OS RISCOS DO CRENTE AD HOC COM UMA IDENTIDADE INTERNET

A Caminho de um Estado Polícia e de uma Sociedade de Monopólios?

Por António Justo

Portugal pioneiro na Aplicação digital

Os dados biométricos dos bilhetes de identidade, encontram-se especialmente desprotegidos em Portugal por reunirem no Cartão do Cidadão o número de identificação civil, os dados de acesso à conta de saúde e os dados da Repartição de Finanças. Estes dados podem ainda ser complementados pela ligação da conta bancária às finanças, reunindo assim os pressupostos para a realização de um Estado Polícia.

O indivíduo ao ver o Bilhete de Identidade substituído pelo Cartão do Cidadão, com a possibilidade de interconexão dos dados, passa a ter uma outra plataforma de identidade de caracter meramente funcional. Portugal encontra-se a nível técnico na vanguarda da Europa dando a impressão de ser a cobaia para posteriores aplicações nos outros países da União Europeia que recolhem dados mas de maneira mais discreta devido à discussão crítica e pública do cidadão.

A Microfísica do Poder

O tecto metafísico que tem regulado as normas de comportamento da sociedade ocidental revela-se demasiado exigente para uma sociedade de vida ad hoc. À regulamentação religiosa segue-se a regulamentação política que tenta, em nome de valores convencionados, criar um tecto legislativo e uma rede digital que proteja a sociedade dos abusos da liberdade individual. À medida que o autocontrolo ético e moral de caracter espiritual se esvai, aumenta o controlo externo do foro penal estatal. A desresponsabilização e a despersonalização em via levam o indivíduo a prescindir de elementos de identificação baseados em deidades e em espiritualidades para centrar a sua acção numa ética da concorrência de luta livre pela vida. Passa-se do homo faber que vivia do trabalho com o suor do seu rosto para o homo economicus liberto da culpa mas subjugado à dívida. Nesta sociedade de transição, o homo economicus prescindirá, ocasionalmente, de muitos dos elementos de identidade porque o âmago da sua alma se encontra identificado no Chip (microplaqueta) do Cartão Multibanco.

No Cartão do cidadão e na conta Google encontra-se já simbolizada a “microfísica do poder”.

A Multipersonalidade de Pessoa e as Identidades digitais

Quem viajava nos mundos de Fernando Pessoa encontrava-se já no âmago da era da transição hoje em via. O magnífico poeta futurista Fernando Pessoa procede ao desdobramento do “eu” fazendo-o corresponder a diferentes identidades. Ele confirma: “Multipliquei-me para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo,… E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente…”

Fernando Pessoa, um vate para iniciados, é a expressão da fé moderna que exercita cedo o alargamento da sua Identidade nos Heterónimos e que hoje se constata no originar-se de identidades digitais. A internet torna-se como na continuação da sua literatura.

A transmissão e circulação de dados possibilitam também, a nível individual (User) a criação de “identidades digitais”. O User (utilizador) na qualidade de receptor e emissor, tal como acontece em literatura, pode proceder ao alargamento da sua imagem. O mesmo indivíduo cria diferentes papéis e personagens à imagem de Fernando Pessoa com os seus heterónimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos) que apontam para a pós-modernidade. A Rede (Net) pressupõe a possibilidade de criar novos perfis ou de modificar uma sua imagem já existente.

Os instrumentos digitais facilitam a melhor acomodação ao ambiente e possibilitam uma formação mais abrangente com aprendizagens mais rápidas e a formação de um pensar mais diversificado. Tudo isto tem as suas consequências na formação de uma nova identidade. Esta mover-se-á mais entre virtualidade e realidade entre aldeia e mundo, criando a ilusão da identificação de indivíduo-casa-aldeia-mundo com um outro estilo de vida e uma nova convivência. Da aldeia o usuário, através da janela do seu computador, tem a sensação não só de ter o mundo em casa como também a intuição de ser mundo. A sua individualidade acompanha as linhas do seu horizonte que se desloca no sentido global.

A autopromoção digital através da rede acontece num surfar (“Surfing”) que faz lembrar um discurso literário com diferentes metáforas e jogos que dão asas à fantasia e criam a ilusão de descorporização e da ampliação dos próprios contornos na construção de uma nova identidade que se encontra em processo entre o virtual e o real. À deslocação do foco do Horizonte segue-se a deslocação (“glocalização”) das próprias periferias, criando-se novos espaços virtuais, numa imitação da realidade a que se segue a criação de uma nova realidade.

Investigações no campo dos jogos virtuais e de outras potencialidades da Internet chegam à conclusão que o utilizador (User) cria em si uma certa anonimidade através da ausência do corpo, de apelidos (Nicknames), de confraternizações no jogo, da possibilidade de mudar de género e da comunicação com todo o mundo. Isto cria nele uma vivência especial e a formação de um novo desenho da própria ipseidade. A nova personalidade torna-se dependente do real e do virtual e a percepção do real e do virtual passa a resultar da dependência da interação da noção de virtualidade e de realidade.

A obcecação pela tecnologia e pela digitalização

A obsessão pela tecnologia e pela digitalização de tudo torna fatal o optimismo do progresso pelo facto de querer realizar tudo o que seja possível, como se vê na doutrina do centro do poder do séc. XXI em acção a partir do Silicon Valley. A experiência milenária mostra que à concentração do poder se segue o abuso de poder. O objectivo de se querer um mundo melhor não justifica o uso de todos os meios e, para mais, quando os seus líderes não aceitam correctivos e não se importam com as infraestruturas da sociedade e da pessoa. Precisa-se da fomentação de um sistema em que as pessoas participem, de maneira a resolverem os verdadeiros problemas da natureza (ecologia) e da humanidade (paz, amor e justiça).

De facto o que se encontra no centro dos interesses é o dinheiro e o poder; a mudança da sociedade e do mundo acontece como aspecto colateral ou por acréscimo. Assim, o progresso não pode tornar-se num regresso à imaturidade. Aqui põe-se a questão de quem fomenta e quem controla.

Vivemos num período de transição em que também a controvérsia se torna produtiva. Dave Eggers resume no seu livro “The Circle” os aspectos negativos da sociedade virtual preocupada em se encaixar no sistema e para melhor realizar o seu papel perde de vista o que realmente está a acontecer em todos os sectores da sociedade. As fábricas do pensamento criam realidades de facto como as do Vale do Silício (Google,etc.) e só passados tempos se reflecte sobre a situação criada e eventuais problemas a ela ligados. Como comentadores encontramo-nos numa luta perene atrás da desgraça e do medo mas com a satisfação de o fazer para que não haja tantas vítimas do silêncio. Conscientes de que o centro dos interesses é o dinheiro e o poder, importa com o nosso contributo não contribuir para o ruído seja ele em termos de crítica ou de aplauso, de que tão bem tem vivido o mundo do poder e do dinheiro rindo-se da caravana barulhenta que passa enquanto eles ficam.

O romance “The Circle” de Dave Eggers, adverte para a visão de uma sociedade-Internet; nela a virtualização global e a transparência exigidas por organizações globais contradiz a liberdade e a dignidade do cidadão. A IT (Vale do Silício), segundo a visão pessimista do romance, quer dotar cada um e toda a população com uma única identidade: a identidade de transparência Internet que facilita o controlo global. O “Círculo” é uma superpotência Internet, maior e mais radical que todas as empresas até agora existentes. O círculo, como coleccionador de dados pessoais, servindo-se da transparência e da rede sabe mais sobre um indivíduo que ele mesmo.

O busílis da questão, na procura de uma solução que dê continuidade ao progresso e ao mesmo tempo se preserve a dignidade da pessoa, situa-se no facto da cedência dos próprios dados proporcionar benefícios aos que os cedem mesmo com o risco de se abusar deles. O marketing digital usa e abusa das técnicas psicológicas de Pavlov que constam de incentivos e recompensas: se quero ter acesso a uma página de internet, o irmãozão Google só me permite tal gosto se deixar lá os meus dados pessoais. Prémio e castigo constituem os fatores do triunfo do marketing digital.

É porém consolador saber que o futuro continua a depender de cada pessoa e que esta não pode ser reduzida à consciência que tem do tempo.

O preço que todos estamos a pagar por tantas facilidades é a liberdade do indivíduo, o direito à comunidade e a opção de não ter de fazer o que outros querem. A alta tecnologia do Vale do Silício determina o futuro sem que a política se pronuncie sobre ela e o cidadão pensa que pensa ao falar dos defeitos e das virtudes dela, quando com isso, se não interfere, segue é os interesses dela.

Consequentemente haverá que dar mais valor ao entendimento de que a privacidade é um direito humano inalienável.
Sigo a reflexão no próximo artigo “NA FÁBRICA DAS DÍVIDAS E DA CULTURA CORPORATIVA”
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
In Pegadas do Tempo www.antonio-justo.eu

Social:
Pin Share

Social:

Publicado por

António da Cunha Duarte Justo

Actividades jornalísticas em foque: análise social, ética, política e religiosa

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *