ENTRE AS PALAVRAS E O ÉDEN
Não leias só com os olhos da regra,
que até a letra mais santa
pode ser gaiola se a alma não voa nela.
Olha, as Escrituras são janelas,
não paredes;
são asas,
não sepulturas de ideias feitas.
Não te expulses do Éden
por obedeceres a agendas alheias
Deus pôs o jardim em ti,
e nenhum anjo com espada
te impede de voltar,
só o teu próprio medo
de comer o fruto
que já te foi dado.
Em cada um, Deus desvela
um céu por detrás da nuvem,
onde o sonho é a primeira estrela,
a semente da própria obra.
António CD Justo
Pegadas do Tempo
GENE DIVINO A FAULHA DO HUMANO
O homem cria o próprio engano
forra-o de ideias, palavras-mortas
e nelas enterra a alma,
antes que a mente descubra a luz.
Quero erguer-me sem muros na mente,
com verbo e sentimento à solta,
para que o sonho, semente ardente,
rompa o chão e a vida brote.
Deus sonha ainda em mim,
além do que a razão alcança,
na poesia do arco-íris,
na seiva que a terra lança.
Não creio em Deus
Deus crê em mim!
Não se apague o fogo vivo
que ergue o humano ao infinito!
António CD Justo
Pegadas do Tempo
SOB TEUS PÉS DESENHA-SE O MISTÉRIO
Não há trilho traçado,
sou eu que sou o trilho,
na vereda daquele que disse:
“Sou o caminho e a vida.”
Sou criatura, sou figura
do cosmos e da gente,
o verbo que se move
num tempo sem guarida.
Não pares, segue firme,
o chão espera o teu passo.
O mundo nasce em ti
quando caminhas nele.
Debaixo dos teus pés
desenha-se o mistério:
o chão que parecia
vazio, agora és tu.
Olha o monte nevado,
sem rasto nem direção,
à espera do teu vestígio,
da tua história impregnada.
A neve, que antes era intacta,
agora já tem memória.
És tu quem lhe dá rumo,
és tu quem faz a história.
No fim, não há coroa,
mas um cântico manso,
um Deo gratias bendito
sussurrado no cansaço.
Pois foste conduzido
por força sem medida,
por mão que não se vê
a chamar-te à subida.
António CD Justo
Pegadas do Tempo
CAVADOR DE SI MESMO
O homem passa a vida a cavar a sua campa,
cova forrada de conceitos, teias de aranha
e ali deposita, em ânsia cega e vã,
a própria alma, antes que o corpo desça à terra.
Ah, quantas vezes, perdido em carreiros da mente,
se esquece da luz, do vento, da folha que dança,
e trilha veredas estreitas, labirinto de espinhos,
sem ver que a vida, em surdina, lhe beija a face!
Cego ao sol que desfia ouro nos trigais,
surdo ao rio que canta histórias às margens,
enterra-se em palavras vazias, números frios,
enquanto o mundo, em flor, lhe escapa das mãos.
Oh, cavador, ergue os olhos do chão!
Não te contentes com a sombra que fabricas.
Antes que a morte te cubra com seu manto,
rasga a prisão das ideias mortas,
e deixa que a alma respire
o ar puro do sonho que não tem muros.
Não vês que Deus, quando sonhou o mundo,
não o fez por dever ou cálculo,
mas por puro arrebatamento
e em teu peito, esse mesmo sonho ainda pulsa,
ainda te chama, ainda te espera
para além de todos os mapas da razão.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo