(Céu e Terra, masculino e feminino são parábolas e eu o enredo delas)
Sou a miniatura do universo criado,
um segredo que se dobra em si mesmo —
matéria e verbo entrelaçados,
terra que gera e relâmpago que queima,
silêncio húmido da terra virgem,
semente que espera o grito do rebento.
Sou Adão que traz na carne a memória do primeiro sopro,
nas veias, o rumor do rio antigo
que nunca cessa de procurar o mar,
no peito, o incêndio da fronteira,
o fogo que delimita, que fere, que protege,
mas também o ardor que deseja dissolver-se,
ser nuvem, ser fonte, ser mar.
Dentro de mim, o masculino e o feminino
não são rótulos, não são géneros, mas chaves,
idiomas secretos de um mesmo abismo —
o fogo que cerra e contém,
o rio que abre e acolhe.
Sou ambos, sou ponte,
sou aquilo que a Criação continua a revelar.
Minha carne é gramática do Mistério,
verbo que se faz limite e, inquieto,
Nome na procura do que o transcende.
Habito na fresta onde os opostos se beijam:
sou o barro que sonha ser estrela,
a palavra que, encarnada,
se descobre inacabada,
anseia ser mais que som,
mais que corpo,
ser o eco inteiro da Trindade,
onde o Um se desfaz no Três,
e o Três se resolve no Um.
E é no abraço — mais que de corpos, de contrários
que reencontro a pegada do Início,
a linguagem secreta da Origem,
onde ser limite é apenas o princípio
de aprender a ser infinito.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo