser consultado em  https://catholicproject.catholic.edu/wp-content/uploads/2025/10/NSCPWave2FINAL.pdf    entre outras coisas identificou que ~ 40% dos padres ordenados após 2000 manifestaram sentimentos de solidão em algum grau. Cerca de 39% dos padres relataram ao menos um sintoma de “burnout” (cansaço emocional, esgotamento, visão negativa) e 5% relataram ter todos os sintomas. Há diferença entre padres diocesanos (mais em risco — 7% apresentam “alto burnout”) e padres religiosos (2%).

Os padres que responderam à pesquisa mantêm níveis elevados de “florescente” pessoal: pontuação média de 8,2/10 (igual à de 2022)  ou seja, saúde mental, propósito, relações sociais etc., em bom nível.

Estudos empíricos recentes em Itália mostram que, além da sobrecarga objetiva, fatores pessoais (traços de personalidade) e a falta de atividades de lazer/proteção profissional influenciam a propensão ao burnout.

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DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo:

 

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A CASA QUE A DOR CONSTRÓI

Não me peças canções de alva harmonia
nem versos que adormeçam como a névoa branda.
Trago na voz um grito de ironia,
ferrugem de esperança já roída e borrifada.

Sofro ao ver o rebanho, denso e crente,
gritar convicções alheias, em uníssono aberto,
defendendo, com ardor de inconsciente,
o jugo que lhe pesa, o mesmo laço certo.
São ecos, não são vozes. Sombras de uma ideia
que o sistema, tal ourives, forjou no seu segredo.
E cada qual repete, na arena que rodeia,
o dogma que o domina, pensando-o seu credo.

Oh, leve opinião de sofá e ecrã,
feita de vento e de espasmo passageiro!
És galo a desafiar outro galo, vã
disputa onde o tom sobe, irreal e altaneiro.
A casa da ipseidade não se ergue
com tijolos alheios, nessa areia movediça.
É grão a grão, na solidão que insurge,
que a rocha própria à mente edifica e talha.

Levo comigo o peso dos meus séculos,
a desconfiança antiga, herdada e visceral:
o Estado, a oficina, os jornais, os oráculos
a moldar o consenso, a tecer o cabresto geral.
Minha alma chora, ao ver a multidão dominada
gritar, ufana, as ordens do seu dono,
numa paixão pós-fática, deslumbrada,
que serve, sem o saber, o seu próprio abandono.

Não sigo a maré do consenso raso,
essa corrente que tudo anula e amontoa.
Busco a falha, a pedra áspera e diferente,
a ruptura com quem forja o molde e o caso.
Somos feitos de pele e de persuasão,
mas o nós perde-se no dilúvio dos canais.
Toda a mensagem é estratagema e arma,
e só acende, se a temos, a nossa própria brasa.

Por isso levanto, lenta, a minha casa,
pedra sobre pedra, com as mãos gretadas.
É trabalho áspero que nunca sossega,
esta construção de ideias, estas paredes erigidas.
Suporto o incómodo da opinião ligeira,
do já se sabe fácil, da certeza rápida.
A minha pedra custa, fere e alteia,
mas a casa é só minha, conquistada mas íntima.

É melhor o cansaço de pensar,
a fadiga da pedra mal cortada,
do que a leveza letal de me deixar
pensar por outrem na minha própria estada.
A opinião alheia é jugo e frio.
A própria, só conquistada em luta, é libertação.
Mesmo que reste apenas o desvio,
e um humor seco como minha última oração.

Assim construo, entre o grito e o sorriso,
numa resignação ativa e irónica.
Não mudo o mundo, mas defino o piso
do meu próprio quintal, nesta era frénica.
E talvez, se muitos levantarem a sua pedra,
se cansarem de ser voz e buscarem ser verbo,
a cultura da paz, que a guerra impede,
desabroche não por decreto, mas do nosso próprio corpo.

O trabalho é longo e a noite é densa.
Mas a casa cresce. Ela é minha e é imensa,                                                                    Contra a maré alheia, pedra sobre pedra.

Pois o ego, alheio a si, perde-se nas roupagens
que a sociedade veste sobre o seu esqueleto nu.
Ao não pensar por si, segue nas multidões,
e acaba por odiar o mundo que em si meteu.
Leva-o a engodo de ideias fabricadas,
tão longe da raiz, da seiva natural,
que constrói, à sombra de vontades alheias,
uma consciência à venda, corrompida e formal.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(Escrito no auge do Regime COVID-19)

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MARIA E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA VISAO DO REAL

Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo

A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.

O símbolo como acesso ao real

A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.

Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).

Conhecimento, consciência e limites da objetividade

Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.

Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.

Virgindade e novo paradigma ontológico

A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.

Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.

Encarnação e superação da dualidade

A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.

Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.

Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade

Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.

A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.

Uma verdade em processo

A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.

Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.

“A verdade não é algo que possuímos, mas uma realidade que nos envolve e transforma.” (K. Rahner)

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

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MARIA DEUSA ENCOERTA DO CRISTIANISMO

Reflexões para o Dia da Imaculada Conceição

No dia 8 de dezembro, a Igreja Católica celebra a Imaculada Conceição de Maria. Além da recordação de um acontecimento do passado, trata-se de uma experiência simbólica e espiritual que aponta para uma realidade que ultrapassa o meramente histórico, factual ou biológico. Os símbolos religiosos, como afirma a fenomenologia da religião, não se esgotam no que representam: remetem sempre para além de si próprios, para uma dimensão do real que não se deixa reduzir à materialidade nem ao pensamento lógico-linear.

O símbolo e a verdade

Em filosofia costuma-se distinguir entre três tipos de verdade:

– a verdade em si mesma,

– a verdade para nós,

– e a nossa verdade.

O ser em si não coincide com o modo como o apreendemos. Por isso, no acto do conhecimento, não é legítimo identificar a realidade com a sua aparência. O conhecimento implica sempre uma dualidade: há algo que é percebido e alguém que percebe. Como recordava Immanuel Kant, “o conhecimento começa com a experiência, mas não se esgota nela”. A facticidade oferece apenas o campo onde se manifestam condições mais profundas do conhecer.

Aplicado à fé cristã, isto significa que as verdades religiosas não podem ser tratadas apenas como factos históricos nem como proposições científicas. Elas pertencem a uma ordem experiencial e relacional, intemporal, que a tradição bíblica chama kairos: um tempo que não passa, mas acontece sempre.

Maria, Mãe de Deus e Mãe da Humanidade

Maria recebeu o título de Theotókos (Mãe de Deus) no Concílio de Éfeso, em 431, não por exaltação pessoal, mas por aquilo que o título afirma sobre Jesus: o Verbo feito carne. Ao confessar Maria como Mãe de Deus, a Igreja confessa simultaneamente que Deus entrou plenamente na história humana.

O dogma da Imaculada Conceição, proclamado em 1854 pelo Papa Pio IX, afirma que Maria foi preservada do pecado original para ser morada do Filho de Deus. Este dogma não pretende oferecer uma explicação biológica, mas expressar simbolicamente um novo começo da humanidade, uma criação recriada pela graça. Maria é a nova Eva, aquela que diz “sim” à vida como dom, unindo céu e terra.

Virgindade: sinal de transcendência, não negação da vida

Num mundo de matriz materialista e utilitarista, a virgindade é frequentemente reduzida a tabu, repressão ou mito. No entanto, biblicamente e teologicamente, a virgindade aponta para o Reino de Deus, para uma realidade não esgotável no imediato nem no instinto. Leonard Boff afirma:

“A virgindade cristã é maternal: gera filhos para o Reino.”

A virgindade de Maria não nega o valor da sexualidade, mas relativiza a sua absolutização. Liberta o feminino de ser mero apêndice do masculino e revela, em Maria, os traços maternais do próprio Deus. Neste sentido simbólico profundo, pode falar-se de Maria como a “deusa encoberta do cristianismo”: não uma deusa concorrente, mas o rosto materno do divino revelado na história.

Encarnação e superação da dualidade

No nascimento de Jesus reconhece-se a superação da grande polaridade que marca o pensamento humano: espírito e matéria. Em Jesus Cristo, o divino e o humano tornam-se compatíveis de modo pleno. Karl Rahner lembrava que a virgindade ocupa um lugar secundário na hierarquia das verdades, mas exprime de forma intensa que a salvação é dom gratuito, não produção humana.

Também a ciência contemporânea, particularmente a física quântica, aponta para uma realidade menos mecânica e mais relacional do que o paradigma clássico permitia supor. Matéria e energia, observador e observado, encontram-se em interação. Tal aproxima-se surpreendentemente da visão cristã da realidade como processo relacional, expressa simbolicamente na fórmula trinitária: unidade na diferença, comunhão sem fusão.

A linguagem do mito e da poesia

Para falar de Deus, do amor e da vida, a linguagem puramente racional revela-se insuficiente. A linguagem poética e simbólica é mais adequada, porque não pretende esgotar o real, mas abri-lo. Uma sociedade excessivamente colada ao texto literal tende a petrificar a realidade, confundindo símbolo com facto e mito com mentira.

Também a ciência recorre a símbolos: quando fala de “Lucy” como mãe da humanidade, não faz história factual, mas usa uma imagem para facilitar a compreensão. Do mesmo modo, os dogmas não são fórmulas matemáticas, mas janelas para o mistério.

Maria como apelo ético e espiritual

A Imaculada Conceição recorda-nos o princípio da criação, quando tudo era original e bom, mas também a responsabilidade de continuar essa criação. O nascimento do novo Adão aponta para um Jesus que deve renascer em cada ser humano, tornando cada pessoa presépio vivo, laboratório divino onde o céu continua a tocar a terra.

Num tempo marcado por dualismos, culpa instrumentalizada e manipulação do pecado ao serviço do poder, Maria permanece como figura de esperança, liberdade interior e fidelidade ao essencial. A consciência, como recordava Newman, é o primeiro vigário de Cristo.

Conclusão

Reduzir a realidade ao que é mensurável equivale a reduzir o universo ao sistema solar. O sentido da vida não se esgota no caminho, porque o caminhante e a caminhada transcendem o próprio caminho. A fé e a esperança permanecem como raios de sol que nos levantam a cabeça para vermos mais além.

Na Imaculada Conceição, céu e terra unem-se uma vez mais para afirmar que a última palavra não é da matéria nem da morte, mas da Vida como dom.

Parabéns a todas as mães.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

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