RAZÕES DO MUNDO NÃO-OCIDENTAL SE ESTAR A VOLTAR PARA A CHINA

Declínio do “Poder Duro” Ocidental perante a Arte Chinesa de se afirmar pelo “Poder Suave”

Ao observarmos a política internacional assistimos a dois caminhos do poder global: Ocidente e as armas com a estratégia do Hard Power e a China com a diplomacia (Soft Power).

Os Estados Unidos são, há décadas, a nação que mais gasta em armamento no mundo! É um colosso militar cujo orçamento bélico em 2023 ultrapassou 886 mil milhões de dólares (1). Esse valor supera os gastos combinados dos dez países seguintes na lista, incluindo a China. Esta investiu cerca de 292 mil milhões de dólares no mesmo período. No entanto, apesar dessa máquina de guerra inigualável, é a China que, com astúcia e estratégia paciente, vem conquistando os corações e as mentes no Sul Global. Isto tem vindo a colocar dúvidas a muitos pensadores ocidentais sobre o próprio modelo e estratégia que se tem expressado através de imposição da força por armas, controlo dos estados e sanções económicas. Os EUA e a EU (cf. a sua viragem militarista) seguem uma estratégia de poder autocrático, agressivo enquanto a China segue uma estratégia de poder mais suave.

O Domínio Militar (Poder Duro) contra o Poder Suave

Os EUA sustentam 800 bases militares em mais de 70 países, um império de projeção de força que, em vez de atrair, muitas vezes intimida ou gera ressentimento. Entretanto, a China, sem disparar um único tiro, expande a sua influência através do Poder suave.

A china empenha-se na construção de infraestruturas resilientes como a Iniciativa do Cinturão e Rota (BRI), um projeto faraónico de  um bilião de dólares em infraestruturas, estendendo-se da Ásia à África e América Latina; realiza acordos comerciais tornando-se  o maior parceiro comercial da África com 282 mil milhões de dólares em 2023 (2), da América Latina com 450 mil milhões em 2022 (3) e da ASEAN com 975 mil milhões em 2023. No que se refere a investimento e diplomacia cultural a China tem 550 Institutos Confúcio espalhados pelo mundo, enquanto os EUA têm 210 Centros Culturais Americanos, conforme dados do US State Department e Hanban.

Guerra contra o Desenvolvimento

Enquanto os EUA gastam 3,5% do seu PIB em defesa, a China aplica apenas 1,6%, mas investe massivamente em sectores que consolidam a sua liderança geoeconómica. A atestá-lo temos a Tecnologia 5G: A Huawei domina 60% do mercado global de infraestrutura 5G (4). No que se refere a energias verdes, a China controla 80% da produção global de painéis solares e 70% das baterias de lítio (5). No que toca à moeda digital o yuan digital já é testado em 15 países, ameaçando a hegemonia do dólar (6).

A Atractividade do Modelo Chinês

O mundo não-ocidental, especialmente África, Ásia e América Latina, não quer mais lições de democracia ocidental acompanhadas de bombas. Quer estradas, portos, empréstimos sem condições políticas nem bloqueios económicos. A China oferece isso, enquanto os EUA seguem presos a um ciclo de intervenções militares fracassadas (Iraque, Líbia, Afeganistão, Síria) e a sanções que alienam aliados, como tem acontecido com a União Europeia.

Os tanques e caças americanos garantem domínio militar, mas a sedução do mundo pós-ocidental do Sul Global faz-se com vias-férreas, 5G e acordos sem moralismos. A China antecipou-se apercebendo-se a tempo disso e os números provam que está a vencer.

No meio de tudo isto, a União Europeia, que se sente impotente entre os EUA e a Rússia/China, em vez de procurar novas oportunidades e criar uma nova via no sentido de um novo universalismo, renuncia à sua vocação original e a um papel de futuro relevante na história, para se subjugar ao militarismo dos EUA. O poder duro ocidental do palco de Bruxelas encontra-se, tão alheado da realidade geopolítica e do sentir das populações, que não arreda pé da militarização da Europa caindo no diletantismo de, para isso, impor às populações 5% do PIB para armamento.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Ver no Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI).

(2) Segundo o China-Africa Research Initiative

(3) in CEPAL

(4) in Dell’Oro Group

(5) IEA: International Energy Agency

(6) in Atlantic Council.

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REGIMES DE VERDADE

Das Verdades que nos governam à Verdade em que vivemos: Entre Sombras e Luz

Vivemos rodeados de verdades. Umas são-nos impostas, outras somos nós que escolhemos acreditar nelas, e outras aceitamo-las sem as questionar. Mas o que é, afinal, a verdade? Será um facto imutável, uma construção social ou algo mais profundo?

As Verdades que nos governam

O filósofo Michel Foucault introduziu o conceito de ‘regimes de verdade’ para descrever os sistemas de normas, regras e práticas que determinam o que uma sociedade aceita como verdadeiro ou falso. Estas “verdades” não são eternas, mas sim construções sociais e discursivas que mudam com o tempo, com o poder, com as maiorias.

Foucault demonstra como os discursos, além de descreverem a realidade, a moldam, formatando activamente as opiniões individuais e sociais. As populações, expostas a esses constructos, passam a confundir a narrativa imposta com a realidade objetiva, tornando-se meros produtos históricos da sua época, isto é, a instrumentos passivos de uma máquina de poder. Infelizmente ameaça tudo ir  na enxurrada, mesmo os multiplicadores e guias sociais.

Um exemplo flagrante desse mecanismo é o modus operandi de instituições como Bruxelas, a NATO ou a ONU (sob influência dos EUA), que aplicam sistematicamente o princípio de vigilância e controlo para formatar as mentalidades e, consequentemente, dominar os corpos (os cidadãos). Vivemos numa ditadura suave, quase imperceptível, onde o Panóptico de Bentham, analisado por Foucault, se tornou o modelo de disciplina por excelência e, mais grave ainda, o estilo de governação dominante.

Habitamos num mundo onde a verdade parece negociável, moldada por consensos, maiorias, interesses ou conveniências. Será saudável aceitar passivamente o que nos é imposto? Já notaram a forma como as notícias nos são dadas pelos media, como se viessem das alturas, sem uma análise, sem um juízo de valor, sem uma tomada de posição, como se não fossem leituras ou interpretações de factos? Perguntemo-nos sobre o que acontece nos debates públicos: quem decide o que é válido? Quem tem voz e conduz os debates públicos?(1) Será que a verdade de hoje será a mesma daqui a dez anos? As leis mudam, as ciências avançam, os costumes transformam-se. E, no meio deste turbilhão, muitos de nós cansamo-nos de pensar e simplesmente seguimos o que nos dizem sem questionar os regimes dominantes.

Uma autoconsciência crítica implica esforço e é cansativa, e muitos preferem a comodidade de seguir verdades pré-fabricadas. Seguir a opinião pública ou o Zeitgeist é abdicar da nossa capacidade de discernimento, é alienar-nos de nós mesmos, da nossa ipseidade (a essência do “quem sou”).

As diversas faces da verdade

Na lógica do real intuído, deparamo-nos com múltiplas dimensões da verdade: a verdade empírica, mensurável configurada ao objeto, submetida ao crivo da ciência e da observação; a verdade transcendente, arraigada na revelação ou na fé, que transcende os limites da razão instrumental; a verdade estético-afetiva, opinião, expressa no juízo singular do gosto; esse território onde ‘bom’ e ‘mau’ são moldados pela subjetividade; e, por fim, a verdade pragmática, contingente e utilitária, que se justifica a si mesma pela sua eficácia circunstancial, ainda que efémera.

Mas será que alguma delas nos guia de forma plena? Ou andamos perdidos, trocando uma certeza por outra, sem nunca encontrarmos um alicerce sólido?

A Necessidade da Verdade que oriente

Seja sob uma perspetiva relativista ou absolutista, o ser humano anseia por uma verdade que vá além do superficial, que não seja apenas útil, mas que ofereça orientação e dê sentido à vida. No Novo Testamento, a verdade não é uma mera abstração, mas fidelidade: a promessa cumprida em Cristo. Jesus não apresenta a verdade como teoria ou um conceito, mas como pessoa: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6), unindo discurso e accão.

A verdade que nos falta não é uma teoria, mas uma presença. Não é algo que se debate, mas que se vive; é um modo de vida, não havendo separação entre o que é dito e o que é vivido. “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7:16), ou seja, a verdade é uma realidade transformadora que se revela na ação, no amor, na coerência.

Enquanto os regimes de verdade do mundo são instáveis e transitórios, a verdade cristã propõe-se como fundamento estável: uma verdade que não se limita a dizer “acredita nisto”, mas que diz “segue-me e verás”.

Que Verdade queremos seguir?

No labirinto das verdades humanas, todos escolhemos a nossa bússola. Podemos seguir as verdades passageiras do mundo: as que mudam conforme a opinião pública, o poder ou a moda, ou podemos buscar uma verdade mais profunda, que não nos controla, mas nos liberta.

Por vezes sentimo-nos como barco à deriva, empurrado por correntes contraditórias. Como no mar ao longo da costa assim ao longo da vida há sempre um farol fixo que indica o porto seguro. A consciência disto cria-nos mecanismos de defesa próprios que nos imunizam das contraditórias verdades sociais de modo a não sermos arrastados no seu redemoinho nem a desviar-nos da nossa ipseidade.

Se a verdade que seguimos hoje desaparecesse amanhã, o que restaria para nos guiar? O mais seguro é seguir a verdade que caminha!

A Modos de conclusão

Imaginemos um viajante perdido numa floresta escura. À sua volta, vozes sugerem direções contraditórias: algumas baseadas em mapas antigos, outras em rumores, outras ainda em interesses ocultos. Cansado, ele senta-se e reza. Então, vê uma luz à distância, não um fogo efémero, mas uma lanterna firme, segurada por alguém que conhece o caminho. “Eu sou a verdade”, diz a voz. “Segue-me.”

O viajante hesita: “E se eu preferir o meu atalho?” A resposta é simples: “Podes escolher, mas só a minha luz atravessa a escuridão.”

Essa luz interior encontra-se no âmago de cada um de nós e é aquela que nos torna ancorados na transcendência, para lá do que outros pensam, consistentes connosco mesmos a viver em harmonia, autoconfiança e compreensão do mundo. Sim, porque somos astros criados com luz própria e não meros satélites de algo ou de alguém.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1)

Um exemplo flagrante desse mecanismo é o modus operandi de instituições como Bruxelas, a NATO ou a ONU (sob influência dos EUA), que aplicam sistematicamente o princípio de vigilância e controlo para formatar as mentalidades e, consequentemente, dominar os corpos (os cidadãos). Vivemos numa ditadura suave, quase imperceptível, onde o Panóptico de Bentham, analisado por Foucault, se tornou o modelo de disciplina por excelência e, mais grave ainda, o estilo de governação dominante.

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A VIOLÊNCIA NA SÍRIA NA PERSPECTIVA DOS EUA E DA UE

Intervenções, Interesses e Direito Internacional

O recente ataque de Israel a Damasco, justificado como uma acção para “proteger a minoria drusa”, revela mais uma vez a complexidade dos conflitos na Síria e o papel das potências externas na região. A escalada de violência entre clãs sunitas e drusos seguida por intervenções militares israelitas, demonstra como tensões locais são instrumentalizadas por actores regionais e globais, com consequências devastadoras para a população civil. Os beduínos sunitas estão em conflito com os drusos xiitas há décadas.

A Justificativa de Israel e a Realidade Geopolítica

Israel alega que os seus bombardeamentos visam proteger os drusos, uma minoria xiita que inclui cidadãos israelitas: 153.000 drusos são cidadãos israelitas e muitos deles prestam serviço voluntariamente nas forças armadas de Israel e mais de 20.000 drusos vivem como cidadãos sírios nas Colinas de Golã ocupadas por Israel. No entanto, é evidente que o objetivo estratégico mais amplo é enfraquecer o governo sírio e impedir a consolidação de um exército nacional forte. A Síria, fragmentada após anos de guerra, tornou-se um palco onde potências regionais e globais disputam influência.

Uma comparação com a Rússia na Ucrânia (após 2014) torna-se pertinente: ambos os casos mostram como potências externas justificam intervenções militares alegando proteção de minorias, enquanto, na realidade, buscam interesses geopolíticos. Se essa lógica se normalizar, o direito internacional e a soberania dos Estados ficam ainda mais fragilizados e ao serviço das grandes potências.

O Silêncio da UE e a Hipocrisia Ocidental

A cobertura mediática europeia, especialmente na Alemanha, tem sido bastante omissa quanto aos recentes acontecimentos na Síria. Esse silêncio reflete a cumplicidade histórica dos EUA e da UE na desestabilização do país. Desde 2011, o Ocidente apoiou rebeldes, incluindo grupos jihadistas ligados à Al-Qaeda, na esperança de derrubar Bashar al-Assad. O resultado foi o caos, a ascensão do ISIS e a destruição de um Estado que, apesar de autoritário, mantinha uma frágil coexistência entre sunitas, alauitas, cristãos e drusos. Coisa semelhante já se observou no Iraque e na Líbia.

O actual governante sírio, Ahmed al-Sharaa, é um exemplo dessa política falida. Apesar do seu passado em organizações terroristas, ele recebeu o apoio ocidental por ser visto como uma alternativa a Assad. No entanto, a sua liderança é fraca, e a violência sectária só aumentou, com massacres contra alauitas e cristãos. Em março, combatentes islâmicos massacraram centenas de alauitas; neste mês de julho uma igreja cristã foi atacada, resultando do ataque mortos e feridos.  Para a liderança israelita, o governante al-Sharaa é um “islamista de fato”.

Os Interesses das Grandes Potências

A Síria é mais uma vítima do jogo geopolítico entre EUA, Rússia, Irão, Turquia e Israel: Israel não quer uma Síria forte e age para manter o país dividido, os EUA e a UE, após falharem na mudança de regime, ainda apoiam facções rebeldes, perpetuando a instabilidade; a Rússia e o Irão sustentam o governo sírio, mas também exploram a situação para expandir a sua influência.

No meio de tudo isto, a população sofre: mais de 300 mortos nos recentes bombardeios e também cristãos e alauitas perseguidos, e um Estado falido que não consegue proteger os seus cidadãos.

O Direito Internacional em Colapso?

Se potências externas continuarem a intervir em conflitos internos sob pretextos humanitários ou de “proteção de minorias”, a soberania dos Estados fracos será uma ilusão. A Síria é um exemplo trágico de como intervenções estrangeiras, sob a fachada de democratização ou proteção, podem destruir um país.

Enquanto a comunidade internacional não reconhecer que a paz na Síria exige o fim das interferências externas e uma solução política inclusiva, a violência só vai escalar. E, como sempre, serão os civis sírios, sejam sunitas, drusos, alauitas ou cristãos, os que pagarão o preço.

Concretizando: a queda de Assad do poder contou com o apoio do Ocidente aos islamistas. Ao contrário dos seus opositores, Assad defendia a unidade da Síria, respeitando a sua diversidade étnica e religiosa. O Ocidente, porém, preferiu desestabilizar a região —tal como fez na Líbia e no Iraque— sob o pretexto de promover os seus “valores democráticos”, mas com o verdadeiro objetivo de conter o nacionalismo árabe e de manter a sua hegemonia geopolítica.

Os principais atores por trás desta desestabilização são: a Turquia, que procura expandir a sua influência sunita; os EUA, movidos por interesses imperialistas; a UE, com políticas hipócritas e Israel, por razões geopolíticas óbvias.

Todos estes grupos beneficiam de uma Síria dividida, transformada num palco de interesses numa região já por si instável e condenada a ser dividida.

Quando os valores são armas, a democracia destrói nações para salvar o seu império.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

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ROUBOS EM LOJAS ALEMÃS DE COMÉRCIO

O comércio retalhista alemão enfrenta prejuízos milionários com o aumento de furtos, um fenómeno impulsionado pela escalada dos preços, estratégias comerciais questionáveis e um crescente mal-estar social. Segundo um estudo do Instituto EHI, as perdas chegaram a 4,95 mil milhões de euros em 2024, envolvendo desde clientes (2,95 mil milhões de euros) até funcionários (890 milhoes de euros) e fornecedores com o respetivo pessoal de serviço (o resto).

Com a inflação a corroer o poder de compra, muitos consumidores já não conseguem pagar produtos básicos. Alguns recorrem ao furto por pura necessidade, enquanto outros o fazem como forma de protesto contra os preços abusivos. As caixas de auto-atendimento também facilitam os roubos, tornando mais difícil a deteção.

Os produtos mais visados são itens de valor elevado e fácil revenda, como bebidas espirituosas, perfumes, cosméticos e lâminas de barbear. No entanto, o problema vai além da criminalidade ocasional: cerca de um terço dos furtos são cometidos por redes criminosas organizadas, que agem de forma planeada.

O aumento descontrolado dos custos e a prática de reduzir o conteúdo das embalagens sem ajustar o preço – conhecida como shrinkflation – têm gerado desconfiança nos consumidores. Para muitos, a sensação de injustiça económica justifica, de alguma forma, os furtos. Além disso, o contexto global, incluindo guerras financiadas indiretamente pelos cidadãos, contribui para uma erosão da moral social, fazendo com que alguns vejam o roubo como um ato de resistência.

Apesar dos esforços do setor, que em 2024 gastou 1,6 milhões de euros em medidas de segurança, o EHI revela que 98% dos casos de furto passam despercebidos. A dificuldade em conter o problema reflete não apenas a sofisticação dos criminosos, mas também a dimensão de uma crise que vai além da segurança e toca em questões económicas e éticas mais profundas.

Enquanto os preços continuarem a subir e as desigualdades se acentuarem, o comércio terá de lidar não só com a criminalidade, mas também com a crescente perceção de que, para muitos, o furto deixa de ser um crime e tornando-se um ato de sobrevivência ou revolta.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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KAIRÓS – O TEMPO DA REVELAÇÃO

 (Passado e futuro abraçados no Agora)

 

Há um tempo que não passa,

que paira.

Não se conta em horas, ele conta-nos a nós.

É um suspiro do Eterno

que arde no ventre do instante.

Chama sem relógio.

Chave sem porta.

 

O Kairós manifesta-se

quando o céu inclina o ouvido à terra

e o silêncio estala em revelação.

Não é tempo de ponteiros,

mas de pulsares —

a alma recolhe-se ao centro,

e o Agora abre-se como uma flor

que só desabrocha quando não a vês.

 

Ali, despido da pressa,

o mundo não gira — dança.

O espaço já não mede:

revela.

As distâncias dissolvem-se no olhar

de quem vê com o coração nu.

 

No Kairós,

somos mais verdade que forma,

mais sopro que chão.

Somos peregrinos do invisível,

navegantes do próprio sangue,

à deriva no mistério que nos habita.

 

E tudo ressoa:

o corpo, partitura do espírito;

o desejo, fogo que canta;

o verbo, brisa que abençoa.

Nada mais é fragmento:

dor e louvor entrelaçam-se

como raízes sob a pele do mundo.

 

É o tempo do entre —

do fio suspenso entre o finito e o Inominável,

entre o eu e o Tu

que me atravessa como um poema sussurrado

por dentro da matéria.

 

Aqui, no Kairós

o silêncio é nascente,

a palavra, fonte,

e o viver

rito sagrado.

 

Nesse tempo sem margens,

o nascimento é outro:

não do barro,

mas da centelha.

Carne que se descobre templo,

alma que se reconhece chamada.

 

Educar para o Kairós

é ensinar a escutar o espanto,

a ver com os olhos do intervalo,

a habitar o instante

antes que ele se feche em forma.

 

Porque só ali,

onde o tempo se curva à eternidade,

a vida revela o seu nome secreto,

e o humano deixa de ser acaso

para tornar-se eco de uma Voz

que sempre nos antecedeu.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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