NA FÁBRICA DAS DÍVIDAS E DA CULTURA CORPORATIVA

O Estado Purgatório Frisador de uma Igualdade que promete o Paraíso

Por António Justo
Passamos de uma economia, em que trabalho e produto se regulavam através da troca com dinheiro (capital), para a nova economia, a economia financeira do endividamento. O sociólogo e filósofo Maurizio Lazzarato, autor de “La fabrique de l’homme endetté”, analisa com perícia a crise do endividamento actual. A essência do capitalismo liberal é viver da dívida individual e estatal e para optimizar o seu lucro serve-se dos cortes na Segurança Social terceirizando os custos sociais apenas no pequeno empresário, no trabalhador e no contribuinte.

Para Lazzarato o “homo debitor”passa a ser a nova criação do homo economicus. “Passa a não haver direito a uma habitação, mas a um crédito para habitação (hipoteca), já não há direito à educação, mas – especialmente no modelo anglo-saxão – pede-se dinheiro emprestado para financiar os estudos.” Assim o estudante, no final do curso, com o futuro hipotecado passa a não ter problemas de divagações metafísicas ou ideias que o poderiam torna inseguro num caminho já predeterminado.

De facto, esta é a ideia da nova economia da Califórnia propagada por representantes do “Silicon Valley”. País moderno ou pessoa cliente procura viver o presente, num presente alegre mas fiado, à custa do futuro.

A ideologia do “Vale do Silício” serve-se do conceito de progresso na sequência da “racionalidade secular cristã” e da fé no além. Pretende criar uma maneira de ser e de estar baseada no capital com a consequente relação tipo credor-devedor… Substitui a culpa pela dívida, o paraíso pelo proveito e no caso de surgirem complicações cai-se no inferno da falência. O Estado passa a ser o Purgatório, aquele lugar de purgação que pretende acabar com as diferenças, colocando todos (trabalhadores, desempregados, produtores e consumidores) na plataforma de devedores ou dependentes. Os Governos perdem o brilho da soberania e a democracia é ensombrada pelas asas negras de diferentes demónios interessados apenas na radiografia da alma do credor através do ecrã do cartão de crédito.

O Adão moderno, anda sempre a caminho, com a dívida à frente; esta é companheira e justifica algum benefício já gozado no crédito do passado e nas vantagens de um viver presente que um novo crédito proporciona.

Todos se inculpam no capital onde buscam o crédito. Os riscos do novo “crente” são de responsabilidade limitada ao indivíduo cliente. O antigo pecado original que deu origem à economia social passa assim a uma economia das dívidas. A perversidade da nova crença económica está no facto de se transformar dinheiro em dívidas e dívidas em posse. O credor anónimo tem um poder mágico sobre o devedor. A dívida tem um efeito pedagógico e domesticador. Passamos a uma situação de leasing onde tudo é arrendado.

A economia do endividamento já não honra o trabalho nem considera o trabalhador; deixa-se a relação produtor-produto, para se passar à relação credor-devedor. Ao mesmo tempo tenho a impressão de nos encontrarmos numa época muito bela e rica mas que terá de estar atenta ao risco de reduzir a pessoa a indivíduo cliente e a sociedade a um grande mercado de meros indivíduos de personalidade tábula rasa.

O Estado Grego é um exemplo da nova matriz em via no mundo ocidental. Todos os Estados Europeus eternizam a dívida, de facto impagável, mas criam uma forma de viver aparentemente mais leve e livre, sem perguntar – à custa do quê e de quem? A racionalidade de cima (conhecimento tecnocientífico) ordena a irracionalidade de baixo (o proletariado). Alia-se o capitalismo cultural ao marxismo cultural. Viver passa a significar mais ter que ser.

O livro “A fábrica do homem endividado” de Maurizio Lazzarato questiona inteligentemente o sistema económico-financeiro actual mas não deixa propostas para nos desfazermos das dívidas. Para Lazzarato a melhor maneira de o devedor se livrar do sistema seria criar uma nova inocência segundo a qual os Estados não pagariam a dívida nem tomariam em conta a moral.

O capitalismo liberal e o marxismo cultural servem-se do Estado com Purgatório frisador da igualdade que promete o paraíso das boas intenções mas esconde o inferno delas cheio.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
In Pegadas do Tempo www.antónio-justo.eu

O VALE DO SILÍCIO E A ESCOLA DE SAGRES – MITOS DA SUSTENTABILIDADE!

A nova Economia da Rede Digital e o correspondente Pensar comercial

Por António Justo
Cada civilização e cada época precisam dos seus mitos que lhe possibilitam a sustentabilidade de futuro. Em Torno do infante D. Henrique congregaram-se os mestres das artes e das ciências ligadas à navegação; a concentração dos sábios da época num determinado lugar possibilitou o mito de Sagres que se tornou na expressão motivadora do começo de uma nova era mundial.

Também agora, no seguimento dos líderes da Universidade de Stanford ligados ao Venture Capital (1), se acentua o mito do Vale do Silício (Silicon Valley Califórnia) que parece inaugurar, como Sagres, uma nova era. Vale do Silício é a capital do mundo da indústria de TI (tecnologia da informação) e da alta tecnologia. Aí se juntam ideias arriscadas com o capital de risco (2).

O génio ocidental sempre soube juntar o saber (a verdade) à dúvida que se revela como a incrementadora de desenvolvimento e futuro (a característica da civilização ocidental). Esta mensagem original encontra-se já na alegoria bíblica de “Adão e Eva” onde se junta o saber divino à dúvida humana na pessoa de Eva que inicia assim o desenvolvimento humano e a cultura civilizacional.

Numa dinâmica de tentativa e erro o ser humano tem encontrado maneira de dar forma ao seu desenvolvimento. Neste sentido tal como na relação do dia-noite se expressam, tal como na Bíblia, duas dinâmicas de pensamento complementares: o pensar optimista e o pensar pessimista.

Em relação ao novo mito da economia virtual, o publicista alemão Christoph Keese, que creio nas pegadas do Adão e Eva dos nossos dias, faz uma análise do Silicon Valley no sentido de se fazer uma ideia do que se pode esperar do vale mais poderoso do mundo. Keese, no seu livro “Silicon Valley”, movimenta-se entre medo e admiração na análise que faz da Economia de Rede Digital cada vez mais orientada para o mercado e cada vez mais fomentadora de uma nova maneira de pensar: o pensar comercial (3).

A Ideologia eclética do Risco

O empreendimento digital possibilita novas conquistas da realidade e do globo, transformando a práxis das antigas empresas em movimentos empresariais. Der Spiegel n°10,2015, refere que a capitalização bolsista das 30 empresas mais valiosas do mercado Silicon-Valley já é mais do dobro da capitalização das 30 empresas de Dax. Grande parte das empresas mundiais actuais nasceu no Vale do Silício (4). Por aqui se nota que o futuro irá, em parte ou em grande parte, no sentido da filosofia das empresas “Vale do Silício” que têm como credo a inovação cientes de que “quem não arrisca não petisca”.

A mesma revista faz referência aos quatro líderes do pensamento da elite tecnológica Vale do Silício: Ray Kurzweil chefe de Google, intitulado de “o profeta”, prevê que os computadores em 2029 conseguirão fazer tudo o que o Homem faz hoje mas ainda melhor.

Para Sebastian Thurn, o “engenheiro alemão”, o optimista é quem muda o mundo, não o pessimista. De facto o optimismo baseia-se na esperança e na realização de um mundo melhor. O optimismo assemelha-se à água que não destrói mas apenas se desvia deixando com o tempo as marcas da sua presença. Trata-se de um optimismo humilde por não ter a certeza de saber para onde vai nem saber onde termina a viagem.

Joe Gebbia (o conquistador), criador de Airbnb, pensou revolucionar o turismo e fazer concorrência a actores financeiros internacionais que manobram a indústria hoteleira. Gebbia possibilita, como monopolista, uma certa democratização da economia. Estão presentes em 190 países ou seja em 34.000 cidades. Por um lado os novos monopolistas cibernéticos fomentam mais transparência concorrendo com os chefes locais a nível de economia e de política, por outro lado despersonalizam o indivíduo tornando-o objecto transparente.

Peter Thiel, “o ideólogo”, defende o princípio liberalista: Prosperidade e felicidade querem-se para todos através de tanta autonomia quanta possível e de tão pouco estado quanto necessário. Para o alemão, Peter Thiel, o mundo dos Bits conquistou o mundo por ser isento de regras retardantes, ao contrário do mundo dos átomos, como medicina e transportes, que devido à regulamentação estatal não se desenvolve tanto. Thiel defende os monopólios e quer a construção de cidades navegantes em águas internacionais (Já serão de prever as contendas que surgirão na luta pela ocupação das águas marítimas internacionais, isto certamente na lógica da Conferência de Berlim de 1815!). Thiel justifica os monopólios: “Monopólios criativos possibilitam novos produtos, dos quais todos têm proveito”.

Para os cientistas do Google a política, com as suas regulamentações, desacelera o progresso porque “tudo acontece globalmente mas as leis são locais. Isto já não se enquadra no nosso tempo”.

O novo tipo de empresas tenta reunir em si a economia, o pensar esotérico, o socialismo cultural e o capitalismo liberal. Os impérios digitais parecem interessados apenas na prosperidade e na satisfação individual; a manutenção da multiplicidade dos biótopos culturais não lhes interessa. Um dos preços a pagar começa pela perda da esfera privada e pela renúncia à protecção de dados, como todos já sentimos no Google, Facebook, Yahoo, etc. O preço da própria satisfação é desnudarmo-nos.

Da Era dos Coches e dos Cavalos para a Era dos Automóveis e da Internet

O movimento de autonomia individual vê, na Elite tecnológica, a possibilidade da sua maior extensão; por outro lado o movimento tecnológico globalista e a economia virtual em via esvaziam as autonomias regionais, porque tentam ordenar a sociedade numa perspectiva de cima para baixo ao contrário de uma natureza que se desenvolvia de baixo para cima. A realidade global determina contínuos desafios. A política e a pastoral dos temos da era da velocidade do coche puxado a cavalo terão de ser aferidas à era dos aviões e dos computadores. Num mundo da eficiência para quem quer ser eficiente, a estratégia de Gebbia é “pensar como a pessoa que vai utilizar a tua ideia”.

A “ideologia califórnica” pretende a felicidade e a autodeterminação do indivíduo. Vale do Silício prossegue essa ideologia no sentido de “tornar o mundo um melhor lugar”.

As boas intenções do Vale do Silício esbarram com a dúvida, ao serem confrontadas com a verdade dos Goldman Sachs, Stanley, Lehman, etc, instituições sem alma, onde o proveito e a ganância são lei.

Para se não ser prisioneiro do tempo é preciso compreender o tempo. De facto, o que provocou os Descobrimentos foi a dedicação ao saber científico e tecnológico da altura, o saber e a vontade concentrados em Sagres e tudo iluminado pela fé numa missão ambiciosa; esta fé tinha porém uma componente religiosa de humanismo global bem determinado e arreigado no coração de um povo inteiro que afirmava ao mesmo tempo o valor da pessoa e o valor da comunidade.

No tempo dos coches, quando apareceu o automóvel, os pessimistas condenavam os carros por assustarem os cavalos, hoje condenam a internet por prender as pessoas. Não há que parar o tempo nem o desenvolvimento; a função do Homem será acompanhá-los e dar-lhes sentido à imagem do que aconteceu em torno de Sagres.

Se observamos o desenvolvimento da sociedade e da História verificamos uma constante mudança a nível exterior; uma mudança que vem servindo um satus quo sustentável pela ilusão da mudança que, de facto, não muda a essência das relações sociais e humanas porque a mudança adquirida é provocada pelos detentores do poder e seus herdeiros que reduzem a mudança à mera adaptação às circunstâncias e às necessidades do tempo. A política fracassada afirma-se no mesmo erro aceite que lhe dá continuidade. O Homem muda para não se mudar.
A reflexão continua no próximo artigo sob o título: “OS RISCOS DO CRENTE AD HOC COM UMA IDENTIDADE INTERNET”

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
In Pegadas do Tempo www.antonio-justo.eu

1. Venture Capital = capital de risco; em 2014, os investidores aplicaram no Vale do Silício, em cerca de 1.700 negócios, um total de 26 bilhões de dólares, o que corresponde a 30% do capital de risco mundial, http://blog.wiwo.de/look-at-it/2015/01/14/venture-capital-2014-silicon-valley-26-milliarden-dollar-deutschland-3-milliarden-dollar/
2. No “Silicon Valley” trabalham as pessoas mais qualificadas do mundo, entre elas 20.000 alemães (cf. http://www.capital.de/dasmagazin/silicon-valley-nicht-nur-was-fuer-milliardaere-4457.html).
3. Com o tempo nas escolas as aulas de programação farão parte da aprendizagem regular tal como ler, escrever e fazer contas.
4. No Vale do Silicon nasceram, entre outras, as empresas mundiais: Apple Inc., Altera, Google, Facebook, NVIDIA Corporation, Electronic Arts, Symantec, Advanced Micro Devices (AMD), eBay, Maxtor, Yahoo!, Hewlett-Packard (HP), Intel, Foursys, Microsoft etc.

CULTURA DA MUDANÇA ENTRE SONHO E LIBERDADE

A alta tecnologia promete sonho mas consome liberdade – Tudo e todos têm de mudar

Por António Justo
Encontramo-nos num processo de desenvolvimento em que o pensar linear será substituído pelo global e em que consequentemente as visões da realidade a-perspectiva substituirão paulatinamente as actuais visões e equacionamentos lineares da realidade. Passaremos do tenho razão para o temos razão, atendendo à consciencialização da complementaridade dos diferentes biótopos da natureza, da complementaridade dos diferentes biótopos culturais e da complementaridade dos diferentes sistemas de pensamento e à fragilidade da formação da opinião regulada por monopólios globais. A estratégia que se encontra por trás desta mundivisão aproxima também a linguagem e metáforas de mitos e religiões às expressões e concepções científicas.

Iphone, automóveis com propulsão própria, drones usados no comércio como serviço de entrega, robôs inteligentes, etc. parecem substituir cada vez mais o Homem reduzindo-o ao papel de espectador. A alta tecnologia promete o sonho à custa da liberdade. O exercício do pensamento passa para os computadores e a força revolucionária parece ter passado para a técnica e o trabalho manual é cada vez mais substituído pela produção mecânica. Tudo isto está a provocar uma mudança radical das nossas impostações éticas, da nossa maneira de pensar e agir. É o que se observa e sente hoje que nos encontramos em pleno epicentro da revolução Vale do Cilício: uma revolução que quer tornar possível a felicidade individual realizada através dos padrões de grandes monopólios anónimos à margem de democracias, das culturas e das religiões. Aristóteles diria hoje em termos portugueses: ”nem tanto ao mar nem tanto à terra”.

Aos industriais e aos barões do petróleo sucederam-se os Bancos e os Gestores de fundos Hedge. Actualmente encontra-se em via de realização a era da revolução digital – com os génios dos computadores e das altas tecnologias.

Antes os líderes contentavam-se com o poder da riqueza depois passou-se ao poder do dinheiro. Hoje os líderes do mundo (protótipo Silicon Valley na Califórnia) querem mais; aspiram a determinar não só o que consumimos mas também a maneira como consumismos e como vivemos juntando na mesma mão (ou organização) o ideário, a economia, a ideologia e a produção numa Agenda bem definida. A nova ideologia-praxia é tentadora porque sabe empregar também a linguagem e as metáforas das religiões e das literaturas.

Religiões e outras instituições abertas aos sinais dos tempos terão de estar atentas às suas estratégias! Delas poderão aprender muito em termos de resposta ao globalismo.

No princípio era a fé em Deus, depois veio a fé no dinheiro e agora experimenta-se a fé na mensagem da Alta Tecnologia como doutrina de salvação, que transfere a esperança para a perspectiva das possibilidades infinitas da tecnologia! (Já há pessoas que se deixam congelar para serem descongeladas na altura em que a técnica tenha descoberto soluções para a morte – uma ilusão que desconhece a realidade do ser criado ou da matéria mas que como utopia dá resposta, à sua maneira, a necessidades do ser humano). Para os apóstolos da nova mensagem, os estados, as religiões, as filosofias tornam-se em empecilhos de progresso. Fixados na sua filosofia que de forma eclética se serve da ciência e da religião como expressão da necessidade humana, elaboram um sistema de ortodoxo-praxia orientada pelo desejo criativo que se realiza na inovação. Reduz-se o ser a uma determinada forma de estar na vida. A ideologia substitui cada vez mais as soluções práticas passando muitos projectos a ser efectuados segundo os óculos da ideologia e do momento.

No princípio era a fé em Deus que se encontrava no âmago do Homem. Hoje é a fé na tecnologia que já não se encontra dentro do homem, dependendo só dele e ao não fazer parte do seu centro corre perigo de o alienar totalmente.

A filosofia da alta tecnologia (economia digital) incorpora nela também Marx e Engels definindo o alienante como aquilo que nos tira do tempo, do concreto; assim se reduz a pessoa à materialidade que se esgota na actividade produtiva que se torna, ao mesmo tempo, fonte da consciência; por outro lado considera a religião, Deus e o dinheiro como factores alienantes que nos desviam da realidade material. A nova fé encontra no Yoga e em exercícios semelhantes uma maneira de estar prática e de subjugar instâncias metafísicas.

A nova alienação prende a consciência humana à sua mera actividade. O produto é a luz da vela que resulta da energia do trabalho e o indivíduo esvai-se nela. A ideologia moderna, que a todos parece iluminar, aliena-nos com produtos conseguidos à custa da desumanização das pessoas reduzidas a mercadoria numa “metafísica” bruta construída, como no caso da vela, a partir da relação produto-consumidor. Aqui dá-se a identificação do indivíduo com o seu destino; tudo é reduzido a indivíduo saído da materialidade para se consumir na materialidade. A promessa do desenvolvimento infinito alimenta a nova alienação do indivíduo que ao ser reduzido a produto passa a ser consumido na ilusão do que consome. A relação entre produtor-produto e consumidor passa a ser a utilização, o imediato. A teoria da alienação em Marx, na sua consequência lógica reduz o Homem a mera biologia animal irracional. De facto, o pensamento, na sua qualidade de abstracto, seria na sua essência uma alienação. Para ser consequente o pensamento marxista e da aliança capitalismo-marxismo teriam então de declarar o fim do pensamento.
Continua no próximo artigo sob o título “O VALE DO SILÍCIO (Silicon Valley) E A ESCOLA DE SAGRES – MITOS DA SUSTENTABILIDADE”
António da Cunha Duarte Justo
In Pegadas do Tempo www.antónio-justo.eu

“ANTISSEMITISMO” EM TEMPOS DE CRISE E DE CAMPANHAS ELEITORAIS

Jean-Paul Sartre, no Retrato do antissemita (1945) dizia: ”Antissemitismo não é só a alegria do ódio; ele também consegue disposição positiva: na medida em que trato os judeus como seres inferiores e prejudiciais, afirmo, ao mesmo tempo, pertencer a uma elite.”

Lamentavelmente, por toda a Europa se assiste, actualmente, ao crescimento do antissemitismo, da xenofobia e da intolerância em relação ao outro, ao diferente! O mesmo se poderia dizer em muitos casos de posições de um adepto de um partido em relação ao partido adversário.

Em tempos de crise e de eleições não é fácil argumentar sem generalizar nem demonizar o adversário. Cada um apresenta a parte do rosto sujo do outro para com ela tapar a parte suja do próprio rosto.

Se cada um reconhecesse esta prática então ninguém seria tão categórico na sua opinião. Nestas coisas, os intelectuais ou multiplicadores sociais, têm muita responsabilidade, especialmente no nosso tempo em que a radicalização se espalha. Cada qual se encontra absorto nas próprias preocupações, o que nos dificulta ver verdadeiramente o que acontece à nossa roda. Todos trazemos em nós o judeu e a sua sombra; Judeu és tu, judeu sou eu!

Junto a citação de Sartre em alemão que ontem vi ao visitar um museu em Kassel:

„Der Antisemitismus ist nicht nur die Freude am Hass; er verschafft auch positive Lust: indem ich den Juden als ein niederes und schädliches Wesen behandle, behaupte ich zugleich, einer Elite anzugehören.“ Jean-Paul Sartre, Portrait des Antisemiten (1945)
António da Cunha Duarte Justo
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A Alemanha como Touro da “Vaca Europa” e seu Bode expiatório

Germanofobia encoberta em Afirmações generalizadoras e Argumentação do Tipo Preto ou Branco?

Por António Justo
O Frankfurter Allgemeine de hoje diz: “A peça teatral ateniense é altamente medíocre”. Medíocre é também uma imprensa que tendenciosamente demoniza a Alemanha como sendo a responsável pela crise da Grécia que junta em si os sintomas do seu sistema corrupto aos de uma Zona Euro desorganizada e mal ajustada. Tanto a Grécia como a Alemanha fazem parte do mesmo sistema em que nenhum dos países se pode ilibar de erros e virtudes.

Fala-se muito do Diktat alemão e da sua prepotência económica. Argumenta-se com as suas atrocidades da História especialmente numa imprensa que antes se virava contra o imperialismo americano e agora acha como suficiente reduzir os problemas da Europa e do globalismo à agressão económica da Alemanha. Acho graça que num país como Portugal, num jornal como o Público, um jornalista como Boaventura Sousa Santos, no artigo “A Alemanha como problema” se socorra da pedrada “nazista” para fomentar sentimentos antigermânicos em vez de colocar a problemática em termos do liberalismo económico liberalista e no contexto de uma Europa feita de nações e de mentalidades extremamente divididas.

Do colonialismo para o imperialismo económico

Não há que definir uma Alemanha como o touro da vaca Europa nem tão-pouco como seu bode expiatório! O facto é que nos encontramos num mudo extremamente complicado e em plena guerra económica. O problema da Alemanha é produzir demais e o dos outros países é produzirem de menos e consumirem demais. Numa economia meramente mercantilista querer comparar exigências de nações com 80 milhões de cidadãos e de alta tecnologia e produtividade a outras com uma dezena de milhões e pretender colocá-las em igualdade de decisão seria ingénuo ou mera ideologia que, contra a realidade, querer tornar igual o que é desigual.

Vassalos da economia ou/e vassalos das ideologias?

Aos colonialismos europeus sucederam os imperialismos dos USA e russo e agora encontramo-nos em pleno imperialismo económico selvagem. Esta é a realidade a enfrentar que tem andado pelos países em desenvolvimento e agora atinge os europeus e em especial os seus vindouros. Os tempos mudaram, antigamente havia guerras hoje há guerrilhas; ontem dominava a arrogância bélica hoje a arrogância económica; ontem prestávamos vassalagem à França e à Inglaterra, hoje prestámo-la a Bruxelas. Sejamos realistas, procuremos é reduzir o nível da vassalagem com propostas económicas sem nos tornarmos também vassalos de ideologias.

A queda do Muro de Berlim (1989) e a correspondente reunificação tiveram como consequência a fortaleza da Alemanha. Que esta tente disciplinar os países europeus como se disciplina a si é uma questão discutível tal como a das diferentes mentalidades na maneira de encarar e resolver os problemas.

Com a criação do euro é consequente a concorrência económica desigual porque se dá entre sistemas económicos e de finanças diferentes; há que corrigir o sistema e canalizar as energias para se não ser vítima delas.

No altar da democracia, os sacerdotes da crise simplificam a questão; para explicarem as desigualdades de um sistema desigual, precisam de uma vítima e de um pecador: da vítima Grécia e do pecador Alemanha. O problema não está tanto no sermos alemães, portugueses ou gregos mas no facto de nos encontrarmos todos no redemoinho financeiro que, através das dívidas, quer a subjugação das soberanias nacionais a uma soberania hegemónica económico-financeira.

Não chega defender o soberanismo dos fracos contra o soberanismo dos fortes; a discussão terá de ser no sentido da inclusão económica e cultural de uns em relação aos outros. Na época do globalismo e da reorganização das nações em zonas de influência económica, o mito de soberanismos iguais distrai-nos da ocupação no essencial, não passando de ecos da revolução marxista cultural. Partir de que “no contexto europeu, o soberanismo ou o nacionalismo entre desiguais é um convite à guerra„ é não querer compreender que o preço da União Europeia será bem caro e terá de ser pago com facturas de soberania. Como se pode construir uma Europa de bases democráticas quando a economia em todos os países europeus não se submete à democracia e, na realidade, todas as democracias pretensiosamente soberanas se submeteram à economia? Importa será como resolver o dilema.

Trabalhar mais e viver menos ou vice-versa?

Também a mim me agradaria mais o estilo da forma de viver à maneira Sul, uma maneira mais católica; só que agora que o Sul professa os mesmos actos de fé dos benefícios do capitalismo protestante não é justo que se condenem estes, porque então o problema passaria a ser a inveja.

O tão desgastado argumento do respeito pela diversidade implicaria consequentemente o reconhecimento de que o desigual para viver mais trabalhará menos e consequentemente terá de deixar o alemão trabalhar mais para que consiga poder mais à custa do seu viver menos. Não seria correcto querer comer a fatia do bolo e exigir, ao mesmo tempo, que ele fique inteiro! O espírito pacífico da convivência em dignidade democrática e o respeito pela diversidade implicaria então o aceitar a prepotência, a nível económico do irmão mais forte e tentar arranjar-se com ele na consciência de preservar a irmandade e de uma concorrência humana. O facto é que toda a Europa se encontra endividada, toda ela se tornou refém da guerra fria entre política e economia.

Os argumentos baseados num saudosismo dos tempos da guerra fria e de um mundo bipolar correspondem ao mundo de ontem. Quem não reconhece isto terá de perder as energias a mostrar os podres da Alemanha e a esconder os seus. Por vezes tem-se a impressão que a Alemanha é responsabilizada pela falta de inteligência de quem assina contratos, não aplica eficientemente os fundos ou vende a sua soberania em troca de postos a nível europeu e mundial. O que está a acontecer não é bom para a Europa nem para nenhum país europeu. A Europa para arrepiar caminho terá de moderar o turbo-capitalismo e o marxismo cultural.

O sadismo de lamber o sofrimento das próprias feridas com o sofrimento desejável para os outros nunca será bom conselheiro e não ajuda ninguém. Se não queremos continuar todos a jogar ao faz-de-conta e ao esconde-esconde das mentalidades, se queremos contribuir para um desenvolvimento humano da sociedade europeia, haverá que purgar os vícios que herdamos do tempo das invasões francesas e corrigi-los com uma aproximação comedida à Europa nórdica ou renunciar ao consumismo de que tudo, e em especial a cultura, é vítima. A germanofobia é tão grave como a xenofobia alemã; uma implementa a outra.

Concluindo

Uma Zona Euro sem um sistema económico e de finanças aferido torna-se em ilusão e engano e dará razão à nossa sabedoria popular que diz “casa onde não há pão todos berram e ninguém tem razão”.

Se nos encontramos em tempos da guerra económica haverá que conter a Alemanha levando-a a investir os seus lucros na periferia. Combater o nacionalismo económico alemão com o nacionalismo político das nações torna-se desadequado em termos de objecto e de tempo… A receita para a Europa não pode pressupor a contenção económica alemã.

Antes de acções precipitadas de um discurso sobre a saída do euro, Portugal e os países mais débeis deveriam pedir um ajusto de contas quanto à distribuição de investimentos e implementar com o tempo a criação de um imposto de solidariedade em todos os países da Zona Euro que seria investido nos países da periferia económica. Durante uma certa fase o pagamento dos juros aos credores deveria, também ele, estar condicionado ao correspondente investimento nos países onde é quebrado.

Torna-se cada vez mais corrosivo o espírito xenofóbico popular que se manifesta até em cabeças bem pensantes. Se se é pela reintrodução do Escudo seria importante uma discussão de base económica mas que, querendo ou não, tem que contar com a maior potência económica que é a Alemanha e, de uma maneira ou de outra, condicionará os hábitos de produção e concorrência de mercado.

Conheço um pouco a mentalidade dos povos do sul e a mentalidade da Alemanha; por isso sofro dos dois lados, por isso me custa ouvir os de uma mentalidade contra os da mentalidade dos outros, sem perceber que por trás de uma mentalidade se revela uma maneira de ser e estar com um determinado agir.

O povo alemão pode ter os defeitos que tiver mas é um povo consciente, trabalhador, disciplinado, bem estruturado, corajoso, altruísta, honesto e leal. Se trabalha mais não os devemos invejar por também comer mais mas também ele não nos deve invejar nem ter pena por vivermos mais e comermos menos.
António da Cunha Duarte Justo
In “Pegadas do Tempo” www.antonio-justo.eu