(Parto do Abismo nas Sombras do Modernismo)
Não é o grito agudo, claro, definido,
É um quebrar de ânforas no silêncio,
Um tumulto surdo, um ruído
De um mundo grávido de um tempo sem senso.
A sociedade, uma madre em contrações desencontradas,
Arqueja sob a pressão de um feto de névoa,
Não pare um futuro, mas dores emprestadas,
Um parto de sombras que a si mesma nega.
Qual é a queixa da alma coletiva, sem causa aparente?
É a náusea do vazio, o luto por um Deus que não morreu,
Mas que se perdeu na torrente
De um amanhã que se prometeu… e não nasceu.
São dores de parto de um ser ainda informe,
Uma gestação de ferro, fogo e algoritmo,
O útero do tempo à beira de um deforme
Nascido que não é neto, nem é legítimo.
A placenta é de écran, o cordão é de fibra ótica,
A luz que nos guia é um fluxo de ansiedade.
A nova maneira de ser, criança caótica,
Não traz o leite quente da humanidade.
Traz o frio do silício, a promessa de um paraíso estéril,
O abraço de um algoritmo, vasto e distante.
É um parto criativo, sim, mas de um ser tão sério
Que confunde a sua alma com um software errante.
Por isso a queixa ecoa, cega e obstinada,
Não contra a fome ou a guerra, males de outrora,
Mas contra esta angústia mal desenhada,
Este vazio que à mesa se senta e devora.
É o luto pelo Homem que fomos, a agonia
Do rosto que se dissolve no pão da existência.
A nova maneira de estar não é um novo dia,
É a noite iluminada pela própria ausência.
E no entanto… há a centelha, a dor que é génese,
Neste abortar de mundos, há um verbo ténue a crescer.
A própria sombra que nos cobre talvez nos revele
Que só criando o abismo o podemos vencer.
A queixa é o primeiro hino deste estranho nascimento,
O útero do caos é criativo, ainda que cruel.
Talvez da noite do não-sentido, brilhe um firmamento
Onde a alma, finalmente, encontre o seu papel.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo