Metáfora sobre o silêncio, a arte, o saber e o valor das pessoas simples
Diz-se que a Paz caminhava por um vale antigo levando uma lanterna apagada.
As pessoas olhavam-na e pensavam que ela já tinha luz suficiente, pois o seu próprio silêncio iluminava o ambiente. Mas a Paz sabia que aquilo era apenas penumbra, uma luz fraca que não revelava os contornos das coisas.
Cansada de tropeçar no escuro, decidiu procurar quem pudesse ajudá-la a acender a sua lanterna.
A primeira chama foi a Arte
No sopé de uma montanha encontrou a Arte, que pintava o vento com pincéis invisíveis.
A Arte tocou a lanterna da Paz e acendeu nela uma chama azulada.
“Agora tens brilho”, disse ela.
“A minha luz não mostra caminhos, mas desperta sentimentos. Ela faz as pessoas verem o mundo com outros olhos.”
E era verdade: por onde a Paz passava, a chama azul tingia tudo com beleza.
Mas a chama oscilava demasiado. À menor rajada de conflito, sentia-se insegura e tremia.
A segunda chama foi o Saber
A Paz continuou a caminhada e encontrou o Saber sentado junto a uma velha ponte, enrolado em livros e mapas.
“A tua chama é bonita, mas instável”, disse o Saber.
“Deixa-me oferecer-te outra.”
E soprou sobre a lanterna da Paz, acendendo nela uma segunda chama, dourada que era firme, clara, quase como o Sol.
“A minha luz ajuda a ver as causas das sombras. Mostra os caminhos, mesmo os que a Arte não sabe nomear.”
A Paz agradeceu, mas perguntou:
“E os que não sabem ler mapas nem se ocupam com livros de muito saber? E os que vivem do que a terra dá e só querem passar o dia sem temores? Não os cegará tanta luz?”
O Saber sorriu benevolente:
“A luz não exige que todos falem sobre tudo. Apenas ilumina para que ninguém se perca. Quem quiser ver verá; quem preferir caminhar devagar terá sempre a sua dignidade intacta.
A terceira chama foi o Silêncio
A Paz seguiu viagem e encontrou o Silêncio junto a um lago parado.
Era discreto, quase invisível, mas ao aproximar-se, a Paz sentiu uma calma profunda.
“Tenho também uma chama para ti”, disse o Silêncio.
E acendeu na lanterna uma pequena brasa branca.
“A minha luz não se vê; sente-se. É o espaço entre as palavras, onde as pessoas simples se recolhem quando o mundo fala demais. Sou o abrigo para quem teme dizer tolices, para quem se sente esmagado por debates que não compreende ou porque simplesmente gosta de ouvir. Sou prudência e prudência também é inteligência.
Então a Paz compreendeu algo essencial: cada chama tinha a prudência e a sua medida.
A Arte iluminava o coração.
O Saber iluminava o entendimento.
O Silêncio iluminava a prudência e a dignidade dos mais simples.
Mas nenhuma das três, sozinha, bastava.
A aldeia da grande luz
Quando a Paz voltou ao vale com a lanterna de três chamas, aconteceu algo extraordinário.
As aldeias foram-se iluminando gradualmente: Os artistas viam melhor o mundo e criavam com mais responsabilidade; os sábios falavam com mais humildade e as pessoas simples já não se sentiam diminuídas, porque perceberam que o seu silêncio não era ignorância, mas um modo legítimo de viver! E assim todos descobriram que só se cresce quando se escuta: escuta-se a arte, o saber e até o silêncio alheio.
A lanterna da Paz tornou-se, então, uma metáfora viva: uma luz feita de três chamas que se equilibram mutuamente, coração, razão e prudência.
E assim, onde quer que ela ande, deixa agora não um silêncio vazio, mas uma luz completa: uma luz onde cada pessoa, instruída ou simples, pode caminhar com dignidade, sem se sentir menor e sem diminuir ninguém.
De facto, a sabedoria não se mede pela altura a que se sobe, mas pela dignidade com que se caminha ao nível de todos.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo