O FÓSFORO DA IDEIA

A Natureza do Conhecimento

O entendimento não começa com a certeza, mas com uma faísca.
Antes de qualquer verdade se estabelecer, antes de qualquer opinião se formar, há um instante quase imperceptível: o momento em que algo raspa na mente e provoca inquietação. É aí que o conhecimento começa, não como chama plena, mas como fósforo por acender.

Podemos imaginar o processo de compreensão como o acender de um fósforo dentro da cabeça. O gesto inicial é simples, humilde e exige intenção: raspar a cabeça do fósforo contra a caixa. Este raspar é o pensamento, o questionamento, a atenção dirigida. Sem ele, nada acontece. Não há luz, nem calor, nem caminho iluminado.

Pensar, mesmo sem compreender tudo, é um acto precioso. Vivemos frequentemente sob a ilusão de que só vale a pena pensar quando já se alcança a clareza total. No entanto, o “não entender completamente” não é um fracasso: é, muitas vezes, o início do verdadeiro entendimento. Essa primeira ardência, humilde, discreta e até incerta, é o começo da iluminação. A simplicidade do gesto contém já a possibilidade da profundidade.

Da Verdade Exterior à Experiência Interior

Uma ideia pode existir durante anos fora de nós, como um objecto distante, sem que nos transforme. O conhecimento verdadeiro nasce quando uma verdade deixa de ser apenas um conceito exterior e passa a tornar-se experiência interior. Esse momento é de fricção. Algo toca a mente, raspa, incomoda, provoca tensão e daí surge a faísca. Por isso pensar faz doer!

Sem fricção não há ignição. Ideias circulam à nossa volta como pólen ao vento. Muitas nunca encontram um cérebro-gineceu onde possam pousar, germinar e frutificar. Passamos por elas como borboletas de flor em flor, sem consciência de que poderíamos ser abelhas portadoras de vida, responsáveis por prolongar o sentido e não apenas por tocar superfícies.

Ficar “pelo menos a pensar” é já um gesto decisivo. A cabeça que raspa contra o mistério cumpre o primeiro acto essencial do conhecimento. O pensamento não precisa, nesse momento, de resolver tudo. Precisa apenas de estar acordado.

As Etapas do Entendimento

O processo do entendimento segue uma ordem quase orgânica:

Primeiro pensamos; aqui a mente questiona, hesita, procura.

Depois somos tocados; este é o momento em que o coração começa a reconhecer o sentido.

Por fim somos transformados; aqui chega o momento em que o corpo inteiro se orienta para a ação.

A compreensão plena não é apenas intelectual; é existencial. Quando a chama desce da cabeça ao coração, o conhecimento deixa de ser informação e torna-se orientação. Passa a aquecer, a mover, a comprometer.

Para que isso aconteça, é necessário um estado interior particular: abertura, acolhimento e vigilância serena. Uma atenção que observa sem se deixar enredar, que regista sem se perder, que permanece desperta ao novo, ao inesperado que chega para nos transformar.

Essa vigilância não é passividade, mas preparação activa. É uma atitude espiritual e psicológica profunda: a capacidade de esperar no escuro, de escutar sinais interiores, de não se deixar adormecer pela distração constante nem pelo ruído do mundo. Tornar-se sentinela de si mesmo é talvez uma das tarefas mais urgentes da consciência contemporânea e da consciência individual no momento em que o Zeitgeist quer fazer das pessoas meros egos, meras peças de uma máquina anónima.

Parábola do Conhecimento inspirada na Caverna de Platão: A Sala das Sombras

Conta-se que um grupo de pessoas nasceu e viveu toda a vida numa grande sala circular, iluminada apenas por uma fogueira no centro. À volta da fogueira passavam, invisíveis, objectos e figuras que projectavam sombras nas paredes. As pessoas aprenderam a nomear essas sombras, a discuti-las, a discordar sobre elas e até a lutar por saber qual sombra era a verdadeira.

Um dia, uma das pessoas começou a sentir desconforto. As sombras já não lhe bastavam. Algo lhe raspava a mente. Sem saber porquê, aproximou-se da fogueira e sentiu o calor directo pela primeira vez. Doeu. A luz cegou-a. Durante algum tempo pensou que tinha cometido um erro. Apesar disso persistiu.

Ao sair da sala, descobriu o mundo exterior. Percebeu então que as sombras eram apenas reflexos imperfeitos de algo maior. Quando voltou para contar aos outros, muitos não acreditaram. As sombras continuavam claras demais para serem postas em causa.

Aquele que saiu não trouxe certezas absolutas, trouxe consciência. E compreendeu que o conhecimento não nasce da comodidade da sombra, mas da coragem de raspar o fósforo, suportar a luz incerta e permitir que a chama transforme não apenas o pensamento, mas todo o ser.

António da Cunha Duarte Justo

Nota do Autor

O mundo não se transforma quando nos oferecem a luz, mas quando aceitamos o desconforto de a procurar.

As sombras não são o problema; o perigo está em nunca as questionar. Toda a verdade começa como inquietação, como um fósforo ainda por acender que pede apenas atenção e coragem.

Pensar, mesmo sem compreender tudo é já sair da caverna.
A faísca nasce na cabeça, arde no coração e só se torna verdadeira quando aquece o corpo inteiro e o move à ação.

Por isso, ninguém ilumina o caminho de outro por completo. Cada ser humano tem de raspar o seu próprio fósforo contra a caixa da realidade e aceitar que, no início, a luz fere antes de esclarecer. Mas é essa breve dor que nos salva da longa noite da ilusão. Processo igual dá-se no acto da mãe que dá à luz!

Pegadas do Tempo

BALADA DO CAMINHO NEVADO

Batem leve, levemente (1),
flocos do eterno natal.
Como memória da gente
que vem do fundo invernal.
São iguais e são diferentes,
em espiral atemporal.

A neve cai sobre o trilho
que o limpa-neve traçou.
E o tempo é um longo respiro,
que o vento em nós segredou.
E o meu rosto, tem marca de exílio,
o Norte que ali ficou.

Nele a estrada branca se alonga,
de Belém até ao umbral.
Em cada mãe há uma longa
espera de luz eternal.
Maria é a gruta e a esponja
do amor que é mãe universal.

Acendem-se quatro velas
contra a escuridão do ser.
São as semanas que selas
no advento do teu viver.
Não nasce em templos, nem em celas,
mas no chão que é teu dever.

Abrem-se as portas do dia,
calendário do porvir.
A esperança que guia
o passo do teu seguir.
Na noite que desfia,
teu caminho é persistir.

Oh, viajante que passas
e vês na neve o rumor:
as pegadas são as pausas
que lavram o teu interior.
A mesma estrada que arrasas
te leva ao mesmo amor.

Batem leve, levemente,
como quem chama por ti.
É o advento da semente
no ventre que a trouxe aqui.
Na gruta do peito, dormente,
a neve cai sobre mim.

E assim seguimos na dança
dos flocos, iguais e mil,
na sagrada semelhança
do que é eterno e febril.
A neve é a nossa herança
e o caminho, o seu redil.

António da Cunha Duarte Justo

(1) Nota do Autor

Este poema é, antes de tudo, uma homenagem a Augusto Gil e à sua “Balada da Neve”, que desde a infância se me gravou no espírito como um legado de assombro e nostalgia. O verso “Batem leve, levemente, / como quem chama por mim…” tornou-se para mim um acompanhante fiel, um eco que transcende o cenário invernal para ressoar na solidão e na expectativa humana.

No meu texto, procurei manter esse eco rítmico, transpondo-o para o contexto do Advento. Aqui, a caminhada da criança sob a neve transforma-se numa caminhada ativa da alma humana  em espera. A repetição das estações, do ritual, do próprio verso, não é estagnação, mas um aprofundamento em espiral: cada volta aproxima-nos do essencial. O destino final não é apenas o presépio de Belém, mas o Belém Celestial, arquétipo da Esperança que nos permite abrandar os andares dolorosos da existência.

Assim, este poema busca acentuar a dimensão espiritual e existencial da peregrinação que cada um de nós e o mundo consigo e connosco, está sempre a empreender.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

CORO DOS MARINHEIROS EXTRAVIADOS

Os novos Argonautas, em naus de vidro e aço,
Não buscam o Velocino de Ouro, mas o seu próprio regaço.
No Palácio de Cristal, erguido em pantomimas,
Tecem a mortalha com fios de velhas rimas.

A Europa, outrora farol, hoje farolejo,
Dança a valsa do poder num cadafalso alheio.
“Paz!” gritam, brandindo espadas contra o Leste,
Enquanto nos salões, o business é celeste.
A arrogância, seu estandarte, há muito desbotado,
Contra um “mal” inventado, um fantasma desenhado
Nos mapas do desejo de um novo colonialismo:
Da mente ao capital, o seu único catecismo.

Oh, Rússia! Gigante adormecido na neve,
Que a Europa, com desdém, já não tece nem bebe.
Fecham-se as portas à Dourada Migração,
À troca de almas, à vasta confluência.
Preferem a linguagem gutural do obus,
Ao diálogo de Tolstoi e de Dostoievski.
É o velho reflexo, o vício imperial,
Que vê no outro um campo, nunca um igual.

Bruxelas, ó Torre de Babel financeira,
Onde o povo é estatística, matéria bruta e passageira.
Os teus arquitetos, doutores em quimeras,
Cozeram esta sopa nas panelas das esferas.
A Alemanha, Fénix de guerras passadas,
Sonha, no fogo alheio, ver as asas reabilitadas.
E os sócios periféricos, na ribalta da margem,
Assinem, a tinta verde, o seu próprio naufrágio.

É a guerra das elites, este circo medonho,
Onde o palhaço trágico é o povo, a quem eles sonham.
Enquanto Kiev arde, e o Donbas se entrincheira,
Os senhores do medo lucram na carreira.
O povo português, o grego, o italiano,
Enganado com pão, com o circo do longínquo afã.
“Pela Liberdade!” berram os cómicos do sistema,
Enquanto a fome cresce, e a vida se torna um poema
De versos sem rima, de estrofes ao deus-dará,
Enquanto o complexo militar-industrial canta ópera.

E eu, voz dissonante neste coro de sereias,
Sou o persona non grata, o que partilha as areias
Da praia proibida do contraditório.
Noventa por cento dos arautos, num delírio,
Repetem, num mantra, a única verdade:
A da guerra santa, da eterna hostilidade.
Ironia das ironias, este uníssono berrar,
Chamam-lhe “pluralismo”, eu chamo-lhe afogar.

Não à espiral suicida! Grito eu para os ventos.
Contra os doutrinadores, os novos instrumentos
De um império caduco que, em agonia,
Prefere a pira funerária à clara luz do dia.
Não sou “pró-russo”, sou pró-Humanidade,
Contra a vassalagem, a hipócrita falsidade.
O meu crime é lembrar que a Pátria é o povo,
E não este cadáver, podre e novo,
Que, vestido de glória, num sono letárgico,
Mata o futuro no altar do seu tráfico.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Abril 2025

A PAZ E AS TRÊS LANTERNAS

Metáfora sobre o silêncio, a arte, o saber e o valor das pessoas simples

 

Diz-se que a Paz caminhava por um vale antigo levando uma lanterna apagada.

As pessoas olhavam-na e pensavam que ela já tinha luz suficiente, pois o seu próprio silêncio iluminava o ambiente. Mas a Paz sabia que aquilo era apenas penumbra, uma luz fraca que não revelava os contornos das coisas.

Cansada de tropeçar no escuro, decidiu procurar quem pudesse ajudá-la a acender a sua lanterna.

 

A primeira chama foi a Arte

No sopé de uma montanha encontrou a Arte, que pintava o vento com pincéis invisíveis.

A Arte tocou a lanterna da Paz e acendeu nela uma chama azulada.

“Agora tens brilho”, disse ela.

“A minha luz não mostra caminhos, mas desperta sentimentos. Ela faz as pessoas verem o mundo com outros olhos.”

E era verdade: por onde a Paz passava, a chama azul tingia tudo com beleza.

Mas a chama oscilava demasiado. À menor rajada de conflito, sentia-se insegura e tremia.

 

A segunda chama foi o Saber

A Paz continuou a caminhada e encontrou o Saber sentado junto a uma velha ponte, enrolado em livros e mapas.

“A tua chama é bonita, mas instável”, disse o Saber.

“Deixa-me oferecer-te outra.”

E soprou sobre a lanterna da Paz, acendendo nela uma segunda chama, dourada que era firme, clara, quase como o Sol.

“A minha luz ajuda a ver as causas das sombras. Mostra os caminhos, mesmo os que a Arte não sabe nomear.”

A Paz agradeceu, mas perguntou:

“E os que não sabem ler mapas nem se ocupam com livros de muito saber? E os que vivem do que a terra dá e só querem passar o dia sem temores? Não os cegará tanta luz?”

O Saber sorriu benevolente:

“A luz não exige que todos falem sobre tudo. Apenas ilumina para que ninguém se perca. Quem quiser ver verá; quem preferir caminhar devagar terá sempre a sua dignidade intacta.

 

A terceira chama foi o Silêncio

A Paz seguiu viagem e encontrou o Silêncio junto a um lago parado.

Era discreto, quase invisível, mas ao aproximar-se, a Paz sentiu uma calma profunda.

“Tenho também uma chama para ti”, disse o Silêncio.

E acendeu na lanterna uma pequena brasa branca.

“A minha luz não se vê; sente-se. É o espaço entre as palavras, onde as pessoas simples se recolhem quando o mundo fala demais. Sou o abrigo para quem teme dizer tolices, para quem se sente esmagado por debates que não compreende ou porque simplesmente gosta de ouvir. Sou prudência e prudência também é inteligência.

Então a Paz compreendeu algo essencial: cada chama tinha a prudência e a sua medida.

A Arte iluminava o coração.

O Saber iluminava o entendimento.

O Silêncio iluminava a prudência e a dignidade dos mais simples.

Mas nenhuma das três, sozinha, bastava.

 

A aldeia da grande luz

Quando a Paz voltou ao vale com a lanterna de três chamas, aconteceu algo extraordinário.

As aldeias foram-se iluminando gradualmente: Os artistas viam melhor o mundo e criavam com mais responsabilidade; os sábios falavam com mais humildade e as pessoas simples já não se sentiam diminuídas, porque perceberam que o seu silêncio não era ignorância, mas um modo legítimo de viver! E assim todos descobriram que só se cresce quando se escuta: escuta-se a arte, o saber e até o silêncio alheio.

A lanterna da Paz tornou-se, então, uma metáfora viva: uma luz feita de três chamas que se equilibram mutuamente, coração, razão e prudência.

E assim, onde quer que ela ande, deixa agora não um silêncio vazio, mas uma luz completa: uma luz onde cada pessoa, instruída ou simples, pode caminhar com dignidade, sem se sentir menor e sem diminuir ninguém.

De facto, a sabedoria não se mede pela altura a que se sobe, mas pela dignidade com que se caminha ao nível de todos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

SINFONIA DO SER NO LIMIAR

 

Levo no peito o influxo das marés,
O vaivém de um oceano interior,
Onde as ondas, em ritmos siderais,
Cristalizam a espuma em pensamento.

É o rugido do mar eternidade?
É um aplauso? Um pranto sussurrado?
Véu sonoro sobre a imensidão,
Que se desfaz em nuvens do tempo.

Meu corpo é um manifesto, memória antiga
Escrita do universo na sua evolução.
Painel de carne, cósmica liturgia
No cérebro, seu passageiro reduto.

E dessa escrita, vozes que se espalham,
Ecoando nos calcanhares da cidade,
Fragmentos de um mistério que se entalham
Na fugacidade da humanidade.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo