O CULTO DO FUTEBOL E O CULTO RELIGIOSO

No Desafio da Vida os diferentes Rituais completam-se

Nos campos verdejantes de futebol e nos magníficos templos, a humanidade encontra as suas almas num espetáculo divino e secular. O torneio de futebol e o culto religioso compartilham mais semelhanças do que se pode imaginar à primeira vista nos rituais religiosos e nos rituais seculares ou em eventos culturais. São arenas sagradas onde corações pulsantes e fervorosos de diferentes devotos se reúnem, não só para celebrar a vida, mas para expressarem em comunidade, de maneira aberta e digna, as suas esperanças, receios e alegrias.

Imagine-se os estádios lotados como templos modernos, onde os fiéis se vestem com seus trajes rituais, não de túnicas e mantos, mas de vestimentas e cachecóis vibrantes, cada cor representando sua devoção inabalável a uma equipa, a um santo secular. Estes devotos fazem peregrinações de longas distâncias, enfrentando jornadas de fé, com o coração pulsante de expectativa, na esperança de testemunhar milagres de chuteiras. Eles ostentam não rosários, mas bandeiras, e em vez de velas, acendem as suas paixões com gritos e cânticos que ressoam como trovões, elevando-se aos céus num clamor que busca a graça da vitória.

Os cantores iniciadores de coros, os líderes dos adeptos, orientam os adeptos fiéis em hinos de louvor e devoção, transformando o estádio em um coro celestial. A multidão responde com interjeições de alegria e também gritos de arrependimento, num rito tão antigo como a própria civilização.

Os jovens acólitos (crianças), com olhares cheios de sonhos, acompanham, de mãos dadas, os seus ídolos até ao centro do altar verde onde, de alma e coração se apregoa o hino nacional. Assim, jogadores com “camisas” próprias, adeptos e crianças acompanhantes, expressam de maneira simbólica que em campo e em jogo se encontra toda a comunidade de vida.  Ali, sob os olhos atentos do árbitro-sacerdote, o ritual começa. Cada passe, cada finta, é uma oferenda; cada golo expressa uma epifania: aquele acto tão esperado de consumação e exaltação libertadora como se de teofania se tratasse onde ecoam os sons de trombetas de anjos e arcanjos arqueados em torno da baliza a dar ao golo um sentido superior.

Nos cultos religiosos, um Deus omnipresente recebe a adoração. No campo sagrado do futebol, os ídolos de carne e osso encarnam as esperanças de milhares. Mas em ambos os casos, há um elemento comum: a busca por sentido, a necessidade de um lar emocional-mental onde as almas possam expressar seus desejos e medos, onde possam mostrar sua veneração de forma palpável e, assim, libertar as diferentes energias que se acumulam nas vidas do seu dia-a-dia.

A beleza desses rituais, sejam eles em igrejas ou estádios, está na celebração da comunidade e na experiência coletiva da alegria. Há algo de profundamente humano que nos junta a todos para celebrar a festa da vida, numa de superar as intrigas mesquinhas, e nos reunir para cantar, rezar, gritar e apoiar juntos. Também a fé no pequeno David que desafia o grande Golias se manifesta em cada jogo onde a pequena equipe pode, contra todas as probabilidades, revelar-se vitoriosa. É a esperança que mantém os fiéis em ambos os domínios – a esperança de que, mesmo perante desafios gigantescos, o espírito humano pode triunfar. A esperança de que o humano deixe de ser mero rival e mesquinho para se tornar verdadeiramente humano.

O melhor rito é aquele que celebra toda a vida, no reconhecimento que cada acto e momento, seja religioso ou secular, contribui para o grande mosaico da existência. A vida é, afinal, um jogo, e a soma dos seus momentos é o que dá sentido à nossa jornada. Cada um de nós é o catalisador da sua própria vida, e nenhum momento deve desviar-nos do campo onde se joga a verdadeira partida: esse campo encontra-se dentro de cada um de nós e expressa-se numa vivência de comunidade.

Vamos todos celebrar, nos templos e nos estádios, nos cantos sagrados e nos gritos dos adeptos, a maravilhosa tapeçaria da vida. Ideal seria que cada um de nós encontrasse, na sua própria arena, a alegria e o sentido que buscamos e nos transcende numa de pensarmos e agirmos a partir do nós descoberto na nossa singularidade, o centro onde se realiza encarnação e ressurreição no mistério do encontro do divino com toda a humanidade.

Moral da narrativa e ideias inovativas: Qualquer pessoa que oponha os rituais naturais das pessoas uns contra os outros compreende mal o mundo, a humanidade e as pessoas e ainda não chegou a abranger os moventes mais profundos de todas as agremiações e instituições. Enquanto não superarmos o ciclo vicioso de afirmação e contra-afirmação, continuaremos a afirmar uma cultura da guerra sem notarmos que seria possível iniciar uma cultura da paz na complementaridade e na aceitação do erro como momento de superação; para isso haveria que sublimar a guerra e a agressividade humana em jogos, tal com acontece modelarmente no futebol (1). O futebol espelha a nossa vida natural.

A pressão do desempenho, o medo do fracasso, as imagens de masculinidade e, por outro lado, a paixão e a devoção absolutas são moventes bem presentes na arte do trabalho em campo. Tudo isto eleva os jogos a um lugar de ação e de culto. O futebol torna-se num catalisador onde se dissolve a tensão de energias positivas e negativas. Na esfera olímpica, porém, o deus futebol ameaça tornar-se demasiadamente absorvente, exigindo-se, por isso, cada vez mais capacidades de discernimento na maneira de determinar as prioridades orientadoras da própria vida.

O Campeonato Futebol (UEFA – FIFA) é também o exemplo de desfile e a expressão cultivada de uma sociedade dominada pelos homens que, com este tipo de ritual, exalta a matriz masculina que ordena o mundo segundo as características masculinas e ao mesmo tempo enfatiza os objectivos internos e os métodos de afirmação da natureza.

Não chega criar campeonatos de Futebol para mulheres no intuito de mitigar a matriz masculina do nosso modelo de sociedade.

Se nos rituais de futebol se sobrevaloriza a masculinidade secular nos rituais religiosos valoriza-se a feminidade em geral. Para se criar uma cultura humana de paz haverá que conceber pontes entre os polos das energias femininas e das energias masculinas, de maneira a que umas e outras entrem num diálogo de olhos nos olhos; isto para paulatinamente  se ir elaborando uma nova matriz de  equivalência entre características femininas e masculinas sem se cair  no erro de um igualitarismo superficial e masculino hoje dominante – pacote enganoso – que pretende masculinizar a feminilidade tornando-a apenas funcional e deste modo masculinizam ainda mais a agressiva matriz  masculina que domina a nossa sociedade a nível sociológico, antropológico e político-económico numa estratégia militarista.

Se partirmos da natureza humana e da observação da história dos povos, será de concluir que as sociedades continuarão a seguir a mesma matriz continuando a humanidade a ser uma oficina de reparação.  Neste sentido a sociedade irá continuar a enganar-se a si mesma; no palco humano prosseguirá a aliança de um mercado de transferências a nível desportivo, religioso, político, comercial, económico e da arte.

“Fomos, somos e seremos sempre todos nós. Acredita, Portugal”, apela Cristiano Ronaldo, de olhar no firmamento. De facto, quem pretende chegar à victória tem de aceitar com esperança o desafio da vida, consentindo também a prova de exercícios do erro para poder avançar numa sociedade feita ainda de vencedores e vencidos!

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

(1) alguns textos meus sobre jogos:

Diogo Costa: https://antonio-justo.eu/?p=9449

Análises de jogos de futebol: https://triplov.com/letras/Antonio-Justo/2014/alemanha.htm

Mulheres são Bolas de Jogo: https://redactormz.com/no-qatar/

Portugal Marrocos: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/jogo-portugal-marrocos

Ronaldo: https://www.mundolusiada.com.br/artigos/ronaldo-o-melhor-embaixador-de-portugal/

 

 

Pegadas do Tempo

 

(1) alguns textos meus sobre jogos:

Diogo Costa: https://antonio-justo.eu/?p=9449

Análises de jogos de futebol: https://triplov.com/letras/Antonio-Justo/2014/alemanha.htm

Mulheres são Bolas de Jogo: https://redactormz.com/no-qatar/

Portugal Marrocos: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/jogo-portugal-marrocos

Ronaldo: https://www.mundolusiada.com.br/artigos/ronaldo-o-melhor-embaixador-de-portugal/

 

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Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

6 comentários em “O CULTO DO FUTEBOL E O CULTO RELIGIOSO”

  1. Meu caro Justo

    As tuas crónicas desta vez não me merecem reparos.
    Em todas , até na primeira sobre o Futebol e a Religião , fizeste um esforço ( nota-se) para ser mais sociólogo do que teólogo …mais humano do que pedagogo, mais realista e objectivo do que tendencioso ( sem desprimor!) e demagogo ! Quiçá a esperança, o desespero, a raiva e as lágrimas multidões dos estádios tenham reforçado o teu lado humano, terreno e enfraquecido a tua vertente teosófica e dogmática !
    A cátedra deixa-nos sozinhos meu caro amigo Justo… e não adianta recorrer a Deus ao anoitecer, nas nossas dúvidas. como fazia Santo Agostinho, porque as respostas de Deus são apenas as nossas, as nossas preces não passam dos nossos desejos…
    E claro… Tu António Justo leste e lês os teus livros e eu leio outros, aprecias uns filósofos e eu outros ! Eu vivo de dúvidas , amigo Justo e tento em vão conjugar o sentimento com a inteligência , a humanidade e a crença ! Um abraço
    JCM

  2. Meu caro amigo,

    Agradeço de coração o teu comentário ponderado e reflexivo que como o fósforo incita o meu cérebro a refletir e a dar resposta! Vejo nele uma verdadeira preocupação em construir uma ponte de entendimento entre as nossas possíveis diferentes perspetivas. A tua análise das minhas crónicas é encorajadora, sobretudo porque reconhece o esforço que faço para adoptar uma abordagem mais sociológica, humana e objetiva. Continuo, porém, a acreditar mais na filosofia e na teologia do que na sociologia que ameaça tornar-se na nova cartilha que um mundo globalista pretende eleger! Para mim, a filosofia e a teologia continuam a ser verdadeiros garantes e expressões de humanidade e o protótipo continua, para nós cristãos, a ser Jesus Cristo.
    Quando escrevo não procuro seguir nenhum senhor; escrevo com espontaneidade o que me vem à cabeça e sai do coração, reagindo ao que vai acontecendo no mundo, de forma pessoal e intuitiva; o que escrevo é uma espécie de autorreflexão não sistemática mas surgida do encontro com a vida; de facto acho mais humano e conforme ao espelho da vida usar o discurso dos sentimentos e das ideias como válvula de fuga do que usar as pessoas como cano de escape. Admito uma certa unilateralidade minha ao colocar a visão cristã (não de cristandade) como o melhor projecto de vida para mim e para a humanidade (e isto independentemente da fé que, no meu entender, por vezes se ajoelha demasiado). Também por isso sou demasiado sensível aos movimentos que sem apresentarem uma crítica construtiva em relação à civilização ocidental e nela ao cristianismo/catolicismo, actuam no sentido de abolirem os fundamentos da cultura ocidental. Também por isso vejo como missão dos ocidentais (cristãos e ateus) o empenhamento na defesa e aperfeiçoamento dos seus valores demasiadamente degenerados pela influência anglo-saxónica (também a Alemanha determina demasiado a orientação da EU).
    Concordo absolutamente contigo quando dizes que, muitas vezes, a cátedra nos isola, deixando-nos numa posição de aparente solidão intelectual. No entanto, sem medo de sujarmos as mãos, acredito firmemente na importância de mantermos um olhar crítico e atento sobre as posições dos governos e outras autoridades, procurando sempre uma correção contínua através da participação activa dos cidadãos porque as ideias de quem governa não tem porque devam ser melhores do que a dos cidadãos. A crítica construtiva é, para mim, um dever cívico que transcende ideologias, crenças e interesses individuais; compreendo, porém, que condicionamentos de perfis humanos e a pressão que os media exercem sobre cada cidadão possam influenciar profundamente tomadas de posições demasiado formatadas.
    É verdade que Santo Agostinho recorria a Deus nas suas dúvidas, e as respostas divinas que ele procurava eram, muitas vezes, reflexões dos seus próprios anseios e meditações. (Em teologia é costume dizer-se que o falar de Deus e sobre Deus é sempre um falar humano). Este diálogo interno é essencial para todos nós, independentemente do nosso caminho espiritual ou filosófico. Na diversidade das nossas leituras e nas diferentes filosofias que apreciamos, encontramos uma riqueza que nos desafia e nos faz crescer na vida peregrina no tapete humano. A escola de Dom Bosco também, com o seu método preventivo, ajudou-nos certamente a ti e a mim a encarar a vida e as pessoas com um olhar compreensivo e benévolo sobre tudo o que é humano.
    Como bem disseste, tu vives de dúvidas e tentas conjugar o sentimento com a inteligência, a humanidade e a crença. Eu, por outro lado, procuro um equilíbrio entre o idealismo e o realismo, sem perder de vista a necessidade de um contínuo questionamento e aperfeiçoamento. É nesta busca incessante que encontramos a nossa humanidade comum e a possibilidade de um diálogo frutífero.
    Um abraço fraterno,

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