O ÚLTIMO JARDIM

No alto de uma colina esquecida, existia uma quinta com muitas árvores, destacando-se nela ciprestes antigos. Chamavam-lhe “O Último Jardim”. Lá vivia Aurélio, um velho filósofo que passara a vida a estudar o espírito das máquinas e o silêncio do Homem.

Durante décadas, o mundo lá em baixo transformara-se numa rede cintilante de luzes, ecrãs e promessas. As pessoas comunicavam mais do que nunca, mas já não se olhavam. Trabalhavam, produziam, votavam, seguiam tendências e, no entanto, ninguém parecia saber porquê nem para onde ia a sociedade.
A cada ciclo eleitoral, a multidão subia à praça, esperando um novo messias político que prometia “liberdade”, “progresso”, “crescimento” e “inovação”. Mas o que recebiam era sempre o mesmo: um novo modelo da mesma prisão.

Aurélio observava a sociedade como quem contempla um doente que se recusa a aceitar o diagnóstico. Na quietude do monte, ele procurava um fio de esperança no tear desfeito do mundo. Olhando para o vasto latifúndio cultural à sua frente, um pensamento ecoou dentro de si, claro e frio como o ar da noite:
“A humanidade não padece de falta de liberdade, mas da falta de limite. E quando o limite desaparece, a fronteira entre o bem e o mal, o sagrado e o profano, o essencial e o supérfluo, o eu e o outro desaparece e a alma evapora-se.

Certa noite, uma jovem de nome Íris, sob um manto de estrelas, subiu a colina. Seus pés, pesados da poeira das cidades-mercado em ruínas, arrastavam o desaponto de uma busca. Outrora, aquelas terras foram um mosaico vibrante, um caleidoscópio de vozes e cantos. Agora, sentia o mundo achatado, reduzido a um deserto uniforme, um latifúndio estéril onde só germinavam as sementes da economia e do poder, ceifadas por um punhado de mãos. Em   Aurélio ela buscava uma resposta que o mundo lá em baixo já não sabia dar.
“Mestre, disseram-me que compreendes as máquinas. Elas agora decidem quase tudo! Decidem o amor, o trabalho e até o que devemos pensar. E a vida do dia-a-adia tornou-se em rotina aborrecida! Vive-se num mundo desarraigado, nutrido pelas miragens enganosas do liberalismo e de outras ideologias sem solo, que prometem um céu e entregam um deserto. Haverá ainda esperança?”

Aurélio sorriu com ternura.
“A inteligência artificial é o espelho mais nítido que agora tivemos. Mas o que ela reflete é a nossa própria sombra. Não temas o espelho, teme o vazio de quem não ousa ver-se nele.”

Íris um pouco confusa insistiu:
“Então a saída está em rejeitar a tecnologia? Em voltar ao passado?”

O sábio sorriu com brandura.
“Não, filha. A solução não está em voltar atrás, mas em relembrar. A tecnologia deve ser a continuação da nossa alma, não um deus faminto que a devora. O perigo nunca esteve no poder da tecnologia ou das máquinas, mas na nossa incapacidade de ver nelas a nossa própria humanidade refletida ao criá-las. Doutro modo torna-se num ídolo que devora os seus criadores.”

Aurélio e Íris desceram juntos ao jardim. Lá, entre árvores e pedras cobertas de musgo, crescia um pequeno altar com três palavras gravadas em pedra:
Limite. Relação. Responsabilidade.

Aurélio explicou:
“O limite é o contorno do ser; sem ele, tudo se dissolve.
A relação é o tecido invisível que faz do indivíduo um nós.
A responsabilidade é o amor tornado ação.”

Íris esforçou-se por suster as lágrimas.
“E quem ensinará isso às cidades?”

O filósofo sentiu em si as lágrimas de Íris correr-lhe pelo pensamento e olhando o horizonte eletrificado pensou para si: a vasta teia luminosa que conecta o mundo, o homem, na sua solidão essencial, nutre-se das próprias vibrações que o mantêm cativo, até que, insensivelmente, se transforma no sustento do labirinto que o envolve! Depois respirou fundo e respondeu:
“As cidades não se transformam por decretos, mas por contágio. Quando um coração desperta, tremem mil algoritmos. Quando duas pessoas se olham e se reconhecem, hesita o sistema inteiro. É assim que começa a cura.”

No dia seguinte, Íris desceu a colina. Levava consigo o sofrimento do mundo e no peito as três palavras que a levaram à autoconsciência.
Por onde passava, desligava um ecrã, escrevia um poema num muro, ensinava uma criança a plantar uma semente.
E em cada gesto simples, nascia o rumor de um novo tempo, de um tempo em que a sociedade deixava de ser máquina e voltava a ser jardim.

Epílogo

Aurélio morreu em paz, certo de que o seu nome seria esquecido.
Mas o Último Jardim floresceu como uma lenda: falava-se de um velho e de uma jovem que semearam uma revolução sem bandeiras; esta verdadeira revolução é feita de consciência, compaixão e silêncio.

E, pela primeira vez em séculos, o mundo não perguntava “para onde vai a sociedade”,
mas para onde vai a alma do homem

e essa, enfim, voltava a caminhar.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O CONFLITO GEOPOLÍTICO NA UCRÂNIA E O REDESENHO DO MUNDO

 

A guerra na Ucrânia expôs as contradições do Ocidente e revelou que o mundo já não se organiza em torno de uma única hegemonia. Entre velhas potências e novos polos, o futuro exigirá reconciliação, complementaridade e coragem política.

A narrativa que se desmorona

Quando o conflito geopolítico na Ucrânia acabar, a classe política e o jornalismo europeus enfrentarão um sério embaraço. Terão de reconhecer que a narrativa que ajudaram a construir foi parcial, simplista e, em muitos casos, manipuladora e enganosa. Portugal, infelizmente, não escapa a esse enredo de formatação da opinião pública que foi conduzida a uma visão distorcida dos factos.

Durante anos, o discurso político-mediático formatou o pensamento coletivo, condicionando a perceção popular dos factos. Mas a realidade factual, uma Europa em declínio, subordinada a uma NATO e a uma burocracia de Bruxelas cada vez mais distantes dos valores humanistas, acabará por impor-se.

Portugal e o peso da submissão diplomática

O Palácio das Necessidades, símbolo da diplomacia portuguesa, tornou-se quase numa “casa de necessidades”, administrando interesses externos em vez de defender a identidade nacional. Portugal, com a sua experiência multicultural e o seu histórico de convivência entre povos, poderia exercer um papel exemplar na diplomacia internacional, defendendo, para isso, uma política externa baseada na irmandade e complementaridade dos povos, e não na submissão a blocos.

Washington e Bruxelas perdem credibilidade à medida que o mundo se reorganiza em torno de novos polos, como os BRICS, que representam uma alternativa concreta à hegemonia anglo-americana. A Europa, porém, insiste num modelo de dependência militar e ideológica que a prende ao passado.

A guerra como instrumento geopolítico

O que se apresenta como uma “guerra entre a Ucrânia e a Rússia” é, na verdade, um conflito instrumentalizado, um tabuleiro geopolítico em que a Ucrânia é usada como “cavalo de Troia” de um mundo velho, por potências que pretendem prolongar a sua influência global. O povo ucraniano, composto por diversas etnias que antes viviam em paz, tornou-se vítima de uma guerra que serve mais os mercados e as indústrias militares do que a justiça ou a democracia.

Países como Estónia, Letónia e Lituânia enfrentam idêntico destino: são peças menores num jogo de hegemonias. Historicamente, o Ocidente tem sido o mais agressivo nas suas políticas expansionistas, fomentando desestabilizações internas para justificar a sua intervenção. Trata-se de um expansionismo refinado e hipócrita, que utiliza as fragilidades dos pequenos para ampliar o poder dos grandes.

O vazio moral da Europa tecnocrática

Enquanto líderes como Viktor Orbán, em Budapeste, afirmam uma visão alternativa de soberania europeia, a União Europeia mostra-se incapaz de responder à mudança histórica em curso. Enredada em contradições, aposta na indústria militar e compromete o seu próprio futuro económico.

A prosperidade europeia floresceu quando predominavam governos social-democratas e conservadores moderados que eram os herdeiros do humanismo cristão e do capitalismo social que nasceram do Iluminismo e da doutrina social da Igreja Católica. Essa herança ética e filosófica foi sendo substituída por um tecnocratismo sem alma, afastado da experiência humana real.

A nova ordem multipolar

A nova geopolítica já não se organiza em torno de um único poder. O futuro do mundo será moldado por hegemonias partilhadas, em que Estados Unidos e China se reconhecerão mutuamente como parceiros e rivais necessários. A paz não virá da imposição de blocos, mas da interligação das economias e da complementaridade entre regiões.

Nesse cenário, a Europa e a Rússia só terão futuro se compreenderem que a reconciliação entre elas é condição de sobrevivência. Ou se reconciliam e colaboram, ou se tornam irrelevantes na nova ordem bipartida que se desenha. O mundo está a tornar-se bipolar, mas ainda há espaço para uma terceira via, a via da lucidez, da dignidade e da paz.

Há momentos em que se torna imprescindível interrogar a legitimidade das decisões proferidas em contextos de profunda incerteza, sob o prisma cultural e político-social, de modo a enriquecer o debate e integrar visões até então marginalizadas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O JARDIM DOS ESPELHOS PARTIDOS  

A Queda

No princípio, havia o Jardim. Não um jardim qualquer, mas aquele onde cada árvore conhecia o nome dos seus avós, onde as fontes murmuravam histórias de séculos e os caminhos de pedra guardavam a memória dos passos de quem partira. As crianças nasciam já segurando um fio invisível que as ligava às raízes mais profundas, e os anciãos morriam plantando sementes que só germinariam quando os seus bisnetos fossem velhos.

Mas algo mudou quando descobriram que podiam cortar os fios.

Primeiro foi Lúcia, a estudante de quinze anos, que um dia olhou para o cordel prateado que lhe prendia o pulso e pensou: “Isto é pesado”. Com uma tesoura de prata que lhe ofereceram na escola, onde agora ensinavam que libertar-se era o mesmo que ser livre, cortou o fio num gesto seco. Sentiu-se leve como nunca e ao mesmo tempo sentiu-se também a flutuar, como se tivesse perdido a gravidade.

Os vendedores de tesouras chegaram em caravanas coloridas, com ecrãs luminosos nas costas e promessas nos lábios. “O passado é uma âncora”, gritavam nas praças. “O futuro é um rio sem margens, e vocês são os surfistas da eternidade!” Vendiam tesouras de todos os tamanhos: pequenas para crianças, grandes para pais que queriam cortar os fios dos filhos “por amor”, industriais para as instituições que desejavam cortar todos de uma vez, “por eficiência”.

A linguagem começou a decompor-se como fruta esquecida ao sol. As palavras antigas, aquelas que continham dentro de si séculos de significado, como “dignidade”, “sacrifício”, “comunhão”, começaram a apodrecer. Em seu lugar nasceram palavras-fantasma: “impacto”, “relevância”, “visualizações”. Palavras que pareciam dizer tudo, mas não diziam nada, como espelhos que refletem apenas outros espelhos.

João, o pai de Lúcia, era professor. Ou fora. Agora era “facilitador de conteúdos”. Passava as noites a preencher formulários sobre “competências transversais” e “indicadores de performance”. Quando chegava a casa, já não tinha palavras para falar com a filha. Ela também não tinha palavras para ele. Entre eles erguia-se uma Muralha sem portas,alta, lisa, sem frinchas onde pudesse passar sequer um sussurro.

“Pai, não percebes”, dizia Lúcia, olhando para o ecrã onde dezenas de rostos idênticos desfilavam. “Vocês viveram numa prisão e chamavam-lhe tradição.”

“Filha, tu não vês”, respondia João, olhando para ela, mas vendo através dela, como se ela fosse de vidro. “Estão a vender-vos liberdade e a entregar-vos correntes.”

Mas um não ouvia o outro. As suas vozes ricocheteavam na Muralha e voltavam para trás, transformadas em eco que cada um interpretava como confirmação do que já pensava.

No jardim onde fora feliz em criança, João descobriu enterrado, coberto de ervas daninhas, um Relógio de Sol. Já ninguém se lembrava de que existira. O tempo agora era ditado pelos algoritmos, pelas notificações, pelo intervalo de dopamina entre um like e o seguinte. O relógio de sol, que um dia marcara os ritmos das estações, das colheitas, das orações, jazia morto sob a terra. Como se pudessem enterrar o tempo e assim tornarem-se imortais.

O Labirinto

A cidade transformara-se num Labirinto. Não daqueles com corredores de pedra e minotauros escondidos, mas um labirinto líquido, onde os caminhos mudavam de forma de hora a hora. Na segunda-feira defendias uma coisa, na terça-feira o algoritmo mostrava-te o oposto e na quarta já não sabias o que pensavas. A única certeza era a incerteza, e chamavam a isso “pensamento crítico”.

Miguel tinha vinte e um anos e um plano perfeito: tornar-se célebre. Não como os antigos, que escreviam livros em vinte anos, compunham sinfonias ou plantavam bosques. Ele queria a fama imediata, espetacular e irrevogável. Estudara todos os casos: o número de vítimas, as armas, os locais. Nos fóruns escuros da internet, trocava mensagens com outros iguais a ele, todos em busca da mesma coisa: visibilidade absoluta. Mais do que ser, importava estar. No seu mundo, ser visto era existir. Tudo o mais era o vazio.

Nunca ninguém lhe perguntara: “Para onde vais, Miguel?” Nem na escola, nem em casa, nem na sociedade. Todos estavam demasiado ocupados em caminhar, viviam numa marcha frenética sem destino, um marcar passo qualitativo disfarçado de progresso. Miguel sentia-se como um ponto num mapa sem coordenadas, numa caminhada sem bússola.

A mãe de Miguel, Ana, trabalhava num escritório de vidro onde todas as divisórias eram transparentes. “Transparência”, diziam os chefes, “gera confiança”. Mas Ana sentia-se permanentemente exposta, como se vivesse num aquário onde até os seus pensamentos pudessem ser auditados. As métricas eram o novo evangelho: números de produtividade, estatísticas de satisfação, gráficos de eficiência. Nunca se perguntava “porquê?”, apenas “quanto?”.

À noite, via na televisão o mesmo espetáculo em todos os canais; era como ter vinte janelas abertas para o mesmo quarto vazio. Políticos que criavam crises para depois se apresentarem como salvadores. Comentadores que gritavam uns com os outros, não para dialogar, mas para dominar. Programas onde a humilhação pública era entretenimento. Tudo sangue e violência, literal ou metafórica.

O seu filho de catorze anos, Pedro, passava horas a jogar um jogo onde o objetivo era desmembrar corpos digitais. A satisfação máxima vinha quando conseguia cortar o pescoço e o sangue virtual saltava em chafariz. Ana tentava protestar, mas o marido, que já não era bem marido, apenas coabitante, dizia: “É só um jogo. É melhor isto do que estar na rua.”

Mas Pedro já não distinguia bem entre o jogo e a rua. Quando a mãe lhe pedia para estudar mais, para desligar os ecrãs, para falar com ela, sentia a mesma raiva que sentia no jogo quando um inimigo o bloqueava. Era uma raiva limpa, justificada, que pedia resolução imediata sem necessidade de deambular pelas curvas do sentimento ou da relação.

Na escola de Pedro ensinavam-lhe que todas as opções eram igualmente válidas. Que não havia certo ou errado, apenas “perspetivas”. Davam-lhe a liberdade de escolher entre opções idênticas e isso causava-lhe desespero quando necessitava de motivos de esperança. Era como estar num restaurante infinito onde todos os pratos tinham o mesmo sabor: o sabor a nada.

Os novos sacerdotes da humanidade, os influenciadores, os gurus de autoajuda, os vendedores de cursos online, pregavam o evangelho do sucesso rápido e da realização sem esforço. Queriam fazer da realidade um rio fluente sem margens, onde todos pudessem flutuar eternamente sem nunca ter de escolher uma direção. Mas um rio sem margens não é um rio, é uma inundação.

O Espelho de Água

Foi numa manhã de fins de outubro, quando o outono começava a dourar as folhas que ainda restavam no Jardim abandonado, que algo mudou.

Lúcia, agora com vinte anos, estava farta. Farta da liberdade que a prendia, farta das escolhas que não significavam nada, farta de si mesma que se via reflectida em mil ecrãs sem nunca se reconhecer. Voltou ao Jardim, aquele onde cortara o fio cinco anos antes e sentou-se no meio das ruínas.

As árvores tinham crescido de maneira selvagem. A fonte estava quebrada. Mas no centro, onde antes havia apenas terra seca, formara-se um espelho de água, pequeno, quieto, perfeitamente imóvel.

Lúcia aproximou-se com medo. Não olhava para o próprio rosto há muito tempo, na realidade, não. Estava habituada ao filtro de Instagram, ao ângulo perfeito, à versão editada de si mesma. Mas ali, no espelho de água, não havia filtros.

Viu-se. Viu também, refletida na água, a sombra de uma árvore muito antiga que pensava estar morta. E viu uma coisa estranha: na árvore havia um fio prateado a balançar ao vento, como se a esperasse.

Não era o mesmo fio que cortara. Era diferente, mais fino, mais frágil, mas também mais luminoso. Percebeu então que o fio não era uma prisão. Era uma conversa. Um fio que ligava perguntas a respostas, presente a passado, que a ligava ela e a algo maior que ela mesma.

João, o pai, também voltara ao Jardim. Procurava o relógio de sol. Quando o encontrou, começou a desenterrá-lo com as próprias mãos. Demorou horas num acto de esforço e sacrifício como se estivesse a desenterrar o passado. As mãos sangravam. Mas quando finalmente o libertou da terra, algo extraordinário aconteceu: o relógio ainda funcionava. A sombra da haste vertical ainda marcava as horas: as horas reais, as horas que não podiam ser aceleradas por notificações nem interrompidas por anúncios. (Afinal a ancora não prende, é fundamento que orienta e há verdades que resistem às modas!)

Pai e filha encontraram-se junto ao espelho de água. Não falaram logo. Primeiro, olharam, ela para ele e ele para ela, ambos para os seus reflexos na água. E nos reflexos viram algo que tinham esquecido: que eram parte da mesma história. Que entre eles não havia apenas uma Muralha, mas também portas, pequenas, escondidas, mas portas.

“Pai”, disse Lúcia, e a palavra soou diferente desta vez, “acho que cortei algo que não devia.”

“Filha”, disse João, e também a sua voz era outra, “acho que enterrei algo que não devia.”

Não foi um momento de solução mágica. A Muralha não caiu. O Labirinto não desapareceu. Miguel ainda estava lá fora, e Pedro ainda jogava os seus jogos, e Ana ainda preenchia os seus relatórios. A sociedade ainda estava adolescente, ainda marchava sem direção, ainda trocava sacerdotes por vendilhões.

Mas junto ao espelho de água, pai e filha começaram a fazer algo revolucionário: começaram a escutar. Não para responder, não para vencer, mas para ouvir verdadeiramente. (Afinal o diálogo entre gerações pode ser retomado quando recuperamos instrumentos de medida comuns)

E no silêncio entre as palavras, algo antigo acordou. Uma pergunta que todas as gerações tinham feito, mas que esta geração esquecera: “Para onde vamos?” Não “para onde eu vou”, mas “para onde vamos”, juntos, ligados, responsáveis uns pelos outros.

O espelho de água tremeu ligeiramente com o vento. Na superfície, os reflexos misturaram-se, árvore e céu, pai e filha, passado e futuro. E nessa mistura, por um momento, viram não uma resposta, mas uma possibilidade: a de que pudessem tecer novos fios. Não os fios antigos que cortaram, mas fios que eles próprios escolhessem tecer, conscientes de que um fio só existe porque liga duas pontas.

Lúcia pegou numa pedra pequena e atirou-a ao espelho de água. As ondulações expandiram-se em círculos perfeitos, cada vez maiores.

“E agora?”, perguntou.

“Agora”, disse João, “esperamos que as ondas cheguem às margens. E depois, construímos margens que sejam dignas das ondas.”

Era uma resposta imperfeita. Mas era uma resposta que não vinha de um algoritmo, nem de um influenciador, nem de um gráfico estatístico. Vinha deles, da decisão de acreditar que o rio precisava de margens não para prender a água, mas para lhe dar forma, direção, sentido.

No Jardim dos Espelhos Partidos, onde os fragmentos de mil reflexos jaziam na erva, começava a germinar algo pequeno, mas teimoso: não a esperança fácil dos vendedores de ilusões, mas a esperança difícil de quem planta sabendo que talvez não veja a colheita. A esperança de quem tece sabendo que o fio pode partir. A esperança de quem pergunta “para onde?” mesmo sabendo que a resposta demorará uma vida inteira a construir.

E isso, pensou Lúcia olhando para o reflexo do pai ao lado do seu, era mais do que tinham tido em muito tempo. Era o começo de um abraço.

No jardim, o relógio de sol voltava a marcar as horas. Na água, os reflexos continuavam a dançar. E na árvore antiga, o fio prateado balançava ao vento, esperando (1).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Reflexão:

A regeneração da sociedade, simbolizada no conto, é possível, mas exige um esforço activo:

Relógio de Sol: Representa a necessidade de recuperar um tempo autêntico, reconciliando-nos com o passado como fundamento e não como amarra. Mostra que verdades permanentes resistem às modas.

Espelho de Água: Simboliza o reconhecimento de que a vida e a identidade são um processo fluido, reconstruído através das relações. Pequenas ações individuais (como uma pedra atirada à água) criam ondas de transformação.

Árvore Antiga e o Fio: A árvore simboliza a esperança e a resistência das raízes (valores, civilização). O novo fio prateado representa uma reconexão possível, mas frágil e não automática. Ele espera por uma escolha consciente.

Conclusão: A regeneração não é garantida. As estruturas permanecem (relógio) e a vida flui (água), mas a reconexão final (o fio) depende de uma decisão activa de cada um de nós. É uma esperança que pergunta: “E tu, vais pegar no fio?”

 

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ENTRE A NOITE DAS SOMBRAS E O DIA DA LUZ

Na aldeia de São Martinho das Fontes, o tempo tinha a respiração lenta do sino. O povo, embalado por essa cadência e embebido pela maresia, guardava na pele uma languidez dourada e, nas veias, o vigor salgado do mar.

O vento, mensageiro de memórias antigas, corria os becos e punha as janelas a falar: umas, em sussurros de receio; outras, em murmúrios de prece.
Era a véspera de Todos os Santos.
E como vai acontecendo com o andar dos tempos, a aldeia já não sabia bem o que celebrava.

Nas vitrines do centro comercial da vila vizinha, abóboras ocas e bruxas sinuosas entretinham um diálogo mudo de piscares luminosos, atraindo tanto os olhos curiosos das crianças como o sorriso contido de adultos.
O riso metálico das promoções fundia-se com o alvoroço infantil, enquanto as mães, rendidas ao cansaço e à pressão da quadra, se deixavam levar entre prateleiras que sussurravam promessas de alegria instantânea.
Uma delas, Dona Amélia, segurava a mão do filho, o Tiago, de sete anos.
O menino queria uma máscara.
Ela hesitou.
Sabia que o dinheiro mal dava para o pão e o gás. Mas, ao olhar em volta, viu as outras mães comprando máscaras para os filhos. Sob o peso invisível daquela comparação, soltou um sorriso resignado e disse:
“Vá lá, Tiago, escolhe uma…”

A criança agarrou uma caveira luminosa.
E Amélia pensou, sem o dizer:

“Será que é isto que o mundo quer que eu ensine ao meu filho? Que o riso vem do medo e a alegria do disfarce?”

No regresso, o vento pareceu escutar-lhe o pensamento e murmurou-lhe ao ouvido:

“Nem tudo o que brilha é luz, minha filha. Há brilhos que apenas escondem o escuro.”

À noite (véspera de Todos os Santos), a aldeia parecia ferida ao encher-se de sombras. As crianças, enfeitadas de demónios e fantasmas, percorriam as travessas com risos que não pertenciam à infância, e batiam às portas com vozes de ameaça disfarçada:                                                                                                                                                                  “Doçura ou travessura!”

E o medo, vestido de brincadeira, passeava-se livremente.
Os risos pareciam leves, mas deixavam no ar um sabor vazio, como o de um pão sem miolo, e uma frieza reminiscente das tardes escuras de novembro.

Sentia-se uma tristeza nas casas meio adormecidas na sua caiada solidão, a contemplar as faces de abóbora que, em papel, consumiam de uma vez só o seu fogo efémero.
As velhas oliveiras da encosta, que guardavam na seiva o sal das lágrimas e da oração, estremeciam e uma delas, muito velha, sussurrou à lua:

“Tantas gerações de mãos que rezaram sob mim… e agora vejo crianças mascaradas de fantasmas, brincando com o que nunca deviam temer.”

A Lua, de rosto magro e saudoso, perguntava-se se os homens ainda se lembravam que ela também iluminava os caminhos dos anjos, mas respondeu:

“Não é o medo o problema, minha amiga, é o esquecimento. O homem esqueceu que a morte é caminho, não destino.”

Mas o tempo, que tudo transforma, caminhou sobre a noite, e quando os galos cantaram, na manhã seguinte, o sino da igreja ergueu-se sobre a aldeia como um coração que desperta.

Era Dia de Todos os Santos.
E as mesmas ruas que na véspera ecoavam gargalhadas, agora acolhiam passos lentos e vozes baixas.
As pessoas subiam ao cemitério com flores e velas, como quem sobe um monte de esperança. E as campas, antes frias, sorriram sob o toque das mãos humanas que as   vestiam de flores e velas. Ali até as almas dos finados pareciam espreitar entre as pétalas e o incenso, e as campas, que tantas vezes guardaram lágrimas, murmuraram uma melodia suave:

“Não temais a noite, que ela é apenas o véu da aurora.”

Tiago, o menino da máscara, foi com a mãe ao cemitério.
Levava na mão um raminho de crisântemos e no bolso, ainda o resto do doce da noite anterior.
Ao chegar junto da campa do avô, Dona Amélia ajoelhou-se.
Acendeu uma vela.
O lume tremia como uma oração viva.

Tiago perguntou:
“Mãe, o avô ouve-nos?”
E ela respondeu, num murmúrio que parecia também falar consigo própria:
“O avô vive noutro tempo, filho. Num tempo que não passa.”

O menino ficou a olhar o lume e, de repente, retirou do bolso o doce que tinha guardado e colocou-o junto da vela.
“É para o avô.”
E sorriu já com um sorriso leve, sem medo.

A chama comovida dançou mais alta, e o vento soprou suavemente.
Parecia aprovar o gesto.

No dia de Todos os Santos, as crianças da aldeia, já sem máscaras, saíram outra vez às ruas, mas agora, com os bolsos vazios e o coração cheio, dizendo:
Pão por Deus!”

E cada porta que se abria era uma bênção partilhada, não um negócio programado.
Quem dava, dava por amor, pelas almas dos seus.
Quem recebia, levava o pão como símbolo de amor e memória.

A aldeia parecia renascer nesse gesto simples: um gesto que a indústria não podia vender, porque não cabia em embalagem.

À tardinha, o sol desceu como um sacerdote sobre o vale e o velho padre da paróquia, sentado ao pé do cruzeiro, falava para quem quisesse ouvir:

“As sombras só assustam quem esquece o sol.
O Halloween celebra o medo da morte.
O Dia de Todos os Santos celebra a vida que não morre.
Um vende máscaras, o outro revela rostos.
Um alimenta o vazio, o outro sacia a alma.”

E acrescentou, olhando para as estrelas:

“Aqueles que brincam com a morte como se fosse um brinquedo, acabam por esquecer o valor da vida.
Mas quem contempla a morte à luz de Deus, encontra nela a porta da eternidade e vive sem medos.”

Naquela noite, Dona Amélia adormeceu em paz.
Sonhou com o avô de Tiago, sentado sob uma grande oliveira.
Ele sorria e dizia:

“Ensina o menino a escolher a luz, mesmo quando o mundo vende trevas em promoção.”

E quando o sino tocou de novo ao amanhecer, o vento levou consigo a voz do tempo:

“Entre a Noite das Sombras e o Dia da Luz, o homem escolhe o que servir: o medo ou o amor.”

Na aldeia de São Martinho das Fontes, nunca mais o Halloween teve o mesmo sabor.

As crianças continuaram a brincar, mas agora sabiam que o medo só é senhor enquanto esquecemos o Amor.

E quando chegava o “Pão por Deus”, cada pedaço de pão era uma semente de eternidade partilhada entre o céu e a terra, entre os vivos e os que já vivem noutra forma de luz.

 

António da Cunha Duarte Justo

© Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10399

 

Nota do Autor

A sociedade veste o medo de festa e chama-lhe cultura.
Mas há uma diferença profunda entre celebrar a morte e celebrar os mortos.
A primeira afasta-nos do sentido; a segunda reconcilia-nos com o mistério.
O Halloween (noite de 31 de Outubro) alimenta o comércio das sombras; o Dia de Todos os Santos (1 de Novembro) alimenta a memória da luz. . O Advento do Estranho e a Memória do Sagrado.

Num tempo em que se poderia celebrar a autenticidade dos costumes locais, assiste-se à estranha ascensão do Halloween. Esta festividade importada, com o seu fascínio pelo macabro e pelo efémero, vai gradualmente ofuscando o significado profundo de uma tradição enraizada: a comemoração do Dia de Todos os Santos.

Esta, independentemente da base que a motiva, é um momento de recolhimento e de raiz. Materializa-se em reuniões familiares e nas visitas serenas aos cemitérios, gestos simples que têm por fim primordial recordar os que partiram e, assim, honrar a herança que nos define. É uma celebração que valoriza a memória afetiva e a continuidade cultural.

No entanto, o significado cristão deste feriado vê-se agora ameaçado por uma cortina de névoa e fantasia. Enquanto a fé cristã celebra a vida eterna e a santidade, que é um olhar de esperança voltado para a transcendência, o Halloween oferece um culto ao medo e a uma certa fealdade vazia. Para aqueles que anseiam por esta estética do tenebroso e do desprovido de sentido, ele representa a celebração de um feriado profundamente deprimente, um espetáculo vazio que esquece a serenidade da eternidade em favor do susto passageiro.

Ao longo do tempo, tradições e costumes diversos sobrepõem-se. A Igreja Católica, num processo de inculturação, adaptou vários costumes bárbaros à nova cultura vigente, criando rituais substitutos. Um exemplo notável é a substituição dos rituais pagãos destinados a afugentar o medo da morte pela celebração do Dia de Todos os Santos. Atualmente, contudo, são os interesses comerciais que mais proveito tiram destas tradições, ao promoverem e acentuarem os antigos ritos, como se vê na popularização do Halloween.

Talvez o desafio de cada um de nós hoje seja devolver às nossas crianças o sentido do sagrado, para que saibam que, na eternidade, a morte não é um fim, é apenas um novo começo de amor.

António da Cunha Duarte Justo

 

 

 

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A HISTÓRIA DAS TRÊS MORADAS

Uma Narrativa sobre a Unidade Trinitária do Ser

Havia um tempo antes do tempo, quando tudo ainda era pura possibilidade suspensa sem forma, vazio em silêncio.

Então o movimento nasceu. Não um, mas três, unidos numa dança eterna e desta dança surgiu tudo o que é: o visível e o invisível, a ordem e o caos, o peso e a leveza.

1. A Grande Respiração

No princípio da criação, o Universo começou por respirar. Nessa respiração criou três moradas como expressão de uma só morada.

A primeira morada é a Casa do Ar, com os seus sete véus transparentes. A Troposfera, mais próxima, é como a pele que sente o calor e o frio, onde as nuvens são pensamentos e as tempestades, emoções intensas. Acima, a Estratosfera guarda o escudo protetor do ozónio, assim como a consciência protege o ser das radiações destrutivas do caos exterior que nos rodeia. Mais alto ainda, a Mesosfera, a Termosfera e aí, cada camada assemelha-se a um degrau na escada entre o tangível e o infinito, entre o peso e a leveza absoluta.

A segunda morada é a Casa da Terra, com os seus três reinos concêntricos. A Crosta é a face visível, onde pisamos e plantamos, onde construímos e deixamos pegadas numa superfície de encontros e despedidas. O Manto, logo abaixo, pulsa em movimentos lentos e poderosos, correntes invisíveis que movem continentes ao longo de eras e que lembram as correntes profundas da psique que movem civilizações. E no centro secreto, situa-se o Núcleo flamejante, coração de ferro e níquel que gera o campo magnético, que é a bússola invisível que orienta tudo o que vive sobre a superfície.

A terceira morada é a Casa do Homem, reflexo e súmula da casa do Ar e da Casa da Terra. A Cabeça contempla os céus e sonha com estrelas; o Tronco abriga os órgãos vitais, câmara central onde bate o coração e os pulmões respiram o ar da primeira morada; os Membros tocam a terra, caminham, trabalham, abraçam, fazendo assim a ponte entre o espírito que ascende e a matéria que sustenta.

Mas o mistério não termina aí.

2. O Segredo Trinitário

Havia um velho sábio que vivia numa aldeia entre montanhas. Chamavam-lhe Elias das Três Fontes, pois ele costumava dizer que dentro de cada pessoa brotavam três nascentes que eram uma só água.

Um dia, uma jovem chamada Miriam veio ter com ele e perguntou-lhe:

“Mestre, sinto-me dividida. O meu corpo quer uma coisa, a minha mente outra, e algo mais profundo em mim anseia por um caminho que nem sei nomear. Sou três pessoas em conflito ou uma só em confusão?”

O velho sorriu e apontou o seu cajado para o céu:

“Vês a atmosfera? Parece vazia, mas sustenta sete camadas distintas, cada uma com a sua função. A camada mais baixa toca a terra e carrega chuva; a mais alta toca o espaço e brilha com auroras. São sete, mas é uma só atmosfera. Agora olha para baixo.”

Bateu no chão com o seu cajado:

“A terra parece sólida, mas dentro dela há três mundos: a casca onde pisamos, o manto que ferve devagar, e o núcleo de fogo. Três, mas uma só Terra. E tu, Miriam, és feita à mesma imagem.”

Miriam sentou-se a seus pés e implorou:

“Explique-me, por favor.”

3. A Tríade Humana

O Corpo”, começou Elias, “é como a crosta terrestre e a troposfera juntas. É a tua parte visível, tangível, o templo onde habitas. Ele cresce da terra, come da terra, volta à terra. Mas sem as outras dimensões, seria apenas matéria inerte, como uma pedra. O corpo é a tua palavra feita carne, a tua presença no mundo visível.”

Elias respirou fundo, levou a mão ao peito e continuou:

A Alma é como o manto da Terra e as camadas intermediárias do ar. É a sede do teu “eu” único e irrepetível, a tua personalidade, memórias, emoções, vontade e razão. É onde reside a imagem de Deus em ti: a capacidade de amar, de escolher, de criar. A alma anima o corpo, como o manto aquece a crosta, como o vento move as nuvens. Aristóteles dizia bem: a alma é a forma do corpo, aquilo que transforma matéria em vida. Sem a alma, o corpo seria um robot, mas sem o corpo, a alma não teria ferramenta para apalpar o mundo. E o luzeiro da Idade Média, Tomás de Aquino completava ao dizer que a alma é o que confere ao corpo a sua existência e as suas funções vitais, mas, por ser espiritual, possui a capacidade de subsistir por si só após a morte do corpo, o que fundamenta a sua imortalidade.”

Elias olhou para o céu, onde brilhavam as primeiras estrelas.

O Espírito” disse ele, “é como o núcleo incandescente da Terra e a ionosfera que toca o cosmos. É a tua centelha divina, o fôlego que Deus soprou em Adão, a parte de ti que reconhece o Infinito porque vem do Infinito. O espírito não é “teu” da mesma forma que a alma é, ele é a ponte, a conexão, o ponto de contato entre a tua finitude e o Mistério eterno. É por isso que podes orar, contemplar, transcender-te. Ele é, como na narrativa sagrada, o amor que nasce entre Pai e Filho.”

Miriam franziu a testa.

“Mas então somos três seres separados dentro de um só?”

4. A Dança Trinitária

“Não!” gritou o sábio com voz animada. “Essa é a armadilha do pensamento dualista, que só vê opostos: ou é um, ou são muitos. Mas a realidade é trinitária, e o três não é divisão, mas comunidade!”

Para se tornar mais compreensível, Elias desenhou três círculos entrelaçados na areia.

“Olha aqui: o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas, mas um só Deus. Não três deuses, não um deus com três máscaras, mas três em relação perfeita. E nós, feitos à imagem dessa Trindade, somos também relação. O teu corpo não existe sem a tua alma para animá-lo; a tua alma não se expressa sem corpo; e o teu espírito seria palavra não pronunciada se não tivesse corpo e alma como instrumento.”

Então Elias apagou as linhas divisórias entre os círculos com a mão.

“É como a água, o gelo e o vapor. Três estados, numa só substância. É como a raiz, o tronco e os ramos. Três partes, mas uma só árvore. Tu és uma unidade tripartida, ou melhor, uma trindade unificada.”

Miriam perguntou baixinho:

“E a atmosfera e a Terra são elas as mestras?”

Elias assentiu.

“Sim, são professores sossegados!

A atmosfera não é só ar parado, formada de camadas de ar em relação constante: o calor sobe da superfície, o frio desce do espaço, e no encontro nascem os ventos, as chuvas, a vida. A Terra não é pedra morta, ela é núcleo em brasa que alimenta o manto que move a crosta que sustenta vida. Tudo é relação, Miriam, tudo é movimento trinitário.”

5. O Drama da separação

“Então qual é a razão”, perguntou Miriam com a voz trémula, “por que me sinto dividida?”

O rosto do sábio escureceu.

“Porque a humanidade esqueceu a dança. Vivemos como se fôssemos apenas corpo, buscamos só prazer material, acumulamos coisas, idolatramos a aparência. Ou vivemos como se fôssemos só alma, presos na mente, nas emoções neuróticas, nos jogos de poder do ego. Ou fugimos para um espiritualismo desencarnado, desprezando o corpo e o mundo como se fossem meras prisões.”

Elias levantou-se, abriu os braços e falou com voz séria e calorosa:

“A visão dualista divide tudo em bem versus mal, espírito contra a matéria, céu contra a terra. É a tentação maniqueísta que simplifica o mundo em preto e branco. E dela nasce a política maquiavélica: “os fins justificam os meios”, porque se a realidade é só dois lados em guerra, vale tudo para “o meu lado” vencer.”

Miriam erguendo os olhos.

“E qual é a alternativa?”, perguntou ela.

Elias inclinou-se na sua direção e sussurrou:

A visão trinitária! Reconhecer que bem e mal não são forças iguais em combate, mas que o bem é trinitário; é Verdade, Beleza e Bondade em dança, enquanto o mal é privação, ruptura da relação. A política verdadeira não é dominar o adversário, mas buscar o bem comum através do diálogo tripartido: eu, tu e o Bem que nos transcende e que nos seria dado procurar juntos.”

6. A Jornada Interior

“Como posso então viver integralmente?” – perguntou Miriam.

O velho Elias voltou a sorrir, desta vez com gentileza e calma.

“Procura aprender com a criação. A atmosfera cuida de cada camada, mas todas servem ao todo: proteger a vida. A Terra mantém cada reino em sua função, mas todos colaboram: a crosta dá suporte, o manto recicla e o núcleo fornece energia.”

Então falou enfaticamente:

“Cuida do teu corpo como quem cuida da crosta terrestre: com respeito, sem idolatria nem desprezo. Ele é templo, não ídolo nem prisão. Come, dorme, movimenta-te, celebra a matéria como dom de Deus. O mestre da galileia também amava a vida e porque ele convivia com publicanos e pecadores, a ponto dos líderes religiosos da época, O acusaram de ser “beberrão” e “comilão”.

Elias continuou, com voz calma e clara:

“Cultiva a tua alma como quem cultiva o manto terrestre: educa a mente, refina as emoções, fortalece a vontade. Lê, pensa, cria, ama, escolhe. A alma é o jardim onde floresce a tua humanidade única. Mas lembra-te: o jardim precisa de terra (corpo) e chuva do céu (espírito).”

Olhou intensivamente para Miriam e colocou a mão na cabeça dela.

“Abre-te ao Espírito como a crosta se abre para o calor do núcleo, como a troposfera se abre à luz do sol.  Reza. Contempla. Silencia.

Reconhece que não és origem de ti mesma, mas resposta a um Chamamento divino.”

Os olhos de Miriam brilharam.

“E quando as três dimensões dançam juntas?”, perguntou ela.

Elias sorriu e a sua voz soou como uma canção distante:

“Então és completamente humana!

Quando a tua cabeça vê o mistério, o teu coração bate ao ritmo do amor e as tuas mãos se estendem-se em serviço, então não és mais um indivíduo isolado, mas pessoa em relação: em paz contigo mesma, em comunidade com os outros, em diálogo com Deus, e em harmonia com a criação.”

7.  O Canto da Unidade

Naquela noite, Miriam compreendeu. Deitou-se no chão e sentiu a crosta terrestre por baixo de si, o manto invisivelmente pulsante por baixo dela e bem no fundo, o núcleo distante e ardente que alimentava o campo magnético que a protegia dos ventos solares. Respirou fundo e sentiu o ar da troposfera a fluir para os seus pulmões, subindo pelos brônquios, enchendo o seu sangue de oxigénio, enquanto bem acima a estratosfera a protegia da luz ultravioleta, e ainda mais alto a ionosfera dançava com as partículas do espaço.

E dentro de si ela sentia: o seu corpo cansado, mas vivo, enraizado na terra, a sua alma finalmente em paz, já não dividida, mas unida: mente clara, coração aberto, vontade direcionada e o seu espírito, aquela centelha terna que suspirava suavemente o “Abba” para o mistério que ela carregava.

Ela não era uma nem era três. Ela era uma em três e três em uma, como a terra, como o ar, como a própria Trindade. E, nesse momento, ela compreendeu o antigo ditado bíblico:

“Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança.”

Não “à minha imagem”, pois isso seria unidade sem relação, mas “à nossa”: a imagem trinitária, comunitária, tecida pelas relações. Pois a pessoa não é um átomo isolado, um ego, mas um nó numa teia infinita de amor.

O Chamamento

Miriam voltou à aldeia transformada. Não tinha respostas mágicas para todas as questões da vida, no entanto, transportava consigo uma chave, uma hermenêutica do coração: ver tudo – natureza, sociedade e si mesma – não com olhos dualistas (nós versus eles, corpo versus alma), mas com olhos trinitários.

Miriam ensinou às crianças:

“Vós sois como a Terra: tendes uma superfície que todos veem que é o vosso corpo, um reino interior que ferve de vida que é a vossa alma e um fogo no centro que o liga ao mistério e que é o vosso espírito. Não desprezem nenhuma destas camadas e não adorem nenhuma sozinha! Quando reconhecerem isto vivereis em paz convosco mesmos e com os outros.”

Aos adultos envolvidos nas discussões políticas, ela disse:

“Deixem de acreditar que a solução é destruir o inimigo, como fazem os adeptos da visão maniqueísta.

A verdade não surge quando dois lutam entre si, mas quando três falam em conjunto: eu, tu e a verdade que transcende ambos, na relação eu-tu-nós.

E aos místicos arrebatados, ela disse:

“Deus não criou a matéria para a odiarmos. O Verbo fez-se carne! A salvação não consiste em escapar do corpo, mas em transfigurá-lo como Cristo, o Ressuscitado: não um espírito sem corpo, mas um corpo glorificado, permeado de luz.”

E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam plantou a semente da visão integral que tem o melhor exemplo no protótipo Jesus Cristo: E assim, de casa em casa, de coração em coração, Miriam lançou as sementes de uma visão integral do ser:

  • Atmosfera, Terra e humanidade: três mestres de uma só lição.
  • Corpo, alma e espírito: três dimensões de um único ser.
  • Pai, Filho e Espírito Santo: três pessoas de um só amor.

E aqueles que compreenderam a dança trinitária começaram a viver de forma diferente: já não como máquinas (meros corpos), nem como fantasmas (só alma ou mente), nem como egos insuflados (mera necessidade), mas como pessoas inteiras, como microcosmos que refletem o Macrocosmo, templos vivos nos quais a matéria é abençoada, a consciência é iluminada e o Espírito sopra livremente.

Pois no princípio era a Relação, o Verbo, e a relação pessoal era com Deus, e a relação era Deus. Tudo o que existe, das galáxias aos átomos, das montanhas aos pensamentos, é o eco desta dança eterna: Três em Um e Um em Três. Uma unidade que não anula a diversidade e uma diversidade que não destrói a unidade.

Um segredo que não se revela em fórmulas, mas na vida vivida!

Não há respostas prontas para as grandes questões. A única forma de as encontrar é viver a vida plenamente; pois a sabedoria, o autoconhecimento, nasce da ação e da contemplação silenciosa do próprio caminho. O divino, a origem e o propósito, a essência da existência, revela-se na experiência humana concreta: no amor, no sofrimento, na superação; isto é, na forma como vivemos e como nos relacionamos com o mundo.

Reflexão Final

Caro/a Leitor/a,

esta narrativa tenta tecer a realidade de que fazemos parte e que simultaneamente nos questiona. As camadas da atmosfera e da geosfera são aqui apresentadas como análogas às dimensões humanas numa história que procura transcender o reducionismo dualista e celebrar a complexidade trinitária da realidade.

A estrutura da narrativa reflecte o seu conteúdo: começa com a cosmologia (atmosfera e terra), continua com a antropologia (corpo, alma, espírito) e culmina na teologia (a imagem trinitária), regressando finalmente e repetidamente, à existência, à questão: Como devemos viver tudo isto?

Ao criar esta narrativa, que entende a realidade como uma metáfora para algo que a transcende, foi importante para mim não confundir visões  do mundo nem o método de conhecimento para acesso à realidade.

A integração de uma visão monista da realidade, em que tudo emerge de uma única fonte, com um método dualista-analítico que distingue sujeito e objecto na investigação encontra a sua síntese numa perspectiva relacional-pessoal. Isto permite abraçar a concepção trinitária da realidade divina (como a “fórmula” de toda a existência e de toda a realidade): uma unidade essencial expressa numa multiplicidade de pessoas em relação mútua, transcendendo assim tanto o monismo rígido como o dualismo irreconciliável.

Que esta narrativa sirva como ferramenta de autorreflexão e como forma de transmitir uma visão integral do ser e da maneira de estaa, sem perder a essência da relação, o jogo vivo do pessoal. Que seja uma semente que brote em muitos corações.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

©  Pegadas do Tempo

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