O Ritual das Cinzas – Um Conto sobre Memória e Hipocrisia

No frio cinzento da manhã, o vento cortava os campos vastos de Auschwitz-Birkenau. As folhas mortas sussurravam ao serem arrastadas pelo chão, lembrando ecos das vozes um dia ali silenciadas. Era 27 de janeiro, o 80º aniversário da libertação do campo. Os preparativos estavam em curso, e os políticos, com suas comitivas elegantes, começavam a ocupar as cadeiras dispostas em frente ao portão marcado com a infame inscrição “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”).

Na alameda ao fundo, dois homens caminhavam demoradamente. O primeiro, um sobrevivente octogenário de Auschwitz, chamado Samuel, carregava o peso da memória nos frágeis ombros. O segundo, seu neto David, um jornalista jovem e céptico, estava ali mais por insistência do avô do que por convicção. A troca de gerações entre eles era evidente: Samuel era um guardião do passado, enquanto David era um questionador do presente.

– “Vês isso, David?” – disse Samuel, apontando para o palco central onde líderes mundiais ajustavam gravatas e sorrisos. – “Chamam a isto homenagem. Olha para eles. Cabeças inclinadas, frases ensaiadas, discursos sobre ‘nunca mais’. E depois voltam para a sua rotina de reuniões e diferentes guerras.”

David, ciente da indignação do avô, respondeu olhando para o ar:

– “Mas não é importante relembrar? Estas cerimónias não servem para evitar que o mundo esqueça?”

Samuel parou, encarando o neto com olhos que carregavam a profundidade de oito décadas.

– “Relembrar não é o problema. Problema é o que fazemos com essa lembrança. A memória sem acção é como uma vela acesa ao vento: bonita, mas inútil. Olha para o palco. Quem falta lá?”

David hesitou, mas depois de esticar o olhar respondeu:

– “Os russos…”

Samuel anuiu.

– “Foi o Exército Vermelho que nos libertou. Aqueles soldados soviéticos, muitos deles pouco mais velhos do que tu, enfrentaram as balas para poderem abrir os portões deste inferno. E hoje, não foram convidados, porquê? Porque agora são nossos ‘inimigos’.” Ele fez aspas com os dedos no ar. “Até a gratidão, parece ser vítima da política.”

David ficou em silêncio. Era verdade. A ausência russa no evento era um elefante invisível no meio da cerimónia. Depois de alguns instantes, perguntou:

– “Mas, avô, a Rússia de hoje não é a mesma de 1945. Há razões políticas…”

Samuel interrompeu-o, afirmando mais a sua voz.

– “Razões políticas… Sempre há razões, David. Foram as razões políticas que fizeram o mundo ignorar o genocídio enquanto ele acontecia. Foram as razões políticas que tornaram as pessoas cegas enquanto os seus vizinhos desapareciam. Foram razoes políticas que nos colocaram no estado em que agora nos encontramos.  Razões não justificam a ingratidão.”

Enquanto os dois caminhavam já mais perto do palco, o som acomodado das vozes oficiais preenchia o ar frio. O rei britânico Charles III fazia uma pausa dramática no seu discurso, enquanto o chanceler alemão Olaf Scholz olhava solenemente para o horizonte. Samuel e David pararam ao lado de outros sobreviventes, muitos deles tão frágeis como ele, sentados em cadeiras de rodas ou apoiados em bengalas. Cada um carregava memórias como se fossem cicatrizes invisíveis do tempo.

– “Olha para eles, David. Estão aqui para discursar, mas esquecem que Auschwitz não foi apenas um crime alemão. Foi um crime humano. E hoje, com os seus jogos de poder, continuam a alimentar a ideia de que os culpados são sempre os outros. A cumplicidade entre governantes e governados torna-se suficiente para justificar a culpabilidade dos outros. Deste modo é mais fácil dormir à noite.”

David sentiu um desconforto crescente. As palavras do avô penetravam como um espinho na sua consciência. Olhou demoradamente à sua volta. Sobreviventes com lágrimas discretas, jovens em silêncio respeitoso, mas também câmaras, flashes e discursos cuidadosamente preparados.

– “Mas o que podemos fazer? Não podemos mudar a política global, avô.”

Samuel suspirou profundamente.

– “Eu não espero que mudes o mundo. Só espero que vejas para além do teatro. Auschwitz não é um lugar para dividir, mas para unir. E o que eles fazem aqui é usá-lo como palco para os seus próprios interesses divisionistas e ao não convidarem o russo abusam do evento para colocarem a culpa só nele.”

No palco, o presidente francês Emmanuel Macron começou a falar sobre o crescimento do antissemitismo na Europa. As suas palavras, embora corretas, soavam como ecos frios vindos da distância. Samuel virou-se para o neto e murmurou:

– “Eles falam de antissemitismo, mas permanecem calados enquanto novos ódios crescem. Judeus, refugiados… as vítimas mudam, mas a indiferença permanece. Que aprendemos, afinal?”

David, pela primeira vez, sentiu o peso do que o avô queria dizer. A memória de Auschwitz não era apenas sobre o passado. Era um espelho cruel do presente. Ele olhou para Samuel e disse:

– “Então o que fazemos, avô? Como mudamos isso?”

Samuel sorriu, um sorriso amarelo, mas cheio de significado.

– “Lembra-te, David. Mas lembra-te de verdade. Não deixes que a memória seja apenas um ritual vazio. Questiona, fala, escreve. E nunca deixes que a política decida quem merece ser lembrado.”

No final do evento, enquanto os líderes mundiais trocavam cortesias, cumprimentos e flashes continuavam a piscar, Samuel e David caminharam em silêncio até ao portão de saída. Lá, Samuel parou e olhou para trás, para o campo que um dia fora a sua prisão, e disse ao neto:

– “A verdadeira homenagem não está no palco, David. Está aqui. Nos fantasmas que nunca sairão deste lugar. Certifica-te de que eles não sejam esquecidos – por ninguém. Que a chama  da memória e do sentimento brilhe pelo mundo!”

E, com isso, eles deixaram Auschwitz, levando consigo não apenas memórias, mas a responsabilidade de lutar contra a indiferença – esteja ela onde estiver.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Sonnya em Diálogo com a Verdade

Era uma tarde cinzenta quando Sonnya, exausta de tentar entender o mundo, se sentou à beira de um rio imaginário. Ela não sabia como, mas sentia que ali algo extraordinário aconteceria. Foi então que uma figura translúcida, com uma presença ao mesmo tempo reconfortante e inquietante, surgiu. Chamava-se Verdade.

Sonnya: Quem és tu?

Verdade: Eu sou a Verdade. Mas não a que pensas conhecer. Sou a busca que todos têm, mas poucos entendem.

Sonnya franziu as sobrancelhas. Sentia na mente as ideias em correria e baralhadas, mas, ao mesmo tempo, um certo fascínio.

Sonnya: Então diz-me, por que é tão difícil encontrar-te? Encontro-me perdida num labirinto de informações contraditórias, cada uma dizendo ser tu.

Verdade: Porque não sou mais o que costumava ser. Houve um tempo em que a minha essência era procurada em coisas concretas, como estrelas no céu ou raízes no chão. Agora, cada um cria a sua versão de mim, e chamam a isso liberdade.

Sonnya: Liberdade? Isso parece mais uma prisão. Tudo é tão relativo que não sei mais em que acreditar. Como posso encontrar clareza?

Verdade: Para entenderes, precisas de ouvir como as coisas chegaram a este ponto. Imagina que cada indivíduo ou grupo criou a sua “verdade”. Isso começou com a ideia de que a experiência de cada um tinha valor, algo que era justo. Mas sem um critério para avaliar essas experiências, as “verdades” multiplicaram-se como folhas ao vento.

Sonnya: Então… agora vivemos num mundo de folhas, mas sem raízes?

Verdade: Exatamente. Vê o que acontece: se todos têm a sua “verdade”, ninguém pode dizer o que é certo ou errado; isso também se vê na luta partidária. Não há terreno comum para resolver discordâncias. Nos debates éticos, científicos ou sociais, tudo se torna uma batalha de opiniões e quem é mais forte impõe a sua.

Sonnya olhou para o rio como que a refugiar-se nas águas turvas que refletiam a sua confusão.

Sonnya: Isso explica o caos. Mas por que é que isso chegou a este ponto e foi permitido?

Verdade: Em parte, porque os poderosos perceberam que podiam usar isso em seu favor. Dividindo as pessoas em “verdades” particulares (opiniões), é mais fácil controlá-las, o mesmo se dando com a verdade dividida por partidos. Quem detém os meios de comunicação e quem manipula os algoritmos nas redes sociais molda as “verdades” a seu gosto. O primeiro passo dado para isso foi a propagação do niilismo, que transformou a fé numa crença que faz de cada pessoa um fictício superego que rota em torno da mente.

Sonnya: Então, a liberdade de expressão transformou-se numa ferramenta de opressão?

Verdade: Sim, quando não acompanhada de responsabilidade e de um critério para distinguir o que é real do que é manipulado.

Sonnya sentiu um peso no peito, um peso do tamanho da Europa e da Rússia ao mesmo tempo.

Sonnya: Mas e a ciência? Não era para ela ser o farol da verdade?

Verdade: A ciência é um farol, mas também ela tem sido obscurecida por interesses. O seu objetivo é buscar o que é verificável, mas, nas mãos erradas, os seus resultados podem ser distorcidos para atender a agendas específicas, não contando já com os interesses e tendências de quem a subsidia.

Sonnya sentiu-se como se lhe tivessem dado um soco no estômago e começou a chorar.

Sonnya: Isso é desesperante. Estamos condenados a viver assim?

Verdade: Não. Há uma saída, mas ela exige hombridade e coragem. Primeiro, é preciso reconhecer que não sou algo que se possa possuir, mas algo que se deve buscar continuamente, numa perspectiva  de ser e não de ter. Sou uma jornada universal, que não se perde num destino prisioneiro da ocasião nem do tempo.

Sonnya olhou para o horizonte. Sentiu uma lembrança brotar dentro de si, algo que havia aprendido na catequese, mas que se perdera com o tempo. Então murmurou:

Sonnya: Na catequese, ensinaram-me que a Verdade não é apenas alguma coisa para ser encontrada fora de si mesmo, mas alguém que se encontra dentro… Jesus. Ele dizia que estava no interior de cada um de nós, mas, passado algum tempo e uma vida com muitos emaranhados tudo se perdeu. Ficou apenas a vaga ideia do homem honrado que viveu na Galileia e uma escondida saudade de ele.

A Verdade sorriu, como se aquelas palavras fossem um eco do que ela mesma era.

Verdade: Não te esqueças, Sonnya, que palavras ajudam, mas são apenas sinais. O que realmente importa é a atitude. O modo como olhas para a vida e como tratas os outros. Talvez aquilo que na vida real praticas!

Sonnya sentiu algo a aquecer o seu coração. Era como se, finalmente, tivesse encontrado um fio condutor, algo que fazia sentido.

Sonnya: Então… a Verdade é uma atitude?

Verdade: Sim. É bonomia, generosidade, compaixão, encontro. Essas são as raízes que podem sustentar as folhas da tua busca. Jesus sabia disso. Ele não dizia apenas “Eu sou a Verdade”, mas vivia a Verdade. Trata-se de ouvir a voz do coração no mais íntimo de ti mesma porque a voz da mente cada vez se torna mais na voz de senhores externos.

Sonnya levantou-se, sentindo-se como que levada por asas de passarinho. Não porque todas as respostas tivessem sido dadas, mas porque agora entendia que a busca da Verdade era, em si mesma, uma forma de viver com propósito.

Sonnya: Obrigada, Verdade. Não sei se posso mudar o mundo, mas posso mudar-me a mim mesma.

Verdade: E ao fazeres isso, já começaste a mudar o mundo que se encontra tão inacabado como tu.

A verdade evaporou-se como uma brisa suave e Sonnya regressou à vida aliviada e com um novo compromisso: procurar sempre a luz dentro de si e partilhá-la com o próximo; de facto, a vida autêntica só pode ser alcançada através de escolhas pessoais numa relação direta com a voz de Deus, ouvida longe de ideologias e opiniões sistémicas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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AVÓS CONTRA A DIREITA

“AVÓS CONTRA A DIREITA”

 

A Esquerda carrega em si a margem extrema,

enquanto a Direita renega o seu abismo.

Na dança europeia, é quem conhece sua essência

que pisa firme, enquanto os que a negam tropeçam.

 

Urge que caminhemos com ambos os pés,

sem coxear nem à esquerda, nem à direita,

trilhando uma estrada onde a guerra se apague

e a paz floresça como a única bandeira.

 

Mas, enquanto o horizonte é sonho distante,

assistimos, perplexos, às “Avós contra a Direita”(1),

gritos cerrados em terras germânicas,

reforçando o desequilíbrio que persiste.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Na Alemanha o movimento “Avós contra a Direita” tem sido activado por organizações de esquerda e apoiado pelos actuais governantes. A acção coordenada baseada em slogans sem argumentação tem movimentado centenas de milhares de pessoas a favor dos governos/partidos que fomentam a guerra. Noutros tempos menos aguerridos assistia-se a movimentos semelhantes contra a guerra. Os Verdes que antes fomentavam uma política de paz são aqueles que hoje em postos do governo anunciam a guerra.

A Esquerda tem nela a esquerda da esquerda enquanto a Direita não tem nela a direita da direita. A sociedade europeia tem confirmado que quem estiver consciente do seu ser tem vantagem perante os que se envergonham dele! Importante seria chegarmos a caminhar com os dois pés sem mancar à esquerda nem à direita. Este objectivo só seria adquirido quando deixarmos a cultura da guerra para adoptarmos a cultura da paz! Até lá teremos de assistir às manifestações das “Avós contra a Direita” (como se observa na Alemanha)!

Seremos uma sociedade tanto mais culta e humana quanto mais grupos e pessoas de diferentes perfis forem integrados nela sem termos de nos definirmos na adversidade desumanizante de uns contra os outros.

O REGRESSO DO NETO AO LAR DO AVÔ

Na quietude da tarde, entre o perfume da lenha queimada e o sonido dos pássaros distantes, o neto Daniel entrou no quintal da casa do avô Joaquim. Fazia já anos desde a sua última visita. O velho Joaquim, de mãos calejadas e olhos de horizonte vasto, aguardava-o sentado no alpendre, esculpindo um pequeno pedaço de madeira.

— Avô, voltei. — disse o neto, hesitante, como se o peso das palavras fosse maior do que a própria presença.

O avô ergueu os olhos com um sorriso que misturava surpresa e uma sabedoria ancestral como o mundo.

— Voltas sempre ao que nunca te deixou, Daniel. Senta-te. Conta-me o que te trouxe de volta.

O neto hesitou, mas sentou-se num tronco que esperava por ser cinzelado. Começou a contar da vida na cidade, das corridas intermináveis atrás de sonhos que se desmanchavam como a fumaraça que saía do tronco fumegante. Falou da confusão que sentia entre o que acreditava e o que via.

— Avô, vi mundo e às vezes sinto que estamos todos num barco que mete água, mas ninguém sabe como o reparar. Pessoas debatendo-se por ser melhores que outras, ateus brigando com religiosos, políticos em luta pelo poder, todos perdendo-se em certezas que são só pedras no sapato da caminhada. E eu sinto-me amachucado e perdido no meio disso tudo.

O avô Joaquim pousou o bocado de madeira e encarou o neto com o olhar de quem vê mais do que ouve.

— Sabes, rapaz, a vida é como este quintal. Tem terra, flores, ervas daninhas, árvores que crescem para o alto e raízes que se entrelaçam no subsolo escuro. Cada um pensa que só o que está à vista importa, mas é lá em baixo, no que não se vê, que está a força.

— E o que fazemos quando nem sabemos onde estamos? — perguntou o neto, com a aflição de quem busca uma bússola.

O avô suspirou, cruzando os dedos envelhecidos.

— Quando Deus perguntou a Adão “Onde estás?”, não foi porque Ele não sabia. Foi para que Adão e nele a humanidade se situasse. Meu neto Daniel, a pergunta continua ecoando na humanidade e em cada um, sem importar se és crente, ateu ou agnóstico. O importante é que respondas honestamente a ti mesmo. Sabes, a vida, com as suas pernas e caminhos, não pede certezas, mas abertura.

O neto abaixou a cabeça, como quem tenta absorver as palavras. E o avô continuou, com a serenidade de quem já viu muitas estações.

— O erro de muitos, meu caro Daniel, é pensar que a razão é o barco e não o remo. A razão ajuda a navegar, mas é o amor — e o mistério que o sustenta — que mantém o barco à tona. Fé, esperança, caridade e dúvidas são os ventos que nos movem. E todos estamos nesse mesmo oceano, procurando um porto que aponte para o eterno.

Daniel sorriu pela primeira vez. Sentia que, apesar de não ter respostas, encontrava um ponto de partida.

— Então, avô Joaquim, o que é o sentido da vida?

O velho levantou-se com esforço e apontou para o céu, onde o sol se punha em tons de ouro e púrpura.

— Vês aquilo no horizonte? A beleza não está só na luz, mas no encontro dela com a noite. O sentido da vida é relação. Estar em relação com, em relação nos outros, com o mundo, com o inefável, contigo mesmo. A vida é dar e receber, um modo de estar em relação pura como mostrou Cristo. Não precisamos de respostas para viver bem. Só precisamos de aceitar o convite de Deus, mesmo sem entendê-lo completamente. Afinal, somos todos peregrinos, não donos do caminho.

O neto ficou em silêncio, contemplando o céu, de coração mais leve. Naquele momento, percebeu que não precisava de resolver todos os mistérios da vida. Bastava viver a pergunta, na vivência de um passo de cada vez.

E o velho, com um sorriso sábio, voltou à sua madeira, esculpindo uma figura que só ele sabia o que viria a ser — tal como a vida.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

e em  Poesia de António Justo http://poesiajusto.blogspot.com/

A JORNADA DA ESTRELA

Em tempos antigos, quando as pessoas ainda buscavam preferencialmente o sentido profundo da existência, viviam reis que não se contentavam com o brilho dourado de seus palácios nem com os segredos das constelações. Esses reis, conhecidos como os Magos, ansiavam por algo maior – uma verdade que transcendesse reinos e explicasse os mistérios do coração humano.

Uma noite, enquanto observavam o céu, uma estrela incomum despontou no horizonte. Seu brilho não era apenas luminoso; levava consigo um chamamento que ressoava no íntimo das almas. Belchior, Baltazar e Gaspar entenderam que aquela estrela não era apenas um sinal celeste, mas um convite para uma jornada espiritual. Assim, partiram, guiados pelo seu fulgor.

Enquanto percorriam desertos e montanhas, florestas e vales, algo extraordinário aconteceu: pessoas de todas as partes do mundo começaram a juntar-se à caminhada. Era como se a luz daquela estrela falasse a todos, independentemente de sua cultura, credo ou história. Unidos pelo desejo de encontrar a fonte daquele brilho, tornaram-se uma única humanidade em busca de algo maior.

Os Magos chegaram a Jerusalém, onde procuraram o rei Herodes. Perguntaram onde poderiam encontrar o recém-nascido “rei dos judeus”. Herodes, temeroso de perder seu poder, consultou os seus sábios e indicou-lhes Belém, mas pediu que voltassem para informá-lo sobre a criança. Contudo, os Magos perceberam que o coração de Herodes estava repleto de medo e ganância – qualidades que não poderiam coexistir com a verdade que buscavam.

Ao seguirem novamente a estrela, ela os levou até uma humilde gruta em Belém. Lá, encontraram não um palácio, mas um presépio. Entre o feno, um menino recém-nascido brilhava com uma luz que não era deste mundo. Nos olhos daquela criança, os reis viram refletida a essência da dignidade humana, um aviso de que cada pessoa, em sua simplicidade, carrega uma centelha divina que a torna soberana.

Os Magos ofereceram seus presentes: ouro, simbolizando realeza e fé; incenso, representando a ligação entre o humano e o divino; e mirra, um símbolo da transitoriedade da vida e da eternidade que habita além dela. Mas seus presentes eram mais do que tributos – eram um gesto de entrega à humanidade. Ao lançar seus tesouros no regaço do Deus Menino, proclamaram que a verdadeira riqueza está no amor e na busca da verdade.

Não voltaram pelo caminho de Herodes. Em vez disso, seguiram novos caminhos, conduzidos pela luz que agora brilhava em seus próprios corações. A estrela, que antes parecia distante no céu, agora habitava dentro deles, como um chamamento eterno de que o divino e o humano se podem encontrar em qualquer pessoa disposta a acolhê-lo.

O presépio é mais do que uma cena de um momento histórico. Transformou-se num símbolo universal do encontro entre o céu e a terra, entre o Oriente e o Ocidente, entre o sagrado e o humano. Na gruta de Belém, a estrela não apenas guiou os Magos, mas iluminou o caminho para todos os povos, chamando cada um a olhar para dentro de si e redescobrir a luz que sempre esteve ali.

E assim, a caminhada dos Magos continua em cada um de nós. A estrela brilha ainda, convidando-nos a seguir o chamamento – não para longe, mas para o mais íntimo de nossos próprios corações, onde repousa a essência da nossa dignidade e da nossa humanidade. Aí, na distância do barulho da estrada, poderemos descobrir a nossa caminhada para o próprio Belém, o coração  da humanidade onde o menino Jesus se abriga.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo