O eco do outro possibilita o meu falar
António Justo
O ser do ser é relação. Esta relação dá-se duma forma imanente e transcendente, tomando a sua melhor expressão na fórmula trinitária. A Trindade (Eu-tu-nós), a Realidade toda, revela-se como relação de forma protótipo na sua relação criador – criatura e criatura – espírito. Nela se manifesta o nosso ser processo de condicionados e condicionantes, de mundo e espírito. A aspiração a uma autonomia isolada revela-se mais como desgaste na relação. Ao contrário, uma autonomia trinitária integra a realização na solidariedade. A experiência do dia a dia revela-se interdependência. O pressuposto, de “ser de” e de “ser para os outros”, fomenta um sentimento de agradecimento, alegria e confiança no outro que é pressentido já não como impedimento mas como realidade fomentadora do eu no nós. As necessidades individuais passam então a ganhar uma nova perspectiva. O projecto de vida traçado é participativo e participante e a sorte é comum. Abertos à relação mudamo-nos e moldamo-nos continuamente.
O outro torna-se o meu chamamento que me leva a descobrir-me nele. A partir de mim falo e a partir do outro ouço-me. O eco do outro possibilita o meu falar. A exigência dum tu ouvida dá hipótese ao outro e faz de mim a sua possibilidade. Aí eu ganho-me e reconheço que sou mais que eu mesmo. Descubro-me como filho da solidariedade. O ser do outro está presente no meu agir; a partir daí começa a acontecer a construção do nós. Aqui já não há só posições ou objectivos a atingir, não é apenas uma força externa que me guia ou puxa. Descobre-se um chamamento comum na responsabilidade não só ética mas constitutiva do nosso ser comum de condicionados na resposta a dar, já não só, por um tu mas por um nós realizado no amor. Solidariedade é o nosso destino.
Irmanados na solidariedade de “ser no” e no “ser para o outro” poderemos chegar a ter de aguentar o momento do abandono e até mesmo o momento de ameaça do outro. Nele se esconde também a chance do meu tornar-me, do meu devir! “Pai, afasta de mim este cálice”, apesar de tudo “em tuas mãos encomendo o meu espírito”. Não quero abandonar-me aos sentimentos que me separam do todo, que me separam da relação. A chamada do Amor não permite a minha retirada, não me deixa evitá-lo. É mais forte o que nos une: o amor teleológico e existencial. Ele é o suporte de tudo e leva a suportar o processo doloroso da relação eu-tu num contínuo gerar e ser dado à luz.
A solidariedade é solidariedade para e não solidariedade contra. Dela surge a mudança não do outro ou de mim, mas do nós em processo criador aberto. Somos processo aberto ao infinito. A entrega na cruz pressupôs o silêncio de Deus. Doutro modo poderia não passar dum auto-engano, dum enganar o outro, duma solidariedade falsa, presa em mim mesmo. Então passo a ver já não com os meus olhos, mas com os teus olhos em mim. Aí sou aceite e aceito, aí me vejo, eu e tu, nos vemos, ao mesmo tempo, no mesmo espelho. Em ti me gero e tu me trazes e me dás à luz. Contigo sei quem sou!… Também eu me torno o chamamento que te interpela no nosso caminhar. Se, neste andar, tu és um pé para mim, eu sou o outro pé para ti. Estou consciente da minha entrega na nossa aventura comum. Unidos vemos juntos, com os olhos de Deus para nos realizarmos na comunidade de vida com ele, a nossa realização completa. O chamamento divino humaniza-nos e conduz-nos à divindade através da solidariedade. Este dá coesão à fidelidade que provém da confiança no outro, na realização comum. A caminhada é árdua e por vezes sombria. O sol do perdão ajuda a clarear os buracos negros do outro, também em mim sentidos. Então de amor movido, no reconhecimento, e não por interesse, dou o primeiro passo e com ele avanço facultando a oportunidade à verdadeira solidariedade. Trata-se de ver as coisas já não duma perspectiva, mas de uma forma aperspectiva, ou seja, de todas as perspectivas. Da conexão trinitária não chega já o simples diálogo (não só através da palavra) mas um triálogo que tem como modelo as três pessoas e das quais estamos processualmente a tornarmo-nos uma. Através do Pai somos irmãos, somos todos um. A isto estamos chamados, crentes e ateus!
António da Cunha Duarte Justo
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