Problemas nas Relações são Momentos de Desenvolvimento
António Justo
Uma pessoa, tal como o seu carácter, é mais que a soma dos seus detalhes psicológicos. Ao dizermos ou sentirmos o nosso eu referimo-nos a algo definido como se fosse um produto, algo já acabado e não um processo na realização do ser. O meu eu inclui-me a mim e às minhas circunstâncias. Estas são eu, tu, o outro, o universo e o mistério. A nossa personalidade é formada por um eu profundo integral e por um eu superficial parcial, ou seja um eu luz e um eu treva. O ego é a sombra do eu integral; é como que a sua crusta, a parte opaca da transparência, a sombra duma realidade, mais ou menos oculta, a tudo conectada.
No ego predominam as forças centrípetas enquanto no eu integral reina a harmonia dum universo de forças ordenadas. A relação acontece na tensão entre um eu e um tu para se realizar no nós. No nosso trajecto vivemos a fugir da anonimidade duma massa despersonalizada para através do eu personalizado voltarmos à comunidade dum nós pessoal. É a luta das cores por se diferenciarem do verde da natura para poderem brotar na flor. Somos com e no universo, todo o mundo, a caminho, na procura do “Sol”, num mesmo sistema interligado pelas mesmas leis.
Ao sermos projectados do útero da mãe inicia-se o processo da individuação. No grito original iniciamos uma nova relação com órbitra própria a firmar-se numa nova constelação. Ao ser-nos cortado o cordão umbilical, abandonamos o paraíso na procura de identidade. Começa a marcha a caminho do eu no sentido de realizarmos a ipseidade no todo. Primeiro de gatas, depois amparado e por fim só. Quanto ao desenvolvimento psicológico esse torna-se mais demorado e complicado. Como na natureza nem toda a planta chega a dar flor, o que não torna o seu verde menos esplendoroso. Vale a pena o esforço de ver para lá dele.
O desenvolvimento pressupõe um processo dialéctico exterior numa realidade que ultrapassa a dialéctica (afirmação-contradição, tese-antítese ou a mera síntese). A afirmação da parte contra a parte e deste modo o reagir e a distanciação contra o todo provoca a dor insatisfeita. Doutro modo a fricção do eu no tu seria integrada no desenvolvimento não se cristalizando na dor (culpa, medo). O movimento de separação e aproximação, tal como as ondas e as marés, não são mais que o pulsar do coração com os seus impulsos e pausas, como a alegria e a tristeza, o entusiasmo e a frustração; são momentos duma mesma realidade que nos envolve, define e determina.
A separação que se dá no desenvolvimento cumula na razão, onde o mundo deixa de ser uno como antes (Árvore da sabedoria no paraíso!). Aqui surge o perigo de o intelecto se autonomizar e criar um mundo “ideal” à margem da realidade com forças que não se deixam reduzir a meras leis. Com a caminhada da razão, que agora se acentua, dá-se um processo de diferenciação, de distinção entre um eu e um tu; em função da individuação afirma-se um sujeito contra um objecto, que na realidade, é sujeito numa dinâmica de complementaridade; a dialéctica leva o outro a ser tornado provisoriamente casulo para, assim, o eu se tornar sujeito. O sujeito, ao atingir o seu verdadeiro desenvolvimento, deveria passar a ver o resto da realidade como sujeito e relacionar-se de maneira a reconhecer-lhe tal dignidade (como parte dela/e). (O espírito incarna na matéria e a matéria ganha asas próprias para voar, tal como procura demonstrar o mistério da incarnação e ressurreição e a Trindade realiza). Ao encontrarmo-nos todos num processo de transformação já não tentaremos destruir ou modificar o outro: a minha mudança já provoca a mudança do outro porque a transformação pressupõe relação, relação pessoal mesmo com o mundo inadequadamente considerado “coisa”. Trata-se de superar um pensar unidimensional só com lugar para a parte geométrica da vida, de superar o jogo das escondidas no nicho do intelecto.
Os distúrbios, de que todos sofremos como adultos, provêm dum mundo do pensamento paralelo, criado à margem da realidade orgânica e aos “traumas” que acompanharam o nosso desenvolvimento desde a criança infantil até ao estado de infantil adulto. A princípio agarrados às saias da mãe esperamos dela o amor simbiótico que nos mantinha a ela unidos no seu ventre, o paraíso terreal (muitas vezes a luta posterior não passa duma tentativa por restabelecer o estado simbiótico original: é a luta errada por se satisfazer a “culpa” do “pecado” original). Tal união, porém, não permitiria o desenvolvimento da própria identidade passando, naturalmente, a acentuar-se as forças centrífugas para depois culminarem na ressaca das forças centrípetas (egocêntricas). Segue-se então um caminho de experiências mais ou menos agradáveis, mais ou menos traumáticas que nos levam a andar pelo próprio pé ou a andar agarrados às eternas muletas de situações irreflectidas. A experiência individual cria frustrações e gratificações que mais tarde se podem revelar em sentimento de culpa, em sentimento de inferioridade/superioridade que depois será reafirmado pela vida fora num rescrito comportamental de arrogância ou de timidez. Nesta fase dominam os monólogos interiores e arrazoamentos que não permitem uma descrição adequada da realidade própria nem dos outros. Como não nos encontramos a nós mesmos continuamos a reduzir o outro à qualidade de objecto a ser assimilado ou a ser repelido. Muitos agarram-se desesperadamente ao pescoço da vida na fuga contra o vazio, contra a solidão. Procuram fora o que já se encontra dentro. As muletas das ideias revelam-se depois como poluidoras de paisagens emocionais interiores. É a fase da vida em canteiros de jardim infantil ou no jogo do gato e do rato.
Na infância a harmonia é procurada na mãe enquanto na fase adulta se procura na fusão de dois (polos) sujeitos, na “união conjugal”. Aqui encontram-se, a nível psicológico e comportamental, forças contraditórias em ebulição à semelhança do que se dá no desenvolvimento do universo com a sua formação de galáxias e de sistemas como o sistema solar, num jogo de forças que procuram o equilíbrio para depois seguiram o chamamento que pressupõe um novo desequilíbrio; este mantem a ordem viva num sistema de universos a caminho. Egocentrismo (movimento de rotação em torno de si mesmo) e altrocentrismo (movimento de translação em torno do outro) tornam-se condicionantes duma realidade maior. O amor que envolve os dois provoca o movimento aparentemente contraditório. A fixação extrema no ego ou no outro fecha os olhos para a felicidade (equilíbrio), para o amor, fixando-a no amor-próprio, na própria necessidade sem contemplar o sistema. O ego procura então não o outro mas a própria felicidade no outro contradizendo assim a felicidade, que é relação, o momento de equilíbrio (de esquecimento) que já traz em si o momento de desequilíbrio que provoca o desenvolvimento, a vida e não a estagnação. A vida que engloba o outro e a mim a caminho duma maior grandeza. A força centrípeta, o egoísmo exige uma relação de subalternos, quer ter, não quer ser, (ou confunde o ter com o ser) faz de todos seus satélites desprezando a realidade de que também os astros pertencem a estrelas e estas a galáxias, ao serviço duma realização maior. Cada um, tal como o universo, está chamado a seguir um chamamento; encontramo-nos todos a caminho do mistério na realização do amor, que é a energia que mantem todo o ser e todo o universo, unindo o que parece contraditório.
A necessidade do amor infantil (amor necessidade) domina as relações que se tornam por isso insatisfatórias. Cada um, criança traída, acusa no outro, sem saber, a sua mãe que o não acariciou suficientemente ou o considerou apenas seu satélite. Em vez de cada um se assumir aceitando as dores do parto de si mesmo (em processo) deixa-se dominar pelos fantasmas do passado sem reconhecer a realidade das forças próprias e ambientais na sua interdependência e complementaridade. Pior ainda: projecta no outro as próprias deficiências querendo torna-lo a mãe que não teve. Nesta dinâmica, mendigos do amor tornam outros mendigos também. Cada um gira em torno de si mesmo querendo criar os outros à sua imagem e semelhança.
Num processo de desenvolvimento para a maturidade (a nível dos dois) deverá criar-se um espaço para se fazerem as pazes com os “traidores” da infância para que estes não nos atraiçoem no outro. Isto deve ser naturalmente integrado em movimentos consecutivos de ensombramento de si mesmo e de luminosidade do outro e vice-versa; o mesmo se dá de forma inconsciente no ciclo do dia e da noite que pressupõe o reconhecimento da existência dos outros astros na realidade do nós (indivíduos e comunidade). Nesta realidade sentiremos e integraremos em nós não só a desejada acalmia primaveril e veraneia mas também as ventanias outonais que purificarão o nosso ser da folhagem impeditiva da próxima fase de desenvolvimento no sentido do todo.
Na constelação relacional do desenvolvimento também se encontram meteoritos isolados que vivem apenas o sexo à margem do acto criador de interacção. Esta pressupõe amor e este pressupõe a dor, resultada da tensão entre o eu e o outro. A dor é o momento de desequilíbrio que possibilita a evolução. Fugir à dor é negar-se, é negar o outro em si e negar-se a si no outro; não basta procurar, porque o sentido é encontrar-se, encontrar-se como universo a dar à luz. A vida inconsciente, além de viver na fuga e da fuga, luta continuamente com o destino. Falta-lhe a coragem para a felicidade e abdica permanecendo na contradição; esta pode, no máximo, produzir o gozo da fricção mas não a felicidade. Para o egoísta a culpa está nos outros, ele prefere ver a vida passar-lhe ao lado como os vinhateiros atrasados da parábola. Mas também o altruísmo pode ser um egoísmo escondido ou indício dum eu fraco (debilitado). Manter o equilíbrio da balança é a tarefa da vida da pessoa e do universo sempre em movimento.
Eu e tu, os dois somos três a caminho do nós. Eu e tu com o universo numa relação amorosa não dialéctica encontramo-nos num processo de interdependência e afirmação mútua; encontramo-nos todos ao serviço uns dos outros, no seguimento duma força maior: o amor. O momento dialéctico (contradição) é apenas o instante do desequilíbrio num processo maior pendular de desequilíbrio para o equilíbrio, do equilíbrio para o desequilíbrio na realização dum equilíbrio maior. Aqui já não há um com razão e o outro sem ela, agora já não há um perfeito e outro imperfeito, um culpado e o outro inocente. Aqui o intelecto e o coração unem-se para possibilitarem uma visão global integral: a vida toda na própria vida e não uma vida em segunda mão.
Deixa então de haver a autonomia do astro rei e a dependência do satélite para na complementaridade se desenvolver uma nova identidade, a identidade do nós no eu criativo e criador. A felicidade realiza-se em comunidade (Filho pródigo). Somos filhos do amor, fomos feitos de graça para vivermos na graça do amor. Como filhos da terra tornamo-nos no sol da natureza agradecida a abençoar. Resta-nos o agradecimento e a paciência. Somos novos mundos a criar um novo mundo, não podemos prar nem abdicar de nós mesmos nem dos outros.
Para criarmos uma nova maneira de estar no mundo, uma nova maneira de nos relacionarmos nele e com ele teremos de criar uma nova relação amorosa com o outro na realidade do nós numa dinâmica identitária processual do eu-tu-nós: uma relação já não só de diálogo mas de triálogo, à maneira da incarnação e ressurreição numa relação pessoal trinitária na unidade do eu-tu-nós.
António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e pedagogo
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