Trump e a Transformação Política no Ocidente

Imperialismo Cognitivo da UE versus Imperialismo Económico-militar dos EUA

Estará Trump a tentar resgatar o espírito da Europa enquanto a própria Europa parece fugir de si mesma? Preocupante é a arrogância revelada por ambos os lados.

Trump, antes de tudo, é um político pragmático, fiel à alma popular, leal à tradição cultural e à nação. Nos seus extremos, ele expressa a raiva reprimida da população. Sua liderança inaugura uma era que reavalia a história fora dos parâmetros socialistas defendidos pelo Partido Democrata, que, com tendência niilista, promove a descrença na vida e a desagregação cultural e social na Europa.

Após a eleição de Trump, os políticos europeus da UE sentem-se como poodles molhados porque apostaram no cavalo errado.

Trump busca demonstrar que inovação e criatividade transcendem rótulos de esquerda ou direita. Ele rejeita as políticas de cunho socialista que, de forma discriminatória, têm ridicularizado os valores tradicionais em vez de integrá-los numa estratégia sustentável. Essa postura desafia as agendas políticas estabelecidas, inquietando as elites europeias e a esquerda woke, que prefere demonizá-lo. Essa crítica recai frequentemente sobre traços menos lisonjeiros de seu temperamento, permitindo que seus opositores se refugiem na tática de difamação, já usada com eficácia no século XX. Assim, desviam a atenção dos próprios erros de governança que Trump expõe.

A elite europeia, apegada ao status quo, lançou uma campanha de difamação contra Trump, direcionando o debate para questões morais ou incidentais. Isso satisfaz aqueles que lucram com o sistema, enquanto o público acrítico aceita essa narrativa como alimento intelectual.

Numa época de grandes desafios e incertezas chegou o momento em que os políticos não podem esconder-se mais sob o guarda-chuva democrático e das togas simbólicas emprestadas pelos meios de comunicação, hábito ainda vigente na União Europeia. O direito de expressar a própria opinião tem-se tornado, cada vez mais, numa actividade perigosa que pode trazer consequências graves para o cidadão distraído.

Trump é um produto do seu tempo e um catalisador para os sentimentos daqueles marginalizados pelos detentores do poder. Foi eleito por trazer uma narrativa ignorada ou rejeitada, desafiando o establishment político e mediático – a elite controladora que domina o status quo.

Enquanto os Estados Unidos se consolidam como o centro do capital e da liberdade de expressão, a Europa envelhece na sua defesa obstinada do establishment político e mediático, recorrendo à censura e rotulando como populismo qualquer pensamento divergente. Essa velha estratégia, empregada para atrasar o inevitável declínio, expõe uma profunda pequenez de espírito. O jornalismo europeu revela cada vez mais “indícios de ser um jornalismo baseado na opinião” como refere Alexander Teske, jornalista da ARD, autor alemão de “Inside Tagesschau”.

Ações e Discursos de Trump

Antes de deixar o cargo, Joe Biden concedeu perdão a ex-funcionários e deputados, além de familiares. Trump, por sua vez, exerceu o mesmo direito e perdoou 1.600 envolvidos no ataque ao Capitólio. Revogou 78 decretos da era Biden, retirou os EUA da OMS e do Acordo de Paris, e declarou emergência na fronteira com o México e no setor energético, reativando indústrias paralisadas. Trump também propôs acabar com a cidadania automática para filhos de imigrantes ilegais nascidos nos EUA; quer também reemigrar imigrantes ilegais: 11 milhões de pessoas vivem sem documentos

No seu discurso de posse, Trump afirmou: “Somos a maior civilização do mundo.” Ele declarou aquele dia como uma libertação e um retorno à democracia. Defendeu que os soldados não sejam doutrinados, mas sim transformados no exército mais forte do mundo. Exprimiu-se contra a promoção da ideologia do género e correspondente desmontagem da identidade humana fora da biologia (homem-mulher). Insistiu na importância da ordem e justiça, alertando: “As crianças estão aprendendo a ter vergonha do país.”

Trump agradeceu aos negros e hispânicos que votaram nele, mencionndo Martin Luther King e a necessidade de realizar seu sonho. Defendeu a unidade nacional baseada na excelência e no sucesso, sem esquecer “o Senhor nosso Deus.” Criticou a narrativa socialista por ser injusta com os conservadores, destacando: “Na América, não adoramos o governo, adoramos Deus.”

Nós, na Europa, temos uma opinião extremista e empolada sobre Trump e negamo-nos a compreender a cultura americana em que a religião (crença e fé) continua a ser um ponto central do povo americano e da sua política; somos levados a julgarmo-nos mais cultos e melhores pelo facto de continuarmos encerrados no nosso imperialismo de ideias, talvez com inveja dos imperialistas da economia. É triste ver-se filhos pródigos do cristianismo andarem à deriva sem pensar nalguns bens que seu pai lhe deu e os esbanjarem ou profanarem.

Trump apresenta um plano claro, em contraste com a complexidade da vida política. A tomada de posse dava para ser percebida como um momento de renovação da alma americana.

Europa e os Desafios Contemporâneos

Os europeus ainda não estão tão polarizados quanto os americanos porque a esquerda tem dominado o discurso, enquanto a direita permanece em silêncio ou até adopta o jargão progressista. Trump representa uma oportunidade para as elites europeias repensarem suas posições, em vez de insistirem na afirmação de ideologias ou do poder apenas nas mãos de famílias partidárias.

Na Europa, a esquerda progressista, que define a agenda da UE, segue desmantelando tradições culturais em prol do internacionalismo e do multiculturalismo enquanto a direita conservadora busca inovação e a preservação das raízes culturais europeias defendendo um certo patriotismo e interculturalismo. O povo, por sua vez, tem sido sistematicamente desonrado, e o orgulho nacional, apropriado pela esquerda.

A complicar tudo está o facto de Trump estar demasiadamente empenhado no engrandecimento dos EUA e a União Europeia extremamente empenhada em voltar aos velhos tempos da guerra fria   deixando pouco espaço para se iniciar uma política de paz e prosperidade para a Europa e para a Rússia. A UE aposta na própria insignificância geopolítica e económica ao, com a sua posição belicista, fomentar os polos USA-BRICS renunciando a si mesma. Com tanta agressão contra o presidente americano, a UE está a perder o sinal dos tempos e a oportunidade da eleição de Trump para se corrigir e mudar de direção: em vez da guerra, só a cooperação com a Rússia e com os EUA pode tornar a Europa relevante no mapa do globo; doutro modo assiste-se a uma política passageira de fogo de vista.

Altivamente, os europeus criam nos meios de comunicação a impressão de quererem proteger a democracia americana de Trump. Mas a democracia americana é suficientemente forte para se defender de excessos. Os tempos são de tal ordem que por todo o lado há pré-anúncios de democratura em resposta aos resultados da má gerência partidária do bem público.

Na Alemanha, o movimento das “avozinhas contra a direita” lembra as categorias do tempo dos nazis.

A coexistência de verdade e mentira nas redes sociais e a manipulação da verdade pelos grandes meios de comunicação são sintomas de um problema mais amplo. Um estudo da Universidade de Mainz revelou que, embora a diversidade de temas na radiodifusão pública alemã seja alta, há uma leve inclinação à esquerda, refletindo a tendência geral do sistema europeu. (E isto constatado por uma instituição que é parte do regime).

De um lado do Atlântico parecem debater-se os imperialistas cognitivos progressistas e do outro lado, os imperialistas económicos conservadores.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Naturalmente quer o comportamento de Biden quer o de Trump neutralizam a voz da justiça que deviam respeitar. Mas nestas questões as elites arranjam subterfúgios próprios dos deuses do Olimpo.

Uma União Europeia empenhada no fomento da ideologia woke ao perseguir e difamar os próprios chefes de governo membros, como Giorgia Meloni da Itália e Víctor Orbán da Hungría, desqualifica-se a si mesma e falha a própria missão. O facto destes políticos se declararem pela tradição cristã da Europa nos seus países não deveria ser pretexto para que a imprensa europeia os declare como indignos.

DO QUE SE OUVE FALAR!

Família

Na discussão pública, é comum criticar-se a família, apontando-se que ela não vive de acordo com certos ideais e atribuindo-lhe a responsabilidade pelos males da sociedade.
Muitas vezes, pessoas mais simples – ou mesmo sem refletir profundamente sobre o tema – tendem a culpar os pais pelos problemas que ocorrem na sociedade, como se a responsabilidade pela educação fosse exclusiva deles.
Contudo, essa visão simplista ignora uma verdade essencial: a família é o espelho da sociedade.
Mas onde estão os ideais que deveriam nortear a sociedade como um todo? Educação, valores e comportamentos são moldados por uma complexa rede de influências que vai muito além do núcleo familiar.
O mundo é composto por aspectos positivos e negativos, presentes tanto nos indivíduos como nos diversos grupos sociais. Se adoptássemos uma abordagem mais objetiva, evitaríamos separar arbitrariamente o bem e o mal para atribuí-lo a uma única entidade ou grupo, como a família ou os pais.
O ditado diz que a culpa foi enjeitada! Importante seria mais diálogo, empatia e responsabilidade coletiva para entender que a transformação social começa pelo reconhecimento da interdependência entre família, escola, comunidade e todas as instituições que moldam a nossa sociedade. Embora seja lógico que os pais são os responsáveis directos e legítimos pela educação dos filhos, também é verdade que estes foram educados pelos pais e pela sociedade e com seus filhos acontece o mesmo.
Naturalmente não será de esquecer que „o peixe começa a cheirar mal pela cabeça”.
A família é ao mesmo tempo reflexo e responsabilidade compartilhada! Cada pessoa é ela mesma e as suas circunstâncias e o ideal seria que o eu (ipseidade) de cada pessoa se tornasse o supervisor das circunstâncias.
António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

AVÓS CONTRA A DIREITA

“AVÓS CONTRA A DIREITA”

 

A Esquerda carrega em si a margem extrema,

enquanto a Direita renega o seu abismo.

Na dança europeia, é quem conhece sua essência

que pisa firme, enquanto os que a negam tropeçam.

 

Urge que caminhemos com ambos os pés,

sem coxear nem à esquerda, nem à direita,

trilhando uma estrada onde a guerra se apague

e a paz floresça como a única bandeira.

 

Mas, enquanto o horizonte é sonho distante,

assistimos, perplexos, às “Avós contra a Direita”(1),

gritos cerrados em terras germânicas,

reforçando o desequilíbrio que persiste.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Na Alemanha o movimento “Avós contra a Direita” tem sido activado por organizações de esquerda e apoiado pelos actuais governantes. A acção coordenada baseada em slogans sem argumentação tem movimentado centenas de milhares de pessoas a favor dos governos/partidos que fomentam a guerra. Noutros tempos menos aguerridos assistia-se a movimentos semelhantes contra a guerra. Os Verdes que antes fomentavam uma política de paz são aqueles que hoje em postos do governo anunciam a guerra.

A Esquerda tem nela a esquerda da esquerda enquanto a Direita não tem nela a direita da direita. A sociedade europeia tem confirmado que quem estiver consciente do seu ser tem vantagem perante os que se envergonham dele! Importante seria chegarmos a caminhar com os dois pés sem mancar à esquerda nem à direita. Este objectivo só seria adquirido quando deixarmos a cultura da guerra para adoptarmos a cultura da paz! Até lá teremos de assistir às manifestações das “Avós contra a Direita” (como se observa na Alemanha)!

Seremos uma sociedade tanto mais culta e humana quanto mais grupos e pessoas de diferentes perfis forem integrados nela sem termos de nos definirmos na adversidade desumanizante de uns contra os outros.

CUIDADO: O MAL NÃO DORME

Concordância entre o Método religioso e o Método filosófico na Filtragem da Informação

Vivemos numa sociedade que confunde e divide, gerando desconfiança e incerteza. Neste contexto, torna-se essencial não aceitar nem transmitir informações sem antes as verificar cuidadosamente. Tanto a filosofia quanto o cristianismo enfatizam a importância de se estar alerta, seja nas relações pessoais, seja nas dinâmicas sociais, porque o mal não dorme.

Já no ano 50/51, o apóstolo Paulo advertia a igreja dos Tessalonicenses: “Examinai tudo e guardai o que é bom!” No cristianismo, o critério para este exame é a crença num Deus misericordioso, paciente e bondoso. A maneira como Deus lida com as pessoas deve servir de modelo para as nossas interações. Assim, se algo que é dito ou feito não reflete misericórdia ou paciência, já não revela boa vontade.

No entanto, a sociedade ainda está distante do ideal do bem, do verdadeiro e do belo e manifestando-se nela muitas forças e vozes em luta contra esse ideal. É neste ponto que o método filosófico também pode contribuir. Sócrates, no século V a.C., apresentou o método das três peneiras como ferramenta para filtrar a informação: Verdade – O que vou dizer é verdadeiro? Bondade – É algo bom?  Necessidade – É realmente necessário dizer?

Quando um amigo quis advertir Sócrates sobre comentários depreciativos a seu respeito, o filósofo fez-lhe essas perguntas. Incapaz de responder afirmativamente a qualquer delas, o amigo baixou a cabeça, envergonhado. Sócrates, então, concluiu com um sorriso: “Se não é verdadeiro, nem bom, nem necessário, deixe que isso seja esquecido e não se sobrecarregue a si nem a mim.”

Este ensinamento ecoa no cristianismo e na filosofia, ambos oferecendo exemplos inspiradores de fidelidade à verdade e ao bem comum. Jesus Cristo e Sócrates, cada um no seu contexto, viveram e morreram por esses princípios. Sócrates foi condenado à morte com um cálice de cicuta por desafiar os padrões políticos e culturais da sua época; no aspecto histórico, também Jesus Cristo foi crucificado por não se enquadrar nos esquemas políticos e religiosos do seu tempo.

Até no momento da morte, os dois ensinaram algo sublime:

Jesus: “Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem.”

Sócrates: “Rezemos aos deuses para que a nossa vida na terra seja feliz e, após a morte, continue a sê-lo.”

Esses exemplos mostram como as opiniões, muitas vezes demasiado formatadas pela educação e pela informação que recebemos, dificultam discernir quem realmente somos e o quanto somos moldados pelas circunstâncias. Além disso, opiniões baseadas exclusivamente na razão costumam ignorar as complexidades da vida.

Num mundo em que a confusão predomina, a harmonia entre os métodos religioso e filosófico é um chamamento à lucidez: Examinar tudo, filtrar pelo que é verdadeiro, bom e necessário, e preservar apenas o que conduz ao bem pessoal e ao bem comum num espírito de benevolência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

O RIO E A ALMA PERDIDA

Havia um tempo em que o rio corria livre, serpenteando vales e montanhas com a graça de um dançarino ao som de uma música suave e delicada imbuída da ternura de Bach. Nesse tempo, a sua água clara refletia o azul do céu, as copas das árvores e era lar de libelinhas, peixes e passarinhos que enchiam o meio envolvente com cantos e cores. As pessoas vinham até ele, deixavam as roupas nas margens, mergulhavam nas suas águas, colecionavam pedrinhas e pescavam trutas que se escondiam sob rochas cintilantes. O rio era mais que um caudal de água; era um confidente, um retrato da natureza e, em muitos aspectos, um espelho da alma humana.

Mas o tempo foi passando, e as mãos humanas interferiram no curso do rio. O que antes era uma dança despreocupada transformou-se em algo contido, forçado. Barragens ergueram-se como muralhas, prendendo a correnteza, apagando curvas e lagos que, um dia, haviam sido refúgio de vida. Várzeas inteiras desapareceram sob as águas turvas, junto com os telhados de casas e memórias que antes respiravam esperança. O rio, agora engolido pela represa, não se reconhecia mais a si mesmo. Suas águas estagnadas refletiam tristeza, e o seu murmúrio tornou-se num lamento que se fazia sentir no subir da bruma cinzenta.

Uma noite, sentado à beira do rio transformado, ouvi seu desabafo. Ele falou-me de sua dor, de como sentia saudades de ser livre, de carregar folhas, galhos e sonhos em seu percurso até ao mar. Compartilhei da sua tristeza, pois em sua transformação eu via um reflexo do que acontecia à humanidade. Assim como o rio, as pessoas também haviam perdido a sua essência, a sua alma.

Convidei o rio para dividirmos o mesmo travesseiro de memórias. Fechamos os olhos juntos, tentando reviver um tempo em que sonhos individuais tinham espaço para florescer, livres das imposições de uma sociedade massificada e sob o controlo de forças estranhas. O rio contou-me que seu destino não foi escolha sua, assim como a alma humana não escolhe ser moldada por forças que a afastam de sua natureza autêntica. Ele lamentava como a sua água havia sido canalizada para um propósito impessoal, reduzida a uma fórmula de H2O que sustentava uma civilização sem alma.

“E os humanos?”, perguntou-me o rio, depois de uma pausa de silêncio. “Vocês também estão presos em barragens invisíveis, perdendo a identidade ao serem agrupados em massas. Antes, cada um de vós era como um cristal único e brilhante; agora sois apenas parte de um fluxo amorfo. Ninguém ouve mais o murmúrio de sua própria alma, apenas ouve e segue o eco da corrente dominante.”

Eu nada respondi, pois sabia que o rio estava certo. Olhei para o céu, buscando uma resposta que não veio. As águas calmas da represa refletiam estrelas, mas era uma calmaria que escondia uma verdade inquietante. Como o rio, também me sentia preso, não mais um indivíduo, mas parte de uma massa que se movia ao sabor dos ventos anónimos.

 

Naquela noite, prometi ao rio que guardaria suas memórias e suas lágrimas. Decidi que não deixaria minha alma ser submersa pelo lago da conformidade. Talvez, como o rio, eu pudesse encontrar um caminho de volta à liberdade, mesmo que apenas em sonhos, ou numa de troca de saudade transcendente que salda a dor da humanidade no colo da natureza.

E assim adormecemos, o rio e eu, com a esperança de que, um dia, tanto as águas como as almas reencontrariam o seu curso verdadeiro.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A NATUREZA E O HOMEM SOFREM DA EROSÃO DO SEU CARACTER NA MASSA

Todos nós, natureza e humanos, caminhamos ao longo do riacho do espaço e do tempo seguindo um chamamento para nos erguermos e definirmos.

O meu amigo rio que antes se espreguiçava por meio de vales e montanhas e onde cada um podia nadar e divertir-se colecionando pedrinhas e pescando trutas escondidas debaixo das pedras e admirar os sedimentos que embelezavam o fundo do rio, ameaça perder o próprio caracter, o vigor e a vida que a natureza lhe proporcionou.  O meu rio no seu percurso espelhava as árvores e era o encanto de libelas e passarinhos e o seu rumorejar é como um duche de alma; um encanto antes de se unir a outros rios até chegar ao mar.

Há dias o meu rio queixou-se aos meus pés que se sente mal porque já  não é o mesmo porque o que  fizeram dele soa como uma insónia onde ecoam lamentações de recordações de uma realidade que não volta mais:  das suas curvas, e pequenos lagos do seu leito que foram profanados com barragens que o engoliram dissolvendo-o no grande ventre represa onde as águas se juntam para ficarem paradas encobrindo vales vivos e até telhados de casas, onde outrora a vida também fervilhava envolvida nas ondas de esperanças abertas. Como é triste e sem vida ver a vivacidade individual do rio transformada na quietude de uma barragem de águas turvas e impedidas.

Eu nesta noite chorei com o rio porque nele via em sintonia o destino da alma humana na alma do confidente rio. Então eu consolava o rio convidando-o a dormirmos com a cabeça juntos no mesmo travesseiro e assim não apagarmos os sonhos de outrora que eram próprios individuais, e ao mesmo tempo comuns e abertos quer na natureza quer no humano. Forças alheias não aceitaram a vida natural como ela é e ao domesticá-la secaram-lhe a alma. A minha alma, na alma do rio ficou estagnada murchando a sua esperança porque a essência da água foi canalizada em levadas de betão. Esta água desanimada passou a ser a artificialidade de uma fórmula H2O desencarnada ao serviço de pessoas berberescas com alma de massa sem individualidade. As pessoas, tal como a água da barragem, vegetam na generalidade da corrente principal, já não são elas passaram reduzir-se à voz do fluxo da corrente humana, sendo só eco vazio mais nada. Agora que as águas cristalinas do rio foram obrigadas a viver nas águas turvas da represa, verifico também eu que já não me entendem porque me vejo a viver já não na qualidade de indivíduo, mas como mera voz de grupo. Agora tal como o rio que não se sente como rio, mas como mera massa de águas, prevê-se o destino de um humano que deixa de ser ele próprio.

As ventanias da anonimidade funcionam como ciclones de um viver no entremeio numa tensão de alta e baixa pressão sem espaço próprio. Nos finais do século passado apressou-se o processo de despersonalização e a desculturalização. Já não temos personalidade, nem nome, nem identidade para passarmos a ser a desaparecer na anonimidade do grupo ou agrupamento ordenado em fascista, comunista, religioso, ateu. A massificação domina elites da política e até da arte e da literatura que passaram a ordenar as pessoas em grupos simbólicos. Assim passamos a ter uma sociedade massa, um rebanho anónimo com pastores anónimos que vivem da massa.

Hoje pensa-se não no indivíduo como pessoa, mas como figura dentro de um grupo. O que move o discurso e as ondas da sociedade não é a pessoa nem o seu fundamento, mas apenas o comércio a acontecer e incorporado no socialismo e no capitalismo. A resolução dos problemas humanos e sociais não se situa já no espaço do indivíduo nem da dignidade humana passando a acontecer no vácuo da anonimidade conflitual entre ideias e opiniões.

O rio da humanidade encontra-se num falso percurso dado a confiança e a esperança só se situarem nos corações humanos individuais, na alma individual. Encontramo-nos todos como o rio extinto nas águas do lago a tornar-nos a voz das correntes (mainstream) com um coração de massa. Quando chegará o tempo de acordarmos? O rio confidenciou-me dizendo, “talvez numa noite astral, em que nós lhe prometamos caminhar com ele juntando as suas memórias e as suas lágrimas às nossas”. Decidi que não deixaria minha alma ser submersa pelo lago da conformidade. Talvez, como o rio, eu pudesse encontrar um caminho de volta à liberdade, mesmo que apenas em sonhos, ou numa de troca de saudade transcendente que salda a dor da humanidade no colo da natureza.

António da Cunha Duarte Justo