Na quietude da tarde, entre o perfume da lenha queimada e o sonido dos pássaros distantes, o neto Daniel entrou no quintal da casa do avô Joaquim. Fazia já anos desde a sua última visita. O velho Joaquim, de mãos calejadas e olhos de horizonte vasto, aguardava-o sentado no alpendre, esculpindo um pequeno pedaço de madeira.
— Avô, voltei. — disse o neto, hesitante, como se o peso das palavras fosse maior do que a própria presença.
O avô ergueu os olhos com um sorriso que misturava surpresa e uma sabedoria ancestral como o mundo.
— Voltas sempre ao que nunca te deixou, Daniel. Senta-te. Conta-me o que te trouxe de volta.
O neto hesitou, mas sentou-se num tronco que esperava por ser cinzelado. Começou a contar da vida na cidade, das corridas intermináveis atrás de sonhos que se desmanchavam como a fumaraça que saía do tronco fumegante. Falou da confusão que sentia entre o que acreditava e o que via.
— Avô, vi mundo e às vezes sinto que estamos todos num barco que mete água, mas ninguém sabe como o reparar. Pessoas debatendo-se por ser melhores que outras, ateus brigando com religiosos, políticos em luta pelo poder, todos perdendo-se em certezas que são só pedras no sapato da caminhada. E eu sinto-me amachucado e perdido no meio disso tudo.
O avô Joaquim pousou o bocado de madeira e encarou o neto com o olhar de quem vê mais do que ouve.
— Sabes, rapaz, a vida é como este quintal. Tem terra, flores, ervas daninhas, árvores que crescem para o alto e raízes que se entrelaçam no subsolo escuro. Cada um pensa que só o que está à vista importa, mas é lá em baixo, no que não se vê, que está a força.
— E o que fazemos quando nem sabemos onde estamos? — perguntou o neto, com a aflição de quem busca uma bússola.
O avô suspirou, cruzando os dedos envelhecidos.
— Quando Deus perguntou a Adão “Onde estás?”, não foi porque Ele não sabia. Foi para que Adão e nele a humanidade se situasse. Meu neto Daniel, a pergunta continua ecoando na humanidade e em cada um, sem importar se és crente, ateu ou agnóstico. O importante é que respondas honestamente a ti mesmo. Sabes, a vida, com as suas pernas e caminhos, não pede certezas, mas abertura.
O neto abaixou a cabeça, como quem tenta absorver as palavras. E o avô continuou, com a serenidade de quem já viu muitas estações.
— O erro de muitos, meu caro Daniel, é pensar que a razão é o barco e não o remo. A razão ajuda a navegar, mas é o amor — e o mistério que o sustenta — que mantém o barco à tona. Fé, esperança, caridade e dúvidas são os ventos que nos movem. E todos estamos nesse mesmo oceano, procurando um porto que aponte para o eterno.
Daniel sorriu pela primeira vez. Sentia que, apesar de não ter respostas, encontrava um ponto de partida.
— Então, avô Joaquim, o que é o sentido da vida?
O velho levantou-se com esforço e apontou para o céu, onde o sol se punha em tons de ouro e púrpura.
— Vês aquilo no horizonte? A beleza não está só na luz, mas no encontro dela com a noite. O sentido da vida é relação. Estar em relação com, em relação nos outros, com o mundo, com o inefável, contigo mesmo. A vida é dar e receber, um modo de estar em relação pura como mostrou Cristo. Não precisamos de respostas para viver bem. Só precisamos de aceitar o convite de Deus, mesmo sem entendê-lo completamente. Afinal, somos todos peregrinos, não donos do caminho.
O neto ficou em silêncio, contemplando o céu, de coração mais leve. Naquele momento, percebeu que não precisava de resolver todos os mistérios da vida. Bastava viver a pergunta, na vivência de um passo de cada vez.
E o velho, com um sorriso sábio, voltou à sua madeira, esculpindo uma figura que só ele sabia o que viria a ser — tal como a vida.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo
e em Poesia de António Justo http://poesiajusto.blogspot.com/