NO CIMO DO MONTE SÃO SILVESTRE

Finalmente, ao entardecer, chegaram ao cume do monte São Silvestre. A subida fora íngreme, e cada um trazia na mochila o peso de todo um ano que findara. Diante deles erguia-se a crista da montanha, um véu de granito e névoa que lhes ocultava o vale do porvir, o ano seguinte. Não buscavam uma vista qualquer; buscavam a paisagem do amanhã.

O primeiro a falar foi a Queixosa, esfregando os ombros doloridos. “Que penar! Cada passo deste caminho foi uma pedra de desânimo. A Europa lá em baixo é um salão de dança deserto, onde os pares giram, sim, mas em círculos vazios, cada qual em torno do seu próprio umbigo. Carregamos uma espada de crise no peito, e falta-nos o fôlego para dançar.” Desanimada, sentou-se numa pedra, vencida pelo próprio fardo.

A seu lado, o Pessimista acendeu um cigarro, e a brasa tremulou na penumbra como um farol mórbido. “O que esperas ver do outro lado? Mais do mesmo, ou pior. O otimismo é uma incurável doença da vista. O mundo tornou-se um espelho partido: cada fragmento reflete uma ‘verdade’ absoluta, barulhenta e morta. Possuímos todo o conhecimento, mas perdemos o tambor da reflexão. O barulho das notícias e dos dançarinos do poder abafa o silêncio da sabedoria. É o fim da ressonância. A alma já morreu; o que vês é o corpo a sofrer e a espantar-se.”

Uma risada clara cortou o ar, vinda da Otimista, que estendia os braços como se abraçasse o vento. “Mas olhem para trás! Subimos! Cada passo, por mais ínfimo, foi uma boa ação contra a impotência. A luz não se apagou; apenas mudou de lugar. Agora vem de dentro, da conexão divina, como a das estrelas. Não precisamos de projetores, nem de espectadores, a escuridão lá fora é grande como num planeta morto dependente da luz alheia. Precisamos é de acender a nossa própria chama e dançar, não em círculos egoístas, mas num grande concerto, onde o ritmo seja o pulsar de boas vontades!”

Um homem idoso, a quem todos chamavam o Sábio, ouvira em silêncio. Os seus olhos pareciam ver para lá da névoa. “Nos três manifesta-se a razão “, começou, calmamente. “A subida foi penosa para Queixosa. O vale que deixámos está intoxicado de informação vazia e de medo para o Pessimista. E só a energia do espírito, essa dança interior, nos trouxe até aqui como disse o Optimista. O erro é pensarmos que a paisagem que buscamos é algo totalmente novo. Ela é a mesma de sempre, apenas esquecida. Os pilares estão nela: a colina da Razão, que vem da Grécia; o caminho da Lei e a estrutura que vem de Roma; e o rio da Espiritualidade, que vem do deserto e da Galileia que deu sentido, não como museu, mas como fonte viva. Desconectamo-nos da nossa própria cultura. Recuperá-la não é voltar atrás; é procurar a bússola.”

Foi então que se ergueu o Profeta. Não falava com frequência, e as suas palavras carregavam um peso quieto. “O imperador Constantino, em desespero por um império que ameaçava afundar-se, convocou um concílio para salvar um império que já sangrava por dentro. Nós convocamo-nos a nós mesmos, no encontro da nossa ipseidade. A máquina da guerra não se desarma com gritos de guerra. A paz ‘gratuita’ constrói-se com pequenos passos pessoais, tornando-nos estrelas que brilham com luz própria. Não esperemos pelos governantes, condicionados à quantidade e ao efêmero. O desfasamento entre a montanha e a planície permanecerá.”

Fixou o véu de névoa. “O outro lado do monte não nos será revelado por um clarão. A neblina dissipar-se-á devagar, conforme nós, um a um, começarmos a dançar a dança sensorial da vida, não para impedir a queda de um império, mas para celebrar a ascensão de uma humanidade que se recorda de si mesma e não esquece a sua história. O otimismo não é uma crença cega em soluções escondidas. É a coragem de actuar, mesmo na escuridão, confiando que a nossa luz interior é farol e semente.”

O grupo ficou em silêncio. A noite caíra, e as primeiras estrelas, verdadeiras, furaram o manto do céu. Já não ansiavam por ver o vale escondido de imediato. Compreenderam que a paisagem do ano que se aproxima se desenharia com a qualidade dos seus próximos passos na descida. A Queixosa enxugou uma lágrima, não de pena, mas de alívio. O Pessimista apagou o cigarro e contemplou as estrelas. A Optimista sorriu, sentindo o concerto a formar-se. O Sábio fez um gesto de concordância. O Profeta indicou o caminho de volta, para baixo, para o mundo.

Ao iniciarem a descida pelo flanco oculto do monte, o caminho revelou-se mais escuro e incerto do que a subida. Um silêncio pensativo pairava sobre o grupo, até que a Queixosa, tropeçando numa raiz, exclamou: “E agora? Tanta conversa lá no cume, e o caminho é só pedra e sombra!”

O Sábio, caminhando à frente com passo firme, sorriu e não se voltou, mas a sua voz ecoou suave como um rio subterrâneo:

“Isso lembra-me uma parábola antiga de três viajantes a quem foi dada, a cada um, uma pequena semente de luz. O primeiro guardou-a num relicário, com medo de a perder. O segundo passou a vida a admirá-la, a louvar o seu potencial e a descrever a árvore gloriosa que dela nasceria. O terceiro, sem cerimónia, curvou-se e plantou-a na terra dura do caminho. Regou-a com o pouco que tinha: paciência e ação diária.

O Pessimista interrompeu, cinicamente: “Deixem-me adivinhar. Só a do terceiro cresceu.”

“Mais do que isso”, continuou o Sábio. “A do primeiro apodreceu na perfeição estática. A do segundo tornou-se um mito bonito, mas estéril. A do terceiro, por se haver confiado à terra crua, brotou. E quando a noite mais cerrada chegou, a pequena planta começou a emitir uma claridade própria, não para se exibir, mas para iluminar o caminho para os que vinham atrás.

O Profeta, atento, completou, com a sua voz que parecia vir de longe:

“Ite, missa est. A assembleia no cume terminou. A semente da reflexão foi recebida. Agora, descemos. A descida é o plantar. Cada passo firme neste troço difícil é regar. A boa ação, por mais pequena, é o sol que a faz brotar. Não levarão a árvore consigo; plantarão, no caminhar, uma floresta de estrelas ao longo do caminho.”

A Optimista foi o primeiro a entender. Os seus olhos brilharam com uma luz que não era reflexo da lua. “A paisagem que buscávamos”, disse ela, “não estava para lá do monte. Está no sulco que abrimos ao descer. Na semente do espírito dançante que decidirmos plantar hoje, agora, em cada momento.”

O grupo seguiu em silêncio, mas um silêncio diferente. Já não era de expectativa, mas de pacto. Cada um levava no bolso a sua semente única: a memória da cultura esquecida, a crítica que não se resigna, a esperança que não desiste e a sabedoria que liga. E naquela descida para o vale do ano iniciante, começaram todos, simplesmente, a plantar.

A obra começara. Não como um projeto grandioso, mas como uma série de gestos pequenos e luminosos, sulcando a terra dura do tempo, à espera do amanhecer. E enquanto houver almas desperta, a história ainda pode mudar de rumo.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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VIOLÊNCIA RELIGIOSA CONTRA CRISÃOS NA NIGÉRIA

Mais de 200 padres sequestrados desde 2015

Relatório da organização papal revela dimensão dramática da perseguição a católicos no país africano. Doze sacerdotes foram assassinados e milhares de fiéis vivem sob ameaça constante

A Nigéria enfrenta uma crise humanitária silenciosa que atinge diretamente a comunidade católica do país. Segundo dados divulgados pela organização papal “A Igreja em Necessidade”, mais de 200 padres católicos foram sequestrados em 41 das 59 dioceses nigerianas desde 2015, num padrão de violência que se intensifica ano após ano.

Do total de 212 sacerdotes raptados, 183 conseguiram ser libertados ou fugir dos seus captores. Contudo, o saldo trágico desta vaga de sequestros inclui doze padres assassinados e três que morreram posteriormente devido às sequências físicas e psicológicas do cativeiro. A organização alerta que os números reais podem ser “significativamente maiores”, uma vez que faltam dados completos de 18 dioceses.

Há Dioceses fechadas e comunidades abandonadas

A insegurança atingiu níveis tão alarmantes que transformou a geografia religiosa de regiões inteiras. Na diocese de Minna, localizada no estado do Níger, mais de 90 igrejas foram encerradas devido ao terrorismo persistente. Milhares de fiéis viram-se forçados a abandonar as suas práticas religiosas ou a fazê-lo clandestinamente.

“Os cristãos são ameaçados especificamente por causa da sua fé”, destaca o relatório. No norte do país, grupos jihadistas coordenam ataques sistemáticos contra comunidades cristãs, enquanto no centro da Nigéria, milícias armadas promovem uma violência que mistura motivações religiosas, étnicas e económicas.

Alvos fáceis, resgates lucrativos

Os padres tornaram-se alvos preferenciais desta violência por razões que vão além do simbolismo religioso. Facilmente identificáveis pelas vestes clericais e geralmente desprotegidos, os sacerdotes representam simultaneamente um alvo vulnerável e uma fonte de financiamento lucrativa. As comunidades católicas, na sua solidariedade com os líderes espirituais, mobilizam-se intensamente para reunir os valores exigidos como resgate, alimentando assim um círculo vicioso que financia tanto grupos jihadistas como gangues criminosos.

Este fenómeno de sequestros, descrito como “em crescimento”, tornou-se um modelo de negócio para organizações terroristas e redes criminosas que operam num contexto de vazio estatal. O relatório denuncia uma “discriminação estrutural contra as comunidades cristãs”, sublinhando que estas recebem “quase nenhuma proteção eficaz do Estado” em muitas regiões.

Crianças também na mira

A violência não poupa nem os mais jovens. Em 2025, homens armados raptaram pelo menos 227 alunos e professores de uma escola católica, demonstrando que as instituições educativas religiosas se tornaram igualmente alvos desta estratégia de terror e extorsão…

A comunidade internacional tem sido repetidamente alertada para a situação dos cristãos na Nigéria, mas as respostas concretas permanecem limitadas ou nulas porque, certamente, não é do interesse da política de informação da EU dar relevo a tais informações. Organizações de direitos humanos classificam o país como um dos lugares mais perigosos do mundo para se professar a fé cristã, numa crise que combina perseguição religiosa, falência estatal e criminalidade organizada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A MÁQUINA DA PROPAGANDA DISFARÇADA

O Ecossistema de Influências baseado em Financiamento dos Media, de Narrativas e do Poder na UE

Como observador atento dos mecanismos de informação em Bruxelas e seu ricochete em Portugal, constato uma arquitectura sofisticada de modelação da opinião pública. Os recentes financiamentos da UE à RTP e Lusa cifrados em 1,7 € milhões para “projectos de coesão” e “combate à desinformação” revelam apenas a ponta visível de um icebergue muito mais profundo.

Estes financiamentos, embora apresentados como apoio ao jornalismo, criam dependências estruturais que comprometem a independência editorial. Quando uma organização mediática como a  RTP e a Lusa depende significativamente de verbas europeias para projetos específicos, desenvolve-se uma autocensura preventiva, o que não se alinha com as prioridades de Bruxelas dificilmente recebe atenção ou recursos.

Mecanismos subtis de influência mediática estão a criar um consenso artificial e a sufocar o debate democrático na União Europeia. O resultado é uma paisagem mediática surpreendentemente homogénea com o povo a repetir o que lhe é apresentado.

A Fábrica dos “Comentadores Independentes”

Observa-se em Bruxelas um ecossistema de grupos consultores (think tanks), fundações e grupos de peritos que alimentam constantemente os meios de comunicação com “especialistas independentes”. Esta independência é frequentemente ilusória, muitos destes comentadores são financiados directa ou indirectamente por estruturas ligadas às instituições europeias ou por países com agendas específicas.

Em Portugal, este fenómeno replica-se através de comentadores que dominam os painéis televisivos, repetindo narrativas perfeitamente alinhadas com as posições oficiais de Bruxelas sobre temas como a guerra na Ucrânia, as políticas sanitárias ou a integração europeia. A diversidade de perspectivas genuinamente críticas é marginalizada.

A Ditadura do Consenso e o Silenciamento da Crítica

Cria-se assim uma ditadura do consenso onde posições divergentes são sistematicamente enquadradas como: “Desinformação” quando questionam narrativas oficiais, “Populismo” quando reflectem preocupações populares não alinhadas, “Pró-Rússia” quando criticam políticas da NATO ou da EU.

O caso ucraniano é paradigmático: enquanto se denuncia alegada propaganda russa, financia-se massivamente uma narrativa unilateral que ignora complexidades históricas, interesses geopolíticos e responsabilidades partilhadas no conflito. Questionar esta narrativa tornou-se tabu mediático.

Da Censura tradicional à Censura digital

Assistimos a uma evolução da censura que evoluiu da censura da PIDE para mecanismos mais sofisticados, ou seja, da repressão clássica para um controlo moderno baseado em financiamentos condicionados a quem se alinha, na descredibilização social enquadrando o crítico como radical ou negacionista  e na colaboração com plataformas digitais que colaboram com governos para limitar discursos “problemáticos” ou que apontam para perspectivas não conformistas.

Também ameaça do dinheiro digital representa um salto qualitativo neste controlo, permite bloquear instantaneamente o acesso a recursos financeiros de dissidentes políticos, activistas ou simples cidadãos com opiniões inconvenientes, como já está a ser praticado.

O Paradoxo Democrático

Este sistema, que se apresenta como defensor da democracia, está a construir um novo autoritarismo tecnocrático mais radical. Usa o fantasma do passado para silenciar as críticas ao presente. Por seu lado, as elites tecnocráticas de Bruxelas, não eleitas directamente, impõem políticas que afectam milhões, enquanto o Parlamento Europeu, com poderes limitados, serve frequentemente de fachada democrática e por outro lado os parlamentos nacionais são contornados pelos governos ou usados para aprovar directrizes sem discussaotarnsformando-se também eles em câmaras de eco de Bruxelas.

Em Portugal, este sistema manifesta-se através do alinhamento automático com posições europeias, da marginalização de visões críticas da EU e da utilização sistemática do fantasma do salazarismo para descredibilizar críticas legítimas ao autoritarismo contemporâneo.

A Verdade na Gaveta

Enquanto se gasta milhões a “combater a desinformação”, ignora-se que a maior desinformação pode ser a que vem embrulhada em selos oficiais. As histórias inconvenientes, sobre corrupção, sobre falhanços políticos, sobre alternativas reais, permanecem na gaveta.

O povo português, como outros povos europeus, merece melhor que este jornalismo de subserviência. Merece um debate aberto sobre o futuro da Europa, sobre a nossa posição no mundo, sobre as políticas que nos afectam diariamente.

Exige-se transparência radical sobre financiamentos, conflitos de interesse e relações de poder. A verdadeira democracia não teme o dissenso, teme apenas o silêncio imposto e a manipulação dos povos que passam a ser meros reprodutores das intenções dos tecnocratas de Bruxelas.

A democracia exige vozes diversas, não um coro que canta a mesma melodia encomendada.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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TRUMP E A TENTAÇÃO CONSTANTINIANA

Um artigo recente publicado na plataforma InfoCatólica (1) afirmou que o presidente dos Estados Unidos Donald Trump teria convocado um “Terceiro Concílio de Niceia” para ocorrer em março na cidade turca de Iznik, antiga Niceia, conhecida por sediar o histórico Primeiro Concílio Ecuménico em 325 d.C.

A alegação, baseia-se numa interpretação sensacionalista, porque carece de fontes oficiais verificáveis dado no artigo não terem sido apresentados comunicados da Santa Sé, de líderes ortodoxos ou da Casa Branca confirmando uma convocatória formal de “concílio”, como historicamente se entende no direito canónico católico.

Historicamente, o Concílio de Niceia de 325 foi convocado pelo imperador Constantino num contexto irrepetível. O cristianismo acabara de ser legalizado, a Igreja ainda não possuía a estrutura canónica atual e o imperador via-se como garante da unidade civil e religiosa do Império. Mesmo assim, Constantino não definiu a doutrina: fê-lo o episcopado. A partir da Idade Média, e com maior clareza na modernidade, a Igreja Católica afirmou a sua autonomia face ao poder político. Concílios tal como o Vaticano II só podem ser convocados pelo Papa.

Neste contexto, a ideia de um líder político contemporâneo “convocar” um concílio não pode ser entendida em sentido estrito. O que estará em causa não é um evento eclesial, mas talvez um gesto simbólico: a evocação de Niceia como mito fundador de uma identidade cristã do Ocidente.

Donald Trump tem recorrido com frequência à linguagem religiosa, não como expressão teológica, mas como marcador civilizacional. O cristianismo surge menos como fé e mais como fronteira cultural: aquilo que define “quem somos” contra “quem ameaça”. É uma lógica que encontra eco em setores do nacionalismo cristão norte-americano.

No modelo russo, o Estado e a Igreja Ortodoxa caminham juntos na construção de uma identidade nacional: a fé legitima o poder, e o poder protege a fé, ou, pelo menos, a sua versão oficial. Trata-se de uma simbiose eficaz do ponto de vista político, mas problemática do ponto de vista do Evangelho.

A Igreja Católica, sobretudo após o Vaticano II, desconfia profundamente desse modelo “constantiniano”. A fé perde a sua liberdade profética quando se torna instrumento do poder. O cristianismo deixa de converter consciências para passar a organizar fronteiras.

Mais relevante do que discutir se Trump pode ou não convocar um concílio, algo que, evidentemente, não pode,  é compreender por que o imaginário de Niceia, de Constantino e da cristandade imperial reaparece hoje no discurso político. Num mundo fragmentado e inseguro, a perceção de que, no modelo islâmico, a identificação de religião com política permite a existência de uma comunidade supranacional coesa, a Ummah, pode exercer forte fascínio. Para um líder que se percebe à frente de um “império” em crise de identidade, numa situação que evoca a fragilidade do Império Romano nos tempos de Constantino, a religião tende a ressurgir como instrumento privilegiado de unidade simbólica, alimentando projetos e fantasias de recomposição civilizacional. A luta do nosso tempo desencadeada na Europa por políticas, directrizes e agendas contra o cristianismo parece querer agora moderar a ideologia Woke e o dogmatismo secularista de laivos jacobinos.

O risco é antigo: quando César fala em nome de Deus, Deus acaba por falar com a voz de César.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1)              https://www.infocatolica.com/?t=noticia&cod=54128&utm_medium=email&utm_source=boletin&utm_campaign=bltn251228#formComentario

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PARA UMA DEMOCRACIA DE CIDADÃOS PLENOS

Eleições Presidenciais de 18 de janeiro de 2026, diáspora portuguesa e superação do burocratismo

As próximas eleições presidenciais de 18 de janeiro de 2026 em Portugal voltam a colocar no centro do debate democrático uma questão recorrente e estrutural: até que ponto o exercício da cidadania se encontra verdadeiramente ao serviço do povo soberano (Const. art.º 3.º) e não condicionado pelos meandros de uma democracia excessivamente partidária?

Numa democracia madura, o direito à cidadania não pode ser filtrado nem limitado por interesses partidários, nem transformado num instrumento seletivo que favorece uns cidadãos em detrimento de outros, conforme conveniências eleitorais de momento. Quando os direitos políticos são submetidos ao crivo das máquinas partidárias, o sufrágio deixa de ser expressão plena da vontade popular e passa a ser parte de um jogo estratégico de poder.

Esta limitação torna-se particularmente evidente no relacionamento dos partidos com os eleitores portugueses residentes no estrangeiro. A diáspora, que constitui uma parte significativa da nação, continua a enfrentar obstáculos práticos e burocráticos no exercício do voto (entraves administrativos, em contradição com o princípio constitucional da igualdade, art.º 13.º e com o direito de participação política, art.º 49.º), revelando uma contradição profunda entre o discurso oficial de inclusão e a realidade administrativa da exclusão indireta e prática.

Da formalidade ao essencial para recuperar o sentido do bem comum

Em cada ciclo eleitoral, observa-se um desgaste crescente do debate público: ativistas partidários perdem-se em questões formais, polémicas acessórias e confrontos estéreis, enquanto o essencial, o bem comum, os projetos de futuro, a coesão social, é relegado para segundo plano ou nem sequer se tem em vista. Esta lógica de confronto permanente não fortalece a democracia; pelo contrário, empobrece-a.

Urge, por isso, criar instrumentos mais transparentes, simples e eficazes de expressão da vontade cívica, que libertem o debate político da obsessão procedimental e permitam recentrá-lo no conteúdo, nas ideias e nas soluções.

Voto por correspondência e voto eletrónico são meios, não ameaças

Entre as possibilidades concretas para reforçar a participação democrática encontram-se o voto por carta e, sobretudo, o voto eletrónico. A recusa persistente em preparar seriamente estas modalidades não se justifica por razões técnicas insuperáveis, mas antes por receios políticos e pela defesa de interesses organizados que beneficiam da atual opacidade e complexidade do sistema.

Num tempo em que a tecnologia é utilizada para gerir sistemas financeiros, infraestruturas críticas e serviços públicos essenciais, argumentar que o voto eletrónico é, por natureza, inseguro revela mais um espírito retrógrado do que uma prudência democrática (art.º 9.º, al. c). A verdadeira ameaça à democracia não reside na tecnologia em si, mas na falta de vontade política para a colocar ao serviço da cidadania.

Não só representação, mas sobretudo participação democrática direta

Na era da Inteligência Artificial e da digitalização avançada, a democracia não pode continuar limitada a um modelo estritamente representativo, intermitente e pouco participativo. Cada cidadão deveria ter a possibilidade de participar de forma direta e regular na validação de programas, orientações estratégicas e grandes medidas governativas, através de mecanismos claros de consulta e votação cívica.

Tal evolução não destruiria a democracia; antes a aprofundaria. Naturalmente, este novo paradigma colocaria em causa interesses partidários enraizados numa cultura política baseada no confronto, no bloqueio mútuo e na instrumentalização do adversário, visto como inimigo a abater, e não como parte complementar de uma sociedade plural e complexa.

Urge mudança do espírito democrático

Um espírito democrático à altura do nosso tempo traria dificuldades àqueles que vivem da criação artificial de problemas para proveito próprio. Mas esse é precisamente o sinal de que a democracia estaria a cumprir melhor a sua função: servir os cidadãos e não os intermediários do poder.

Vai sendo tempo de abandonar definitivamente a lógica da apagada e vil tristeza — não como evocação nostálgica do passado, mas como crítica a um presente que insiste em permanecer aquém das suas possibilidades. Uma democracia viva exige coragem, confiança nos cidadãos e abertura à transformação.

A cidadania não pode ser administrada como concessão partidária. É um direito originário, inalienável e fundador da própria República.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

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