Islão entre Religião e Projeto Político

Uma Análise Crítica

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução

A compreensão do Islão enquanto fenómeno civilizacional requer uma análise que transcenda a mera dimensão religiosa e interesses globalistas. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre as dimensões política, social e psicológica desta tradição, não com o intuito de denegrir, mas de examinar objetivamente as suas estruturas de poder e a sua relação com o indivíduo e a sociedade. Trata-se de reconhecer que o Islão constitui, simultaneamente, uma religião e um sistema político-jurídico completo, com implicações profundas na organização político-social e na relação entre instituição e pessoa humana.

A Dimensão Político-Institucional do Islão

O Islão distingue-se de outras tradições religiosas pela sua natureza intrinsecamente política. Desde a sua fundação, Maomé não foi apenas um profeta religioso, mas também líder político, militar e legislador. Esta fusão entre din (religião) e dawla (Estado) permanece central na cosmovisão islâmica, onde a Sharia não é apenas código moral, mas sistema jurídico completo que regula todas as esferas da vida pública e privada.

Esta característica confere ao Islão uma capacidade singular de mobilização social e estruturação política. A Ummah (comunidade de crentes) não se define apenas por laços espirituais, mas constitui uma entidade político-religiosa transnacional que transcende fronteiras e nacionalidades. Esta dimensão comunitária, quando instrumentalizada, pode gerar uma dependência mental profunda, onde a identidade individual se dissolve na identidade coletiva religiosa.

Mecanismos Psicossociais de Subordinação

A estrutura institucional islâmica estabelece uma relação específica entre o crente e a autoridade religiosa. O indivíduo encontra a sua dignidade e legitimidade social primariamente através da pertença à Ummah e da submissão (islam significa literalmente “submissão”) aos preceitos estabelecidos pela tradição e interpretados pelas autoridades religiosas.

Este modelo cria uma dinâmica psicológica particular. A dependência mental da estrutura religiosa pode gerar uma massa moldável que, simultaneamente, se sente vulnerável enquanto indivíduo, mas empoderada enquanto parte do coletivo religioso. Esta tensão resolve-se frequentemente através da projeção: complexos de inferioridade histórica ou socioeconómica são sublimados na convicção de pertencer à “única religião verdadeira e superior”, conferindo ao crente um sentimento de superioridade espiritual que compensa frustrações materiais ou políticas.

Esta dinâmica psicológica pode justificar, aos olhos do crente, uma postura agressiva face a outras tradições religiosas, percebidas como inferiores ou desviantes. A guerra contra os “infiéis” (kuffar) torna-se então não apenas legítima, mas nobre, isto é, uma missão sagrada conduzida por uma certeza inabalável que, em casos extremos, pode assumir características delirantes.

O Terrorismo Islâmico expressa uma Ambição Globalista

O terrorismo de matriz islâmica distingue-se de outros terrorismos pela sua natureza absoluta e declaradamente universalista. Enquanto outros movimentos terroristas possuem objetivos territoriais ou políticos circunscritos, o extremismo islâmico fundamentalista opera com uma lógica globalista, aspirando ao estabelecimento de um califado mundial onde a Sharia seja lei universal.

Esta ambição não é marginal ou periférica ao pensamento islâmico, mas conecta-se com conceitos teológicos centrais como dar al-Islam (território do Islão) e dar al-Harb (território da guerra), que dividem o mundo em duas esferas: aquela onde vigora a lei islâmica e aquela que deve ser conquistada ou “pacificada”.

Importa sublinhar que esta visão extremista não é partilhada pela totalidade dos muçulmanos, mas encontra respaldo em interpretações literalistas e tradicionais de textos fundacionais, o que explica a sua persistência e capacidade de recrutamento. E é um facto que o islão não inclui uma teologia interpretativa de o Coroa dado este ser considerado escrita direta e literal divina e como tal imutável circunscrevendo-se propriamente a uma jurisprudência. Terroristas são por vezes vistos como os verdadeiros intérpretes dos interesses islâmicos, o que leva, por vezes, até muçulmanos moderados a não intervir para não entrarem em contradição com suras do Corão.

A Conivência Política Ocidental

Paradoxalmente, sectores significativos da elite política europeia têm demonstrado uma tolerância seletiva que favorece a expansão da influência islâmica, mesmo quando isso implica o enfraquecimento das tradições cristãs autóctones. Este fenómeno, aparentemente contraditório, torna-se compreensível quando analisamos as afinidades estruturais entre certos modelos políticos contemporâneos e a organização islâmica da sociedade.

Para políticos orientados por agendas centralistas e pela realpolitik, o modelo islâmico de subordinação do indivíduo à instituição apresenta vantagens evidentes. O Islão oferece um paradigma de cidadão submisso, onde a autonomia individual está subordinada à autoridade religiosa (e, por extensão à autoridade política). Este modelo contrasta com a tradição cristã ocidental, particularmente na sua vertente católica e protestante, que assenta no conceito de soberania da consciência individual.

As elites políticas europeias, desejosas de consolidar estruturas de poder supranacionais e de criar cidadãos mais “administráveis”, encontram no Islão um aliado inesperado. Daí a tendência para idealizar o domínio islâmico histórico na Península Ibérica (Al-Andalus), enquanto se caracteriza como “agressiva” a Reconquista cristã, invertendo os papéis históricos de conquista e recuperação territorial.

Cristianismo e Islamismo: Duas Antropologias Políticas contrárias

A diferença fundamental entre o Cristianismo e o Islamismo reside nas suas respetivas antropologias e na relação que estabelecem entre indivíduo, instituição e transcendência.

O Modelo Islâmico: Dignidade por Pertença

No Islão, a dignidade da pessoa deriva fundamentalmente da sua pertença à Ummah e da sua submissão aos preceitos religiosos. O indivíduo não possui autoridade ou dignidade intrínsecas que precedam ou transcendam a instituição religiosa. A sua identidade e valor são funcionais; ele é o que é (o seu ser define-se) enquanto membro da comunidade islâmica. (Por isso sociedades islâmica reservam-se limitações à Carta dos Direitos humanos).

Esta conceção tem consequências políticas profundas: o crente islâmico e a pessoa humana, não é soberano sobre as instituições, mas subordinado a elas. A autoridade flui de cima para baixo, da revelação divina através das instituições religiosas até ao crente individual, que deve obedecer.

O Modelo Cristão: Dignidade Ontológica e Soberania da Consciência

O Cristianismo, particularmente na sua elaboração teológica católica, tem uma antropologia radicalmente diferente. A dignidade humana (independentemente de ser cristão ou não cristão) não deriva da pertença institucional, mas da condição ontológica de “filho de Deus”, toda a pessoa tem uma dignidade intrínseca, inalienável, anterior a qualquer filiação institucional.

Esta concepção tem implicações revolucionárias: o cristão não é mero instrumento ou função da instituição religiosa, mas possui soberania própria enraizada na sua relação direta com Deus. A consciência individual torna-se, assim, instância suprema de discernimento moral, mesmo quando em tensão com as determinações institucionais.

O exemplo do sacerdócio católico ilustra esta peculiaridade da pessoa humana. Um padre, ao receber a ordenação, recebe poderes sacramentais que a própria Igreja não pode retirar-lhe. Se este sacerdote se torna dissidente, a Igreja pode proibir o exercício do seu ministério nas suas igrejas, mas reconhece que os sacramentos por ele administrados permanecem válidos, embora ilícitos. Esta distinção entre “válido” e “lícito” revela o reconhecimento de uma dignidade e poder que transcendem a instituição, residindo indelevelmente no indivíduo ordenado.

Este princípio da soberania da consciência, desenvolvido ao longo da história cristã encontra-se baseado no Novo Testamento que levou ao conceito moderno de direitos humanos inatos e estabelece o cidadão como soberano; esta ideia é profundamente perturbadora para sistemas políticos autoritários ou totalitários e também para as democracias partidárias. A China reconheceu esta situação razão pela qual o sistema quer ter mão na nomeação de bispos.

A Impossibilidade de um Cristianismo “Modernizado”

Dada esta estrutura antropológica, qualquer tentativa de “modernizar” ou “agiornare” o Cristianismo, no sentido de o tornar compatível com ideologias coletivistas ou de subordinar a consciência individual às instituições políticas, representa uma traição da sua essência.

O Cristianismo pode e deve adaptar-se aos contextos culturais (Zeitgeist) no que respeita a formas externas, costumes e linguagem. Mas não pode, sem se contradizer, abandonar o princípio da primazia da sua consciência e da dignidade ontológica da pessoa humana. Um “cristianismo” que reduzisse o crente a mero súbdito ou funcionário institucional ou que negasse a soberania da consciência deixaria de ser cristianismo.

Importa reconhecer que a maioria das massas, sujeitas à formatação social operada pelas elites através dos meios de comunicação e do sistema educativo, nem sempre compreende ou vive esta dimensão emancipadora do Cristianismo. A manipulação da opinião pública pode criar uma dissonância entre os princípios cristãos autênticos e a sua compreensão social, permitindo que até crentes se deixem seduzir por ideologias coletivistas incompatíveis com a sua própria doutrina e tradição. Ao fazê-lo abdicam da sua soberania intrínseca para se tornarem súbditos e peças meramente funcionais da máquina.

O Voluntário, o Involuntário e a Manipulação Social

A análise destas dinâmicas não pode ignorar a complexa relação entre o voluntário e o involuntário, o consciente e o inconsciente, nos processos de adesão ideológica e religiosa. Longe de uma oposição binária simples, estas dimensões frequentemente se confundem.

O involuntário constitui um campo fértil de confusão que atravessa mentalidades e dinâmicas culturais e sociais. Muitos aderem a determinadas visões do mundo não por convicção racional plenamente consciente, mas por condicionamento social, necessidades psicológicas não reconhecidas, ou pressão do ambiente cultural. Esta dimensão involuntária pode ser instrumentalizada por líderes religiosos ou políticos hábeis na manipulação de símbolos e narrativas.

O Islão, com a sua estrutura ritualística intensa (cinco orações diárias, jejum do Ramadão, etc.) e o seu sistema abrangente de prescrições comportamentais, cria um ambiente de condicionamento permanente que torna particularmente eficaz esta instrumentalização do involuntário. A repetição constante de atos de submissão tende a moldar não apenas o comportamento externo, mas a própria estrutura psicológica do crente, reduzindo progressivamente o espaço de autonomia crítica.

A Estratégia Política do Islão: Inteligência ou Esperteza?

Quando analisamos o Islão enquanto projeto político, torna-se evidente que estamos perante uma estratégia sofisticada, adaptável e pragmática. Mais que simplesmente inteligente, revela-se “esperta”, isto é,  capaz de instrumentalizar até a mentira em nome de objetivos superiores.

O conceito de taqiyya (dissimulação) e kitman (ocultação de verdade) em certas tradições islâmicas, particularmente xiitas mas também presentes no pensamento sunita, permite ao crente ocultar a sua fé ou dissimular as suas verdadeiras intenções quando a situação o exige. Mais controversamente, existe uma corrente interpretativa que considera que uma mentira em defesa do Islão pode ser moralmente legítima, mesmo virtuosa.

Esta flexibilidade ética fascina certos políticos ocidentais, habituados aos constrangimentos morais da tradição cristã e do humanismo liberal. Veem no pragmatismo islâmico um modelo de eficácia política desembaraçada de escrúpulos, adequado a um mundo competitivo e a uma realpolitik onde os fins justificam os meios.

O Imperialismo Mental Globalista

O fenómeno que assistimos é, em última análise, a convergência entre dois projetos globalistas: o Islão expansionista, que aspira ao califado universal, e o globalismo político-económico ocidental, que aspira a estruturas supranacionais de governação e a cidadãos desprovidos de enraizamento cultural profundo e de consciência crítica.

Ambos os projetos beneficiam da erosão das soberanias nacionais, da relativização das identidades culturais tradicionais (exceto a islâmica, que é simultaneamente promovida), e da formação de cidadãos submissos, conformistas, administráveis.

O moderno imperialismo mental procura criar uma humanidade homogénea, desprovida de resistências culturais profundas, facilmente mobilizável pelos meios de comunicação de massa e pelos algoritmos das redes sociais. Neste contexto, a tradição cristã, com a sua ênfase na dignidade individual e na soberania da consciência, constitui um obstáculo que precisa ser neutralizado.

A promoção do Islão nas sociedades ocidentais não deve, assim, ser compreendida primariamente como multiculturalismo genuíno ou respeito pela diversidade religiosa, mas como instrumento de uma estratégia mais ampla de desconstrução das tradições que sustentam a autonomia individual e a resistência aos projetos totalitários.

Entre Lucidez e Confronto

Esta análise crítica não pretende fomentar ódio ou discriminação contra muçulmanos enquanto pessoas. Cada ser humano, independentemente da sua tradição religiosa, possui dignidade intrínseca e direito ao respeito. Muitos muçulmanos vivem a sua fé de forma pacífica e são eles próprios vítimas do extremismo e especialmente as mulheres, consideradas estatualmente pessoas de segunda classe.

Contudo, a lucidez exige que reconheçamos as diferenças estruturais entre sistemas civilizacionais e as suas implicações políticas e sociais. O Islão, enquanto sistema político-religioso, apresenta características que o tornam pouco compatível com os princípios fundamentais da civilização ocidental moderna: separação entre religião e Estado, primazia da consciência individual, igualdade de género, liberdade de expressão e de religião (incluindo o direito de abandonar a religião).

Pretender que estas diferenças não existem, ou que são superficiais, constitui uma forma de cegueira voluntária que apenas beneficia aqueles que pretendem instrumentalizar o Islão para objetivos políticos. A verdadeira tolerância não exige que fechemos os olhos à realidade, mas que a confrontemos com honestidade, coragem e respeito pela verdade.

A Europa e o Ocidente enfrentam, assim, um duplo desafio: resistir à instrumentalização política do Islão por elites globalistas que procuram cidadãos submissos, e simultaneamente preservar os princípios de dignidade humana, liberdade de consciência e soberania popular que constituem o melhor da sua herança civilizacional; esta herança encontra-se profundamente enraizada, ainda que nem sempre reconhecido, na tradição cristã.

A resposta não passa pelo fechamento xenófobo ou pela intolerância religiosa, mas pela afirmação confiante dos nossos próprios princípios, pela exigência de reciprocidade (os muçulmanos que vivem no Ocidente devem respeitar os princípios fundamentais das sociedades que os acolhem, tal como se espera que os cristãos nos países islâmicos respeitem as leis locais), e pela recusa de qualquer cumplicidade com projetos totalitários, venham eles embrulhados em retórica religiosa ou secular.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O autor do artigo é um teólogo, pensador e analista social português, dedicado ao estudo das dinâmicas civilizacionais e religiosas contemporâneas.

 

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MÚSICA NOS ESPAÇOS PÚBLICOS: O SOM QUE ACOLHE OU AFASTA

Da calma ao caos: como o rasto sonoro invisível dos nossos dias influencia o nosso humor, o nosso consumo e o nosso bem-estar

Vivemos numa era de pouco silêncio. O ruído de fundo tornou-se uma constante, da azáfama do trânsito aos ecrãs que falam, dos cafés às praças públicas. Neste panorama, a música surge como uma dupla face: pode ser uma companhia que acalma ou uma invasão que agride. A fronteira é ténue. Quando o volume sobe demasiado ou os graves fazem tremer as paredes, o prazer transforma-se em incómodo. O som, afinal, tem o poder de moldar comportamentos, estados de espírito e até decisões de consumo (1). A questão que se coloca é: como podemos usar a música para criar espaços mais acolhedores e harmoniosos?

O Ritmo Certo para Cada Lugar

A chave está na adequação. A mesma música que anima uma festa pode ser tormento num hospital. O sucesso da experiência sonora depende de entender o espaço e o seu público.

Nos Centros Comerciais, o objetivo é incentivar a permanência. Estudos indicam que música clássica suave ou instrumental relaxante cria uma atmosfera de calma, convidando os clientes a circular sem pressa (2). Pelo contrário, batidas agressivas de techno ou pop alto geram cansaço e ansiedade, antecipando a hora de sair.

Em Restaurantes e Cafés, o sabor também é sonoro. Estilos como jazz suave, bossa nova ou música acústica facilitam a conversa e permitem saborear a refeição (3). Já a música alta e ritmada força os clientes a elevarem a voz, criando um ambiente de fadiga que prejudica a experiência.

Nos Hospitais e Unidades de Saúde, o som deve ser um aliado da cura. Música clássica, sons meditativos ou da natureza demonstraram acalmar pacientes, reduzindo a ansiedade (4). Qualquer som alto ou com graves marcados deve ser evitado. Curiosamente, até a pecuária beneficia: vacas produzem mais leite com música clássica (5). Se o efeito é tão poderoso nos animais, no ser humano é ainda mais evidente.

Nos Espaços Públicos, como praças ou jardins, a música deve ser um pano de fundo discreto e inclusivo. Música neutra, tradicional instrumental ou ambiental são boas escolhas. O problema reside nos sons graves agressivos e no volume excessivo, que se transformam numa imposição para todos, inclusive para os vizinhos.

Em Casamentos e Festas, o equilíbrio é crucial. Música clássica ou coral marcam momentos solenes com dignidade, enquanto pop, tradicional ou rock leve podem animar a pista de dança, se o volume for moderado. O excesso de colunas e graves desconfortáveis pode transformar uma celebração num incómodo. Muitas vezes, são animadores sem formação adequada que, tal como o cozinheiro, se tornam os “senhores da festa”, ditando um ritmo que nem todos conseguem acompanhar.

O Verdadeiro Vilão é o Volume e os Graves

Mais do que o estilo musical em si, são o volume elevado e os graves profundos os principais causadores de conflito. Estas frequências têm um poder invasivo único: atravessam paredes, vibram no corpo e impõem-se a quem não as escolheu. Os mais afetados são frequentemente os mais vulneráveis: pessoas sensíveis, idosos, crianças ou doentes que, no seu direito ao descanso, se veem a braços com uma invasão sonora com impactos comprovados na saúde (6).

Música como Ferramenta de União e não de Divisão

A música é uma das forças mais poderosas de união humana. Quando usada com critério, pode e deve ser uma ferramenta de bem-estar e inclusão. Numa sociedade já marcada pelo stresse e pela aceleração, não precisamos de estímulos sonoros agressivos, mas de sons que promovam a harmonia, o encontro e a permanência.

A boa música de ambiente é aquela que não se impõe, mas que transforma positivamente a experiência de quem a ouve. É tempo de elevar o padrão e exigir profissionalismo e respeito pelo bem-estar coletivo. Afinal, como defende o autor, merecemos mais do que a lógica do “para quem é bacalhau basta”.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo

Notas de Referência:

(1) North, A.C., & Hargreaves, D.J. (1998). The Social and Applied Psychology of Music. Oxford University Press.

(2) Milliman, R.E. (1982). Using Background Music to Affect the Behavior of Supermarket Shoppers. Journal of Marketing.

(3) Caldwell, C., & Hibbert, S.A. (2002). The Influence of Music Tempo and Musical Preference on Restaurant Patrons’ Behavior. Psychology & Marketing.

(4) Chanda, M.L., & Levitin, D.J. (2013). The Neurochemistry of Music. Trends in Cognitive Sciences.

(5) Alworth, L.C., & Buerkle, S.C. (2013). The Effects of Music on Animal Physiology, Behavior and Welfare. Lab Animal.

(6) WHO (2018). Environmental Noise Guidelines for the European Region. World Health Organization.

 

Estilo / Som Efeito no Sistema Nervoso Impactos Positivos Impactos Negativos (excesso/volume alto) Contextos Ideais
Clássica (ex. Mozart, Bach) Ativa sistema parassimpático → relaxamento Acalma, melhora concentração, pode favorecer produção de leite e vínculos afetivos Pouco impacto negativo salvo desagrado pessoal Estudo, leitura, hospitais, centros comerciais
Meditativa / New Age Reduz cortisol, regula respiração, induz estados alfa Relaxamento profundo, melhora sono, útil em ansiedade Pode induzir sonolência em excesso Yoga, meditação, salas de espera, retalho
Pop / Música ligeira Estimula ligeiramente sistema simpático Humor positivo, familiaridade, sociabilidade Pode distrair em excesso ou ser repetitiva Centros comerciais, rádios, eventos sociais
Rock / Metal Forte ativação simpática, descargas de adrenalina Catarse emocional, energia, identidade de grupo Stress, irritabilidade, fadiga auditiva Concertos, ginásios, não recomendado em repouso
Tecno / Eletrónica (baixos fortes) Estímulo motor intenso, ritmo rápido → excitação Energia, incentivo a dançar, sensação de fluxo corporal Stress, insónia, pressão arterial elevada, ansiedade Festas, clubes, ginásios
Ruído urbano (trânsito, obras) Ativação simpática involuntária (stress) Nenhum (exceto habituação em alguns casos) Stress crónico, distúrbios de sono, irritabilidade – (melhor evitar)

 

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O JARDINEIRO E AS PLANTAS COM ESPINHOS

O Irmão Mateus subiu a colina sob um céu de chumbo; sentia o seu coração mais pesado do que os sapatos enlameados. Cada passo era um eco das dores que o traziam à cela do Abade Tomás, um homem cuja idade parecia ter-se fundido com as próprias paredes do mosteiro, tornando-o numa figura serena e inabalável.

Ao entrar, o aroma a cera e a ervas secas acalmaram-lhe o espírito, mas não apagaram a amargura. O Abade, sentado num banco rústico, entalhava uma pequena ave num pedaço de madeira. Nem precisou de olhar para o jovem.

“Mateus, os teus passos hoje não trazem a leveza de quem vem buscar paz, mas o peso de quem carrega ferrugem”, disse de voz suave como o vento nos ciprestes.

Mateus desfiou a sua ladainha de desilusões: o irmão que o humilhara em público, o amigo da aldeia que tecera mentiras sobre ele, a confiança traída por alguém a quem dedicara anos de lealdade. “Padre, como posso perdoar? Como posso encontrar Deus nestas ações tão vis?”

O Abade pousou a ave de madeira e apontou para a janela, que dava para o horto. “Vem, olha para o jardim do mosteiro. Vês aquele roseiral?”

“Vejo, Padre. Está cheio de rosas magníficas.”

“E vês aquele cardo, ali ao lado, espinhoso e agreste?”

“Vejo. É uma praga. Deveria ser arrancado.”

“Talvez”, segredou o Abade. “Mas olha mais de perto. Ambos crescem no mesmo solo. A rosa, para florescer, precisa de sol e de água boa. O cardo, porém, cresce onde a terra é pobre, seca e pedregosa. Os seus espinhos não são maldade intrínseca; são a sua linguagem de sobrevivência. É a forma que a natureza encontrou para ele dizer: ‘Estou a sofrer’. Quem anda descalço e é espetado por ele tem uma dor real e legítima. Mas a culpa não é apenas do espinho; é da terra árida que o criou.”

O Abade virou-se para Mateus, de olhos profundos como lagos de montanha. “Compreender que quem te espezinha pode esconder uma dor própria, não torna a tua ferida menor. A compaixão é ver o cardo na pessoa, mas a sabedoria é calçar as sandálias para não te magoares.”

Mateus ficou em silêncio, ponderando. “E a mentira, Padre? Como pode a mentira ter uma causa que não a malícia?”

O Abade levou-o até à fonte no centro do claustro. “Vês esta água? É clara e reflecte a verdade do céu. Mas experimenta atirar uma pedra ao charco. A água turva-se, o lodo do fundo sobe e a imagem desfaz-se. Quem mente, meu filho, muitas vezes tem a sua fonte interior turva por medo ou por um vazio tão grande que teme que os outros vejam o fundo seco. A mentira é a agitação que tenta esconder a falta de água pura.”

“Compreender que a mentira pode ser um grito de um vazio interior, não significa que devas beber da água enlameada. A tua tarefa é compreender a sede do mentiroso, mas construir a tua casa junto da fonte da honestidade.”

“E a traição?”, insistiu Mateus, com a voz mais contida. “Essa é a ferida que mais sangra.”

O Abade conduziu-o até à muralha do mosteiro. “Este muro protege-nos dos ventos gélidos e dos invasores. Foi construído pedra sobre pedra, com confiança. Se uma pedra for mal assentada ou se soltar, todo o muro fica vulnerável. Quem trai é como essa pedra solta. Muitas vezes, não é por desejar a queda do muro, mas porque ela própria está rachada por uma solidão profunda, incapaz de suportar o peso da confiança.”

“Ter empatia pela solidão do traidor não te obriga a reconstruir o muro com a mesma pedra quebrada. Perdoar é reconhecer a falha na pedra; seguir em frente é escolher pedras sólidas para a tua própria fortaleza.”

O jovem monge respirou fundo. As alegorias do Abade começavam a clarear a sua mente. “E o escárnio? O desrespeito?”

“Ah”, o Abade sorriu tristemente. “Isso é o fumo, não o fogo. Quem escarnece de ti está a apontar para um espelho quebrado que carrega dentro de si. O desrespeito é o cheiro da miséria interna a queimar. Tu podes reconhecer o incêndio na alma do outro sem teres de te deixar consumir pelas chamas. A auto-compaixão é a manta corta-fogo da alma.”

“E a inveja?”

“A inveja é o sinal mais claro de frustração. É um homem a morrer de sede a observar outro a beber de um poço que julga ser seu por direito. Entender a sede do invejoso não significa que lhe entregues o teu cântaro, pois ele não o quer para matar a sede, mas para o partir.”

Mateus olhou novamente para o jardim. Já não via um cardo a ser arrancado, mas uma planta a clamar por melhor solo. Já não via um inimigo no mentiroso, mas um sedento. Já não via um traidor, mas uma pedra solta.

“Padre”, disse ele, de voz já mais leve. “Então, o caminho não é ignorar a dor que me causam, mas também não é deixar que ela defina o meu terreno.”

“Exatamente, meu filho”, concluiu o Abade, voltando à sua ave de madeira. “Entre a compreensão infinita e a autoproteção necessária, há um equilíbrio: o de ser terra fértil para os que buscam cura, mas ser também jardineiro sábio, que sabe podar os galhos doentes para que todo o jardim não pereça. Na vida mística, encontramos o outro não na conivência com a sua sombra, mas na coragem de lhe mostrar, com os nossos próprios limites, onde começa a luz.”

E pela janela, um raio de sol furou as nuvens, iluminando tanto as rosas como o cardo, sem fazer distinção (1).

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Em homenagem ao mestre de noviços salesiano, o Pe. Magni, no meu noviciado em Manique do Estoril

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ÁFRICA A CONTAS

Já se passaram sessenta anos na promessa solar,

mas a fome permanece fiel, constante a bailar.

A liberdade, dama nobre de fraque elegante,

vende o seu por parcelas, em prestações picantes.

 

Surgem doutores do mundo com gráficos na mão,

com juros, receitas e sábia lição.

“Ajuste estrutural!”  que palavra sonora,

corta raízes, a cultura já chora.

 

Espetáculo de cetim, algoritmos em dança,

povos viram figurantes numa falsa esperança.

A soberania, boneca delicada e frágil,

dança conforme a batuta, submissa e dócil.

 

“Para o vosso bem!” Assim soa, suave e claro,

“este neoliberalismo é vosso altar mais caro.”

Ah, mais pesado que o jugo colonial antigo,

pois lá restava um ser, aqui só inimigo.

 

Reina o capital, global e sublime senhor,

escavadora que enterra almas sem pudor.

Apaga identidade, esmaga todo canto,

em nome do “progresso”, vazio como pranto.

 

Não queremos crédito cego e tão pesado,

nem desenvolvimento em modelo copiado.

Queremos germinar da própria razão,

política que nasça da terra, sã tradição.

 

Como a Europa, outrora devastada e em guerra,

encontrou renovação em sua própria terra.

Mas África, dizem, não deve ousar tal coisa,

seu futuro é ser apêndice, eterna lousa.

 

Ó senhores do FMI, príncipes do banco,

vossa ajuda é corda embrulhada em papel branco.

Guardai planos, a magia fria e vazia,

deixai África criar seu próprio novo dia.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo, Arte crítica

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O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS 

(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, ao ser confrontado em férias com o triste latir dos cães)

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pêlo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu:

«Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras.

«É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor:

«Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu:

«Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite.

«Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
https://poesiajusto.blogspot.com/2025/09/o-concerto-dos-caes-acorrentados.html

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