Aprender a Ser
Ao ar poluído da atmosfera que respiramos vem juntar-se o stress miudinho que imperceptivelmente inalamos da sociedade moderna.
Desde o irritante vizinho até aos problemas de trabalho, tudo se acarreta para casa. Uma vez em casa lá está o barulho da rua na televisão à nossa espera, além doutros barulhos. Uma pessoa que se distraia e não seja sensível e resistente facilmente perderá a visão de conjunto deixando-se enredar nas teias da loucura diária. Mais um ruído a juntar ao barulho no desencontro do dia a dia.
Muitos dos problemas da relação de casais são importados ou também trabalhos de casa da vida individual deixados por fazer. O stress importado e as influências exteriores fazem-se sentir. Ao barulho de fundo do existir junta-se por vezes o ruído familiar!
Para ajudar aparecem ainda situações que podem levar mesmo a uma grande crise: uma mudança, um novo lugar de trabalho, uma doença, um objectivo alcançado, a reforma, etc. Tudo isto nos pode questionar sobre o sentido da vida até então vivida.
Para enredar mais a meada, vem juntar-se o facto de hoje não haver projectos de vida nem papéis de comportamento fixos. Isto exigiria maior capacidade reflexiva para se não andar à deriva ou não seguir na enxurrada. Tudo isto exige do casal um esforço especial, um contínuo balançar e ponderar entre desejos e planos individuais e comuns, na prática dum dar e receber mútuos.
O stress leva muitas vezes aquele processo a encurtar-se e em vez de se discutir e negociar apenas se resiste ao outro. Já não se age, reage-se: “És insuportável!” Então a própria insatisfação vital é imputada ao cônjuge: “Fazes de mim um escravo!” Em vez de se considerarem as circunstâncias exteriores e individuais específicas “resolve-se” o problema atribuindo-o ao outro. Este é então enroupado com más intenções e com toda a categoria de qualidades negativas. Passa a falar o inconsciente da criança ferida e desiludida que tudo tinha apostado no outro!…
A vida familiar passa a ser uma estrada cada vez mais minada. A capacidade de reconhecer conexões e contextos chega mesmo a zero. Os dois cônjuges descobrem-se vítimas um do outro. A saturação impede a capacidade de ver que também o outro é vítima. Duas vítima de si mesmos!…
Uma predisposição para partilhar o bem e o mal comum e próprio simplificaria quer a caminhada comum, quer uma decisão de cada um recomeçar nova vida por caminhos diferentes. As crises de casais, tal como as trovoadas na natureza, servem para purificar a poluição, todo o smog atmosférico, existencial e psíquico. As crises são oportunidades para o desenvolvimento. A natureza é assim. Crises, tal como doenças são a voz do inconsciente a avisar que algo não vai bem, que é tempo de mudar algo na vida não chegando seguir a ordem do dia.
Há pouco tempo tive um contacto esporádico com um casal (duas pessoas individualmente fantásticas e ricas), que se encontrava numa grande crise. Isto leva-me a fazer esta leve e rápida reflexão no sentido do meu interesse por eles e por quantos vivem em circunstâncias iguais ou parecidas. Resolvi escrever em vez de falar porque notei que, tanto um como outro, têm grande dificuldade em ouvir-se e em escutar atendendo a energias e frustrações acumuladas. Penso que também na relação entre si poderiam, para já, optar por cada um escrever ao outro tudo o que o perturba: os ferimentos e as frustrações bem como os desejos escondidos ou não realizados. Escrevam também o que admiram um no outro não deixando de fazer também referência às próprias mazelas.
Neste caso, como em muitos outros, o drama conjugal parece-me esconder, a nível inconsciente, a continuação da luta entre as mães do marido e da esposa, a luta invisível entre duas famílias, a luta entre o meu ego e a minha ipseidade. A mãe está presente e ocupa cada um sob a capa do eu. Um cônjuge encarna em si a mãe procurando-a na esposa, o outro conjugue encarna também ele a própria mãe repetindo o agir da sua mãe contra o cônjuge. Os dois encontram-se prisioneiros do inconsciente tendo de continuar a fazer valer a própria família sem possibilidade de serem eles mesmos, reduzidos a mercenários duma armada estranha. Vêem-se obrigados e reduzidos a um papel de repetição ou superação da mãe mas para que falta o alcance e a visão dos motivos mais profundos do próprio agir. Na reflexão e introspecção que acompanha toda a pessoa interessada em tornar-se adulta é de importância cada pessoa analisar-se e verificar a percentagem de mãe, de pai e de si mesmo expressa no comportamento individual. Até que ponto no meu actuar o meu comportamento não se reduz a um combate ou a uma repetição do pai e da mãe. Até que ponto sou eu a agir e não os outros em mim. Só então poderei realmente mudar no sentido da plenitude. Então reconhecerei que o problema está principalmente em mim. Só depois de me aceitar e de aceitar as minhas circunstâncias crescerei e ajudarei outros a crescer. Geralmente o que combato nos outros é o que ainda não descobri em mim. Depois passo a vingar-me de mim mesmo em mim. Sou destruído, agora por mim, à sombra da “consolação” duma acusação.
Separação – Uma Chance?
Segundo investigações científicas as pessoas casadas vivem mais tempo que as não casadas. Entretanto por volta dos 40-50 anos observam-se muitas crises em muitos lares. Os filhos já estão criados e também a pergunta pelo sentido da vida se torna agora mais oportuna.
A vida em comum não é fácil atendendo às diferentes estruturas de personalidade. Além disso a mulher e o homem, embora se complementem, são seres muito diferentes na sua maneira de estar. Por outro lado o indivíduo só, isolado, sem ligação, é infeliz e fomenta a infelicidade.
Independentemente dos problemas do dia a dia há fases da vida a eles mais propensas. A vida é uma contínua tentativa de solução de problemas. É ensaio, um processo dinâmico a ser assumido por cada pessoa individualmente. É resposta e não acusação.
Naturalmente, que cada pessoa arrasta os próprios problemas e os de outros. A carga é por vezes tão pesada que impede o seu desenvolvimento e o desenvolvimento dos outros. Por isso mesmo também a separação não significa o acabar do sofrimento nem quer significar uma solução. A separação do outro tem primeiramente a ver connosco mesmos e com o nível do nosso desenvolvimento.
Por outro lado a vida terrena de que dispomos é tão curta que ninguém se deveria conformar com a infelicidade. No processo de desenvolvimento individual e social não deve haver tabus, sejam eles de carácter altruísta ou egoísta.
O extremo da dor pode tornar-se numa oportunidade que ajude a dar um passo aberto a novas possibilidades. A mudança, a metanóia é como um parto. Aí temos que nos dar à luz a nós mesmos e connosco aos outros. Mesmo aqui, por muito iluminados que sejamos a luz e a escuridão continuarão a acompanhar-nos como o Sol durante o dia e a Lua durante a noite.
O casamento não é um fim em si mesmo
Nem toda a relação tem condições para se manter. Há casais que apesar de infelizes não conseguem separar-se ao contrário de outros que exageram pelo outro extremo.
Uns não conseguem separar-se por razões externas: dinheiro, crianças, religião, convenção, etc. Então o casamento torna-se numa prisão, torna-se num fim em si.
Outros não conseguem a separação por motivos internos: o ideal da bondade e do altruísmo, o desejo de realizar o outro colocando as próprias necessidades e desejos num segundo plano.
Noutros casos o que mantém o casamento é o sadismo, o sentimento de superioridade, o sustento.
Há casais que desejando embora a separação, não conseguem dar o passo decisivo. Mantêm-se na união da insegurança contínua. A experiência de insegurança e a falta de ligação/amor na infância fortalece mais tarde o medo da separação ou de ser abandonado. Neste sentido para muitos a dor da separação seria mais forte do que a dor no casamento. Também pode haver de permeio a compaixão pelo sofrimento do outro como pode ser o caso em uniões tipo assistente social ou religioso.
A fixação à mãe, à mãe galinha, ou a experiência duma mãe egoísta, criam dependência e medo de separação. O afastamento seria então sentido como culposo. Por outro lado a separação poderia ser sentida como uma ameaça a valores interiorizados como lealdade, bondade, sintonia, gratidão. Há casos de pessoas depressivas que embora já não sintam amor pelo/a parceiro/a continuam a ter medo da separação ou baseiam a continuidade da união no sentimento de serem necessárias para ajudar. Muitas vezes há disfuncionalidade e falsa percepção dos problemas: a consciência de domínio, o espírito de vítima, o medo da mudança, o querer a segurança a todo o custo, a necessidade de percorrer sempre a rotina dos mesmos caminhos. A falta de orientação dificulta a auto-avaliação e a capacidade de notar as razões da própria insatisfação. Esta chega a tornar-se mesmo familiar. A familiaridade da insegurança doentia torna-se assim em factor e experiência de continuidade na vida. Também há relações doentias que se estabilizam com o sentimento de culpa. Esta perversão pode tornar-se num sentimento de mais valia para a vida em comum. Recorde-se a anedota que descreve a viúva infeliz por lhe faltar a violência do seu falecido!… É como que uma fidelidade negativa. Um inimigo do desenvolvimento é o hábito, a rotina, a resignação, a leviandade! A verdadeira fidelidade pressupõe a existência dum pacto social entre indivíduos com capacidade de se relacionar, um viver em processo.
A união do casal, também pode ser inadequadamente estabilizada pelo medo ou pelo ódio. A pessoa adaptada, tímida não ousa expressar os sentimentos verdadeiros, não se consegue afirmar. Para evitar discussão subjuga-se à ideia dos outros. Neste momento os dois cônjuges abdicam de ser sujeitos. Tornaram-se dois objectos ao sabor das ondas do destino.
No caso de ódio falta a visão de conjunto, a perspectiva ambiental. O mais agressivo é geralmente o mais fraco e dependente. A sua necessidade de segurança é tal que não se poupa a humilhações ou confirma fatalmente a confirmar a má imagem que tem de si mesmo. Por vezes a experiência duma proximidade negativa é mais “satisfatória” do que nenhuma. Esta, ao contrário da indiferença une. Falta a criatividade e a coragem para ser.
Outros optam por adiar os problemas apostando na realização duma missão ainda não cumprida mas que se poderá vir a realizar. Vivem na esperança de melhores dias, na expectativa daquilo a que julgam ter direito mas que nunca chegará.
Também pode haver o caso da incerteza, de não se saber o que se quer. Optar por se entrar no processo da maturidade exige muita energia e coragem. Muitas vezes criamos mundos paralelos em que se deixa viver artificialmente: um deles é o das ideias. A ideia é tão forte que me não deixa viver, é ela que vive em mim. Então a percepção da realidade é mais distorcida ainda. Então já não encontro o meu parceiro apenas me encontro com a ideia que tenho dele ou com a ideia que tenho de mim. Há muitas vidas assim em vão passadas, vidas no desencontro, no desencontro consigo mesmo, no desencontro com o outro, no desencontro com a realidade: uma vida desaferida passada no mundo paralelo da ideia, uma vida em segunda mão!
Em todos estes casos são muito importantes bons contactos, e amigos com quem se fale abertamente. Aqui o maior problema dos amigos será a identificação e as projecções. Também a consulta de terapeutas de casais com uma terapia em conjunta ou uma conversa com um sacerdote poderia tornar-se muito útil. Pressupõe-se abertura e sinceridade dum relacionamento adulto sem as peias de moralismos e hábitos nem hipocrisias ou leviandades.
Uma pessoa totalmente envolvida na crise merece a plena atenção e respeito no seu calvário que é também um momento da graça para o interlocutor e a questionar-nos a nós mesmos!
Uma ocupação gratificante (trabalho, hobby, desporto, associação ou grupo) pode ajudar a evitar ideias fixas e a criar distanciamento em relação a si e ao problema. Na vida é sempre indispensável o acompanhamento dum sentimento de sucesso, de reconhecimento e de aceitação. Muitos casais fecham-se no labirinto dos seus problemas agravando assim a situação. Cada um procure dar oportunidades às qualidades artísticas que possui. O mesmo se diga para a descoberta duma espiritualidade. Esta dá-lhe a protecção que lhe permite distanciar-se da ligação infantil à mãe.
Uma separação não significa automaticamente fracasso!…
A opção pela separação deveria constituir uma oportunidade para o desenvolvimento pessoal e não apenas uma fuga a uma situação embaraçosa. É um passo a ser bem ponderado depois duma reflexão, a nível individual, psicológico, social, económico e espiritual. A ambivalência é destrutiva. Deixar uma dependência para se meter noutra poderia significar que a decisão anterior não terá sido consciente. O sofrimento da crise teria sido em vão se a decisão tomada não fosse no sentido de maior maturidade pessoal. Numa separação bem ponderada não haverá estragos. Como adulto não preciso de desculpar ou esconder as minhas fraquezas. Ao chegar a este momento pressupõe-se que já falei de caras com os meus caprichos e emoções, tal como com os do outro.
O “casamento feliz” pressupõe a realização de duas diferenças num processo dialogal de ipseidade e de alteridade, na expressão do eu-tu-nós. Aí processa-se um balancear de necessidades e sonhos, num ambiente propício ao desenvolvimento da autonomia, competência e sociabilidade, pressupostos fundamentais para a auto-realização. A auto-realização depende da autodeterminação, competência, sucesso, e sentimento de pertença. Uma pessoa que se sinta aceite e estimada entre as pessoas de relação, torna-se mais estável e adquire maior capacidade de tolerância. A vida comunitária precisa de espaço para oscilações do bem-estar. A vida é como um pêndulo. Seria mau sinal se cedesse à lei da inércia interrompida apenas por rituais estereótipos. Importa ter-se a consciência de que com o próprio agir se consegue mover algo e se é reconhecido no meio ambiente. Na união conjugal cada cônjuge constitui uma oportunidade para o desenvolvimento do outro. A vida é contínua mudança. Se não entrarmos neste processo seremos ultrapassados por ela. Muitas vezes a mulher está mais predisposta à mudança o que provoca desenvolvimentos diferentes com consequentes desequilíbrios e conflitos.
A relação precisa de proximidade, ternura, sexualidade, carinho, apoio e lealdade. Se algo disto falta intervém a lei da inércia, a perca da vontade, o alheamento, a resignação, o esgotamento.
Semáforos com sinal vermelho contínuo
O desequilíbrio causa doenças físicas e psíquicas. Tragédias tornam-se mais abundantes em ambientes fechados, onde o mundo relacional e o horizonte da vida se deixam reduzir ao lar. Muitos casais guardam em segredo para eles os conflitos, dando mais importância à vergonha que teriam ao manifestá-los do que em resolvê-los. Contentam-se em desabafar com este e com aquele amigo ou amiga que muitas vezes por deslealdade ou por medo de pensar na precariedade da própria situação tomam uma posição leviana. Assim se vão passando anos de vida sem qualidade, assim se adia irresponsavelmente a vida. Muitos não atingem o alcance das palavras ditas no momento do casamento:”Ficaremos juntos até que a morte nos separe”! Não há só a morte física! A vida não espera. Ela precisa é de sinais verdes!
Muitos lares transformam-se em prisões onde se não encontra uma porta de saída nem tão pouco uma janela. O dia a dia transforma-se numa tragédia, numa marcha fúnebre, uma vida em luto. Nesse ambiente é costume trocarem-se “mimos” destrutivos. Vive-se no equívoco de que dizendo “as verdades” o outro se abre e melhora. Acontece porém o contrário porque quem é depreciado sente-se sem valor e como tal num estado depressivo. De dois espíritos sombrios não se pode esperar luz. Para haver luz terá que haver mudança de atitude nos dois.
Se imaginamos mais o lado soalheiro do cônjuge, o seu aspecto bom, erótico, simpático certamente que observaremos uma mudança em nós e nele. Infelizmente a nossa atenção está mais orientada para o que não funciona, sem registar o positivo. Se a autoconfiança diminui e a auto-estima abranda as nuvens da solidão vão-se apoderando da relação e as trovoadas passam a repetir-se com intervalos cada vez mais curtos. Por vezes domina a frieza da indiferença, ou a táctica de ignorar o outro. Paulatinamente a vida passa a desenrolar-se em vias paralelas onde as fumaradas favorecem os instintos mais fracos, a caminho dos medos, da depressão, da coacção, da frustração e do desespero.
O bem cresce num solo do reconhecimento. Quem se ama a si mesmo já tem uma maior margem para poder amar os outros. Quando o amor tem uma dimensão espiritual então na vida dos dois é mais fácil descobrir uma linha contínua comum. A dimensão espiritual fomenta a comunhão e a vivência do sentido. A relação entre os dois pode alcançar maior qualidade. “Eu estava nu…, abandonado…, eu tinha sede e vós destes-me de beber…”. Quem tem fé, mesmo no mais negro dos desertos, nunca está sozinho!
Aprender a amar e não a castigar-se
Conflitos constituem uma oportunidade para o aprofundamento da relação do par e para o desenvolvimento individual. Uma relação íntima a dois pressupõe a abertura ao desenvolvimento interior. Não chegam os aspectos folcloristas! A princípio chega-se a perder muito tempo! Passa-se a vida à procura do restabelecimento da intimidade original ou da sua restauração na procura do pai ou da mãe. Por vezes, na relação a dois desenvolvem-se mecanismos numa troca de papéis ora de criança ora de pai ou mãe. Quem não se der conta disto, passados os foguetes da festa, estará mais predisposto para uma vida emocional e sexual frustrada.
Cada um reivindica para si o estado de adulto mas na posição de chefe mas mantendo recursos infantis a não desiludir. A crise cria a oportunidade para se sair dum processo de relação infantil, ela corresponde muitas vezes ao alcance dum estado de maior maturidade: uma plataforma para um salto qualitativo. Naturalmente que permanecerá uma certa nostalgia pela despreocupação infantil e pelo estado simbiótico. O “Ego” é cómodo não querendo desenvolver-se porque o desenvolvimento vai na direcção contrária ao comodismo e exige criatividade, espírito reflexivo e vontade. A crise é como a doença um toque a rebate anunciando que é tempo de mudar de atitude e de comportamento. A vida quer-nos adultos, daí a dor a acompanhá-la. A criança em nós que não quer dar lugar ao adulto procura continuamente encontrar responsáveis ou culpados pela dor que julga estranha. O indivíduo está em contínua transformação o que implica mudança na relação de casal. A crise é também uma oportunidade para os dois se mexerem na entreajuda na metamorfose própria ao desenvolvimento. Quem coloca a relação como o problema central da sua vida não tem medo de conflitos e tem confiança que aquela se melhorará. Sem se mortificar a si próprio na observação do parceiro. A mudança pertence ao processo, aos dois. Quanto mais nos aproximarmos um do outro mais descobrimos em nós mesmos e no outro.
Não chega amar, é preciso que o outro note que é amado, era a filosofia do pedagogo João Bosco. Por outro lado a verdadeira relação começa nas intempéries. É preciso a coragem de se pôr a caminho e de abandonar o paraíso terreal aceitando o medo e a culpa. Não chega a auto-realização emocional e vegetativa. É preciso a consciência de que se está a caminho. Quem parou morreu e pode tornar-se num empecilho para os outros.
Não podemos reduzir o nosso agir à cumplicidade ou à vinganca – através do nosso agir – do agir dos nossos pais por nós internalizado inconscientemente. Não chega reagir, é preciso agir conscientemente. Não chega uma vontade inconsciente de remir os nossos pais no sacrifício inconsciente em nós latente, renunciando ao próprio viver. Por vezes as pessoas castigam em si mesmas as faltas do pai e da mãe; castigam-se em representação ou substituição do pai e da mãe. A tradição do pecado original e da remissão de todos os males por Cristo é, além do mais, um recordar que o ser humano não tem de se imolar pelo outro. Pelo contrário, é chamado à consciencialização de si mesmo e à participação na própria salvação e na salvação dos outros numa perspectiva de plena liberdade e amor..
Se a chama do amor com que vemos o outro se chega a apagar em nós surgem então outras presenças que nos acompanham na noite. É então a altura de deixar falar em nós o sábio que fala da profundidade da dor. Esta ajuda-nos a ver a realidade com os olhos do universo. Aí, depois de apagadas as velas da cobiça, da cólera e do desespero pelo vento da dor, talvez se torne mais fácil reconhecer a própria natureza e o chamamento à unidade e a oportunidade da chamada a resolver a dualidade na união e na unissonância com a natureza do mestre da Galileia, com o mestre a descobrir em nós mesmos.
António da Cunha Duarte Justo
In “Pegadas do Tempo”
António da Cunha Duarte Justo