Será legítimo colocar o Direito à Vida contra o Direito à Dignidade humana em Democracia e na luta contra o Coronavírus?
Por António Justo
O filósofo Arthur Schopenhauer já advertia: “Não somos apenas responsáveis pelo que fazemos, mas também pelo que aceitamos sem contradição”.
Em questões de Coronavírus os governantes têm atuado com base no princípio da defesa do direito dos cidadãos à vida; para isso servem-se de estatísticas e de dados científicos de virólogos, sem atenderem suficientemente ao outro princípio que é a defesa da dignidade humana de cada cidadão. Têm tido sucesso, mas para legitimarem o seu atuar servem-se da ambivalência da Ciência e do Direito sem terem em conta a proporcionalidade.
Neste sentido, o presidente do parlamento alemão, Wolfgang Schäuble, achou oportuno iniciar uma discussão diferenciada, até agora omitida na política (governo e oposição) e nos meios de comunicação social; o político está consciente da precária argumentação dos governantes na tentativa de legitimarem o seu não seguimento dos princípios mais fundamentais da democracia e dos direitos humanos do cidadão. (De facto, a discussão tem de tornar-se mais diferenciada e talvez mais arriscada, o que só tem acontecido nalgum pequeno nicho da sociedade que tem sido reprimido e censurado pelo domínio de um poder social quase único seja a nível governamental seja a nível dos media.)
Para o Presidente do Parlamento, a proteção da vida não está acima de tudo; a dignidade do homem é que está acima de tudo, como insinua no Tagesspiegel: “Quando ouço dizer que tudo o resto tem de dar lugar à proteção da vida, então tenho de dizer: Isso não está certo nesta absolutização. Os direitos fundamentais restringem-se uns aos outros”.
Embora ele tenha razão na crítica implícita a muitas medidas relativas ao tratamento do Covid-19, ele relativiza, em princípio, o direito à vida e à integridade física pondo-o em relação com a inviolabilidade da dignidade humana, para talvez criar um espaço anónimo e amoral onde a política se possa melhor manobrar, quando no centro da discussão deveria estar mais o emprego das medidas tomadas ou a tomar.
Schäuble, na qualidade de garante da defesa da Constituição, sabe que nela há dois princípios/direitos fundamentais que se complementam: a “dignidade humana é inviolável” (artigo 1 da Lei Constitucional) e o “direito à vida e à integridade física” (art.2, §2º). Como político, pretende que o bem mais elevado e a colocar sobre outras formas jurídicas seja a inviolabilidade da dignidade humana (até porque esta está mais sujeita a interpretação e como tal condicionável a maiorias).
O Presidente do Parlamento abre a discussão a alto nível (o seu lugar próprio) com consequências éticas de grande alcance e que políticos e jornalismo poderão trocar depois por miúdos. Deste modo vem questionar algumas medidas até agora tomadas por uma política que colocou o direito à vida e à integridade física como princípio absoluto sem considerar outros valores e direitos democráticos (problema da adequação dos meios aplicados!). Ele relativiza o primado da proteção da saúde/vida ao dar prioridade à inviolabilidade da dignidade humana, questionando assim a desmontagem dos direitos democráticos, a que temos assistido durante o atual “regimento” do Covid 19.
De facto, nas medidas relativas ao Coronavírus tem havido o conflito da substituição do Parlamento pelo Executivo, criando-se um vácuo democrático de ambivalência. O Parlamento nem sequer examinou criticamente as medidas tomadas pelo Executivo. Restará a esperança de o Parlamento não abdicar de voltar ao poder com plena força para moldar o futuro.
Equacionar a vida em critérios de sobrevivência (evitar adoecer/morrer) ou em critérios do modo de viver acarreta consigo diferentes consequências. Como coordenar o direito de estar em situação de desenvolver a personalidade livremente, do valer a pena viver, com o viver simplesmente?
Facto é que com a pandemia do Coronavírus as autoridades optaram por privilegiar a defesa da saúde da comunidade em geral contra os direitos individuais e de liberdade do cidadão. A legitimação de tal opção parece carecer de proporcionalidade e falta de diversificação nas medidas e nos objetivos a atingir. É verdade que a dignidade do homem está acima de tudo. Mas o que seria o direito a viver, mas sem dignidade? (O rebanho também vive simplesmente “delegando” a sua dignidade nos pastores e nos seus cães de guarda!) A interpretação de Schäuble tem os seus quês porque também a simples vida merece a maior honra (dignidade).
É verdade que, à voz dos virólogos e dos políticos, se seguirá a voz não menos importante da economia e como é sabido quando o estómago rosna, a moral (proteção da vida) recua para segundo plano, como insinua e provoca o referido político da CDU.
Em questões de ética não seria de separar os dois princípios (direitos) mas em política, dado que se trata da avaliação de interesses é legítima a questionação.
Em democracia também a consideração da proporcionalidade das medidas pressuporá que alguns tenham socialmente de pagar um preço maior que outros. A política encontra-se aqui num dilema de escassos recursos éticos e constitucionais porque para defesa de um bem que é evitar a morte e os riscos para a saúde da população, tem pecado, ao não considerar o outro bem que é a dignidade humana (1).
Políticos chegaram a meter os pés pelas mãos ao criarem situações em que hospitais tenham de decidir quem morre e quem pode continuar a viver; além disso o medo das possíveis infestações/mortes e o latente perigo diariamente apresentado pelas estatísticas não são razão suficiente para se pôr a democracia em quarentena à margem da Constituição (menos ainda se justificaria uma declaração de estado de emergência). Os direitos básicos à liberdade de circulação, à inviolabilidade do lar, à liberdade de expressão, à liberdade de circulação, o direito ao trabalho, à escola, ao exercício da religião, ao exercício da profissão, à liberdade de reunião, etc., têm sido massivamente restringidos.
Terão sido adequadas todas essas medidas restritivas? É verdade que a maioria do povo aceitou as restrições. (Noventa por cento dos alemães concordaram com as restrições iniciais impostas pelos políticos – nem mesmo o “Führer Hitler” conseguiu tal maioria para a sua política!)
Uma democracia em sociedade adulta implicaria uma discussão aberta, com um debate diferenciado sobre a proporcionalidade das medidas e os abusos da ação governativa. Em contrapartida tem-se assistido a uma anuência mais baseada no medo e no espírito ovelha que levou até, os do pensar politicamente correto, a marginalizar ou difamar os críticos de muitas medidas. Políticos e virólogos suspendem as liberdades cívicas, a nível mundial, e um jornalismo alarmista chega a declarar de extremista quem ousa questionar certas medidas.
Precisa-se de uma discussão distinta a nível de argumentação racional e não só afetiva. Não os medos, mas a razão deve orientar a política (como quer a praxe na nossa época). Uma discussão diferenciada possibilitará aos políticos saírem-se do imbróglio de rosto levantado e ao povo sair-se de maneira não tão aborregada.
Em termos éticos, o princípio da reverência perante a vida como valor máximo e o princípio da dignidade humana como respeito da pessoa são dois princípios apenas diferenciados no que se refere, por um lado, ao respeito pela vida em geral e, por outro, no respeito pela vida humana (o respeito da dignidade humana inviolável). O respeito pela vida ao ser absolutizado a nível do humano na dignidade humana inviolável é o mais plausível (também pelo caracter divino da pessoa na civilização cristã); isto não nos pode, porém, poupar o incómodo de avaliar o dilema que, por vezes, aparece de vida contra vida. Um outro aspeto a considerar é o económico: embora a economia não seja um valor em si ela não deixa de ser valiosa ao ser um pressuposto base da existência e subsistência. Aqui haverá que avaliar entre respeito pela vida, a vida necessária e a vida ameaçada.
A Constituição ao ser suspensa da forma como foi corre o perigo de dar à estatística (a sociologia) foros de legitimação última, o que significaria o princípio do enterro da civilização ocidental.
Na Alemanha deu-se até um caso curioso – que mostra a gravidade da situação cívica em que nos encontramos – um juiz na Baviera (2) decidiu que uma ordem decretada pelo Governo Federal era inconstitucional, mas alegou que não a revogava por causa do Corona. Logicamente, deste modo, mandou a lei fundamental de férias e decidiu ao mesmo tempo que ele (juiz) se encontrava sobre a Constituição!
O dogma da dignidade humana não deve ser questionado mesmo em tempos de pandemia tal como o dogma da defesa da inviolabilidade da vida humana; embora esta tenha prioridade não deve, contudo, prescindir de avaliar os meios que se usam para a defender! De facto, só cada ser humano é que pode definir a sua própria acepção única de ser. Pesar “vida contra vida” violaria os mais valiosos princípios da vida humana e possibilitaria o uso de um poder a terceiros (Estado) que se tornaria eticamente ilegítimo, independentemente da sua pretensa legitimação em nome de uma maioria a favor ou contra. A política ao orientar-se por meros dados estatísticos ou até por opiniões maioritárias abdicaria, em nome da democracia, daquilo que a legitimou: a racionalidade.
O direito à vida e à dignidade humana não podem ser colocadas meramente em termos de conflito porque tanto a proteção da vida como da dignidade humana deixariam de ser um todo e um dever absoluto; isto porque em caso contrário o Estado passaria a ter o direito de declarar quando vale a pena e quando não vale a pena salvar e proteger vidas. A discussão deve ser conduzida sem pôr em causa a validade absoluta dos dois direitos fundamentais. Doutro modo a caixa de Pandora passaria a estar aberta ao opinar sobre a idade em que a vida ainda vale a pena ser vivida (ser protegida).
Este é um assunto bicudo porque segundo o princípio de que o fim não justifica todos os meios qualquer atitude responsável terá de ser suficientemente ponderada numa sociedade que pretende ser cada vez mais adulta. Pessoalmente sou de opinião, que a dignidade humana não pode ser desacoplada do direito absoluto à vida e neste a última instância soberana é, pura e simplesmente, o indivíduo. Toda a instituição social deve estar ao serviço da pessoa.
O acentuar-se só uma faceta da dignidade humana tem-se verificado como precário pelo facto de estar sujeito à manipulação da consciência humana, como se pode verificar numa certa atitude “democrática” (com base na estatística e em maiorias) de considerar a eutanásia e o aborto como objeto de institucionalização de direitos para o Estado, quando estes pertencem apenas ao foro individual.
Não é legítimo o aproveitamento de uma crise para se fortalecer o Estado mesmo quando para isso se usa do estratagema dos idosos para institucionaliza-los e deste modo privá-los dos seus direitos de cidadania. O maior valor ético é a reverência pela vida e em especial pela vida humana. Em caso de dúvida, há que ser-se sempre pela liberdade!
Razões pedagógicas para educar e disciplinar um povo heterogéneo perdem a sua legitimidade quando não respeitam os direitos consignados na Constituição.
Naturalmente, tanto política como sociedade não podem resolver os problemas só com barreiras jurídicas nem com atribuição de culpas. No processo do desenvolvimento em que estamos precisamos de tudo e todos numa relação de complementaridade.
O tratamento exagerado do Covit-19 por parte dos governos mostra como a situação da população é frágil e como os meios de comunicação social poderiam enlouquecer toda uma sociedade. Dá para se entender a força de uma informação concentrada. Para pessoas com uma estrutura de personalidade compulsiva, a situação de todos os dias existirem novas regras, transmite-lhes um sentimento de satisfação porque ao cumprirem regras podem ter a impressão de serem bem-comportados. Para os que se gostam de espraiar nas praias da liberdade constituem tais medidas uma afronta.
© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo