O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS 

(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, vivido agora em férias)

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pelo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu: «Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras. «É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor: «Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu: «Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite. «Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A RESSONÂNCIA DO “OBRIGADO”

O outono pintava de ocre e carmesim os jardins do antigo sanatório, agora convertido em residencial para seniores. O Dr. Eduardo Almeida, neurologista aposentado, observava a paisagem da varanda do seu quarto. O seu mundo, outrora palco de diagnósticos certeiros e intervenções precisas, reduzia-se agora àquele espaço e àquela vista. Um frio interior, um “cortisol” da alma, como ele próprio, irónico, definia, mantinha-o num estado perpétuo de luta surda contra a irrelevância. A sua mente, treinada para o cepticismo científico, via a vida como uma sucessão de reações bioquímicas, onde conceitos como “gratidão” lhe pareciam placebos para mentes fracas.

A sua rotina era solitária. Até que, numa tarde, um novo habitante chegou à residencial. Apresentou-se como António. Trazia consigo uma serenidade palpável, uma luz nos olhos que contrastava com a penumbra do lugar. António fora educado num mosteiro na sua juventude, e trazia consigo hábitos antigos.

Todas as noites, pontualmente às nove, António parava à porta do Dr. Almeida. Não impunha a sua presença, mas simplesmente ali ficava, com um sorriso tranquilo.
– Boa noite, Doutor – dizia ele, com uma voz que era uma carícia.
O Dr. Almeida limitava-se a anuir com a cabeça, num gesto seco. Mas António insistia, gentilmente.
– Hoje, o sol entrou pela minha janela e aqueceu o chão. Fui grato por esse momento de graça. E o Doutor, teve algum instante pelo qual se sinta agradecido?

Eduardo revirava os olhos. “Instantes de graça?”, pensava. “A única coisa pela qual poderia ser grato é que a minha artrose não doeu tanto hoje.” Mas a persistência serena de António começou a criar uma fenda na sua armadura. Ele lembrava-se do texto que lera sobre gratidão, daquelas ideias que considerara “pensamento positivo”. No entanto, algo no tom de António ecoava aquelas palavras: “a energia da gratidão dá saúde e amplia os nossos próprios horizontes”.

Uma semana depois, num dia particularmente cinzento, o Dr. Almeida, movido por um impulso que não conseguiu decifrar, murmurou em resposta:
– Bom, a sopa… a sopa estava quente. – Soou ridículo aos seus próprios ouvidos.
O rosto de António, porém, iluminou-se.
– Que belo motivo! O calor que nutre o corpo e a alma. Boa noite, Doutor. Durma em paz e grato.

Naquela noite, pela primeira vez em anos, Eduardo adormeceu sem a habitual ruminação de pensamentos negativos. A simples admissão de um pequeno conforto, por mais ínfimo que fosse, operara uma magia subtil. Era como se uma serotonina espiritual, daquelas de que falava Emmons, lhe tivesse sido ministrada.

Os dias transformaram-se. A prática do “Boa Noite” tornou-se um ritual. Eduardo começou a procurar, conscientemente, motivos de agradecimento: o canto de um pássaro, a memória remota de um caso médico bem-sucedido, a gentileza de uma enfermeira. A sua “antena” interior, até então sintonizada na frequência estática do desdém, começou a captar os “sinais electromagnéticos e espirituais” de beleza à sua volta. A sua perceção da realidade alterava-se, reescrevendo, como sugeria o texto, uma memória ancestral que sempre o inclinara para o pessimismo.

O clímax desta transformação deu-se numa manhã de Natal. O salão comum estava decorado, mas o ambiente era da melancólica obrigatoriedade. O Dr. Almeida, sentado num canto, observava os outros residentes, muitos deles mergulhados no seu isolamento. Então, viu António. Com a mesma serenidade de sempre, António aproximava-se de cada um, não para oferecer um presente material, mas para lhes sussurrar algo ao ouvido. Em cada pessoa que ouvia aquelas palavras, observava-se uma mudança: os ombros relaxavam, um sorriso tímido brotava, os olhos marejavam. A gratidão tornava-se presente como uma lua que ilumina o caminho na noite.

Intrigado, Eduardo esperou que António se aproximasse.
– O que estás a dizer-lhes? – perguntou, em voz baixa.
António fitou-o, e os seus olhos pareciam conter a luz de todas as estrelas da noite de Natal.
– Estou apenas a agradecer-lhes.
– Agradecer? O quê? Mal os conheces!
– Agradeço-lhes simplesmente por existirem. Por fazerem parte deste todo. Por estarem aqui e me permitirem partilhar este espaço e este momento com eles. É o meu exercício do “Dia da Boa Morte” (1): agradecer a vida que nos é dada, hoje, agora, intensamente.

António pousou a mão no ombro de Eduardo.
– E a si, Doutor, quero agradecer profundamente.
Eduardo ficou estupefacto. Surpreendido por ter sido agradecido. Ele, que se considerava um fardo, um homem amargo no outono da vida.
– A mim? Pelo quê, pelo amor de Deus?

António sorriu, num gesto de pura e simples fraternidade.
– Por me ter ouvido. Por ter aceitado o meu “Boa Noite”. Por ter permitido que eu praticasse a minha gratidão consigo. A gratidão, para ser completa, precisa de ser partilhada. Precisa de um outro para quem se direcionar. Você, ao aceitar o meu agradecimento, tornou-o real. Foi o recipiente que permitiu que a minha gratidão se manifestasse no mundo. Por isso, sinto-me em dívida consigo. Obrigare (2). Sinto-me ligado a si.

O Dr. Almeida não conseguiu conter as lágrimas. Compreendeu, naquele instante, a dimensão espiritual daquela virtude. Não era uma mera transação de favores; era uma força de ligação, uma ressonância do amor que unia as almas. Ele não era um mero recebedor, mas um elemento vital no circuito da graça. A gratidão de António não o colocava numa posição inferior, mas elevava-os a ambos, criando um laço de fraternização inexplicável.

Naquela noite, o Dr. Eduardo Almeida foi quem procurou António. Parou à sua porta, e com uma voz embargada, mas firme, disse:
– António, boa noite. Hoje… hoje sou grato por ti. Sou grato por teres surpreendido esta alma velha e céptica com o teu “obrigado”. Iluminaste a minha noite.

E, sob a luz prateada da lua, que como uma lâmpada divina clareava as sombras da dúvida, os dois homens trocaram um olhar. Não havia juízo, não havia análise, não havia bem nem mal. Havia apenas, tal como o texto previra, a calorosa, luminosa e amorosa ressonância energética que tudo inundava. Eram, finalmente, gratos e portanto, finalmente, felizes, por lhes ser dada a graça do reconhecimento de interdependência.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Alusão ao hábito que tínhamos nos Salesianos de uma vez por mês fazermos o “Exercício da Boa Morte”. O “Dia da Boa Morte” refere-se ao “Exercício da Boa Morte”, uma prática espiritual mensal introduzida por São João Bosco para preparar a comunidade e cada um para o encontro com Deus no momento da morte.  Isto incentivava a revisão da vida através do exame de consciência, a organização pessoal de modo a deixar o nosso interior e exterior em ordem.

(2) A palavra “obrigado” deriva do latim obligatus, particípio do verbo obligare, que significa “ligar”, “atar” ou “ficar preso por uma obrigação”. A palavra dirigida uma pessoa que é com que um comutador que liga, “estar ligado”

Gratidão além de virtude é um remédio eficaz: https://www.gentedeopiniao.com.br/opiniao/artigo/gratidao-alem-de-virtude-e-um-remedio-eficaz

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O QUE NÃO SE FALA NÃO EXISTE!

Pois é, meus caros, que bela notícia!

Afinal de contas, a injustiça e a pobreza já são problemas ultrapassados, resolvemos não falar mais deles, e, como bem se sabe, o que não se fala não existe.

Agora, o verdadeiro progresso está em rearmar a Europa! Que alívio saber que os 800 mil milhões de euros que a UE planeia gastar em defesa nos próximos anos vão certamente tornar-nos todos mais seguros… principalmente contra a ameaça terrível de idosos sobreviverem com 250 euros por mês ou pensionistas portugueses que ousam receber pensões de até 500 euros. Em Portugal em 2024 havia 1,4 milhões de pensionistas que  recebiam uma pensão de velhice de até 500 euros, o que representava quase metade dos pensionistas da Segurança Social.

É claro que faz todo o sentido que Portugal gaste 6.256 milhões de euros em defesa até 2029, afinal, quem precisa de reformas decentes, serviços públicos que funcionem ou apoio social quando podemos ter mísseis mais modernos e tanques reluzentes?

O importante é manter as prioridades em ordem: primeiro, enchemos os arsenais; depois, talvez, se sobrar algum trocado, lembramos que há pessoas a viver na miséria.

Mas calma, não sejamos dramáticos! Afinal, o que é a pobreza perante a grandiosa estratégia geopolítica europeia?

Sigam em frente e não se esqueçam de apertar o cinto… mas só até 2029. Em compensação, sentimo-nos bem-comportados e esforçados em cumprir as estratégias de Trump em relação à NATO! Isso dá mais honra e lustro aos nossos engravatados quando se passeiam em Bruxelas!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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A ENCRUZILHADA DO OCIDENTE ENTRE EMOTIVIDADE PODER E A CRISE AXIAL DA HISTÓRIA

A Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente

Vivemos um daqueles raros momentos da história em que a ordem mundial não se limita a adaptar-se, mas sofre uma transformação fundamental. Trata-se de uma crise de eixo – um ponto de viragem épico, no qual as estruturas de poder, os modelos económicos e as grandes narrativas civilizacionais são abalados. O Ocidente, outrora arquiteto incontestado da ordem global, permanece hoje numa espécie de paralisia emocional e estratégica – e, com isso, promove involuntariamente exatamente o mundo multipolar que procura impedir.

A Ascensão da Irracionalidade e a Falência das Elites

O mal-estar ocidental não é apenas de natureza económica ou geopolítica; é, acima de tudo, uma crise da razão e da cultura. As elites dominantes, alienadas do povo e do desenvolvimento orgânico e qualitativo do indivíduo e da sociedade, abandonaram os padrões da razão, da ponderação crítica e do espírito de cooperação e complementaridade. A liderança sóbria foi substituída por uma emocionalização perigosa e tóxica da comunidade.

Esta estratégia, que recorre a instintos sociais baixos, é um sintoma de pânico. As elites, movidas pelo medo de perderem o controlo da narrativa e o seu lugar privilegiado, intoxicam o espaço público. Isso resulta numa sociedade hipersensível e depressiva, incapaz de compreender as causas profundas da sua miséria e que se contenta em lamentar as suas consequências. O caso alemão é paradigmático: enquanto se desviam verbas incomensuráveis para a guerra e se acumula dívida nacional, as desigualdades sociais que atingem brutalmente idosos e jovens são ignoradas. O discurso público, em vez de tematizar estas opções, prefere o conforto da emoção.

O Palco Geopolítico: A Revolução Multipolar

Esta convulsão interna coincide com uma mudança histórica de proporções épicas. Talvez seja comparável à transição do feudalismo para o capitalismo nos séculos XV e XVI.

O capitalismo, fruto da revolução industrial, foi durante muito tempo um projeto exclusivamente ocidental. Hoje, porém, o Sul Global despertou do seu «sono medieval». Os países do BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul e outros – estão a reformular as suas economias, sob o signo do capitalismo estatal. Este modelo, apesar das suas contradições, prova-se formidável na concorrência com o capitalismo ocidental de carácter fundamentalmente privado e financeirizado. O subsídio ocidental ao capitalismo liberal turbo não só enfraquece a espinha dorsal de uma classe média saudável, como também favorece formas artificiais de empresas, cujo único fundamento é o próprio capital. Nesta situação paradoxal, as elites destroem a sua própria base para satisfazer as exigências do sistema que elas mesmas criaram noutras paragens. Nesta situação as nossas elites autodestroem-se para conseguirem dar resposta ao sistema que impuseram ao submundo.

Perante este desafio, a resposta anglo-saxónica (EUA/UK) e europeia, canalizada através da NATO, não é de adaptação, mas de renitência e confronto. Em vez de reconhecerem os sinais dos tempos e buscarem uma colaboração Norte-Sul, agarram-se a velhas doutrinas belicosas da Guerra Fria. A insistência em ver o mundo através da lógica do “amigo-inimigo” e a camuflagem de interesses imperialistas sob o pretexto de “defesa de valores” só consegue uma coisa: fomentar a afirmação do mundo rival em termos de rivalidade, e não de colaboração.

A Esquerda Europeia: Perdida entre o Verde e a Guerra

A esquerda europeia, outrora garantidora de uma política social e humanista, perdeu a sua bússola; o centro político tem receio de revelar as suas próprias raízes. O caso do SPD alemão é sintomático: a sua associação à ideologização verde prejudicou a sua imagem de partido anchor da justiça social.

O movimento ecológico, originalmente com raízes locais e pacifista, também foi cooptado e transformado numa força moralmente belicista da geopolítica. Esta «ecologização» da política, longe de salvar a natureza, tornou-se um instrumento de emocionalização que cega ainda mais a sociedade. A esquerda, dependente desta agenda, tornou-se num parceiro involuntário de políticas que negam o seu próprio projecto de justiça social e paz.

A direita, por sua vez, perdeu a sua firmeza ao abandonar os seus fundamentos culturais. Seduzida pelas tentações da globalização liberal, escolheu o caminho da agressão em vez da cooperação entre os povos.

A União Europeia faz parte da Eurásia e se considerarmos o tempo em épocas, e não em períodos eleitorais de quatro anos, teremos que concluir que a Eurásia é o palco crucial que servirá de ponte entre Oriente e Ocidente.

A Única Saída é a Razão e a Colaboração

O surgimento de figuras como Trump nos EUA não é a causa, mas sim um sintoma deste processo histórico em curso acelerado. São as dores de uma transição inevitável para um mundo multipolar.

O Ocidente tem apenas uma saída: afastar-se da mera emocionalidade e voltar à razão e ao senso comum político:

– Reconhecer a nova constelação de poder e negociar com o Sul Global de igual para igual.

– Abandonar a doutrina do confronto da NATO em favor da diplomacia e da cooperação económica.

– Reafirmar um discurso público objectivo, onde os media e os partidos priorizem o bom senso sobre a histeria.

– Reencontrar uma esquerda que volte a tematizar as causas da desigualdade sem abandonar o humanismo cristão, em vez de se limitar a gerir as suas consequências da desigualdade com emotividade.

A crise do eixo não marca um fim, mas sim um doloroso recomeço. O Ocidente pode revelar-se um obstáculo obstinado e, assim, acelerar o seu próprio declínio – ou pode redescobrir a razão e encontrar o seu lugar num mundo que já não é exclusivamente seu, mas que pode ser mais justo e equilibrado para todos. A depressão das sociedades ocidentais é o reflexo da doença das suas elites. A cura começa com a coragem de pensar com clareza.

A União Europeia faz parte da Eurásia. E se não medirmos o tempo em mandatos eleitorais de quatro anos, mas em épocas, então temos de concluir: a Eurásia é o palco decisivo que se torna a ponte entre o Oriente e o Ocidente.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

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O ATLAS DE FUMO E O FIO DE OURO

Introdução: A Biblioteca das Épocas (1)

Na vastidão do não-tempo, onde as épocas se dissolvem em névoa e os mapas do mundo se redesenham a cada expiração do cosmos, existia uma biblioteca infinita. Não era feita de pedra ou madeira, mas do próprio tecido da memória humana. As suas estantes, labirínticas, guardavam não livros, mas painéis luminosos onde cintilavam as constelações de ideias, paixões e ambições de cada época. Era o reino do pai do tempo Cronos (2), o velho Tecedor, um ser de aparência serena, mas com olhos que reflectiam a fadiga de milénios. Ele não era um deus, mas um arquivista, o Narrador silencioso da história. Tinha entre mãos um tear dourado onde tentava entrelaçar os fios caóticos do destino humano num padrão coerente.

Os seus dois principais assistentes, ou antagonistas, eram Dogma e Providência.

Dogma era um homem de rosto anguloso e vestes impecáveis, sempre carregando uma bússola de aço e um livro das regras da sustentabilidade. Acreditava que o painel do Ocidente, aquele erguido após a última grande convulsão, a que chamaram Renascimento e depois Iluminismo, era a obra final, perfeita e inalterável até aos finais dos tempos. Para ele, a luz daquela constelação, embora já pálida, era a única verdadeira a brilhar no céu de Bruxelas. Uma luz teimosa, sustentada por combustíveis grosseiros, guardados em tanques enferrujados.

Providência, por sua vez, era uma figura etérea, de olhos que pareciam ver não o que é, mas o que poderia ser. Usava um manto bordado com os símbolos de todos os povos e sussurrava sobre conexões, complementaridades e um novo painel a surgir do Sul, mais colorido e complexo. Era a voz da intuição racional, do bom senso que vê além do horizonte imediato.

E havia Caos (o espaço vazio, abismo (3), a força primordial que Dogma mais temia. Não era uma pessoa, mas uma energia turbulenta que emanava dos painéis: a emotividade irracional, o medo, o ódio tribal que fermentava nas sociedades quando se sentiam perdidas.

(O mundo da História encontrava-se assim dividido em painéis representados em várias áreas da biblioteca)

O Painel Ocidental e as Fendas

O painel do Ocidente brilhava intensamente. Nele, via-se a catedral do poder: torres de marfim onde as elites, representadas por uma figura etérea e arrogante chamada O Inquisidor (4), admiravam a sua própria obra. Tinham construído um sistema engenhoso, um capitalismo de tipo bússola e privilégio privado. Mas, como notava Cronos com um suspiro, tinham cometido o erro fatal: confundiam o seu painel com o universo inteiro.

“O padrão está completo!” proclamava Dogma, ajustando o compasso. “Todos os outros painéis devem calibrar-se pelo nosso. E para nós os valores válidos são os da nossa Constituição”.

Porém, o Tecedor apontava para as rachaduras. O brilho intenso do painel não iluminava os seus cantos mais sombrios: os desfavorecidos, os idosos e os jovens, representados por uma figura colectiva e cansada, O Povo, que, na penumbra, viam os fios dourados da sua prosperidade serem desviados para alimentar uma grande forja de armas reluzentes e magnates globais, fora do painel. O Povo não entendia os desígnios do Inquisidor; sentia apenas um frio crescente e uma ansiedade surda, um mal-estar que era o combustível de Caos.

O Inquisidor, sentindo o controlo a escapar, não apelava à razão. Em vez disso, sussurrava para o painel. Murmurava medos antigos, alimentava suspeitas, pintava o mundo exterior de cores ameaçadoras. Era mais fácil unir O Povo pelo temor do que pela esperança. A emotividade, como um vinho forte, entorpecia a capacidade de questionar.

O Novo Mosaico e a Renitência

Enquanto isso se dava, noutra ala da biblioteca, um novo painel ganhava forma. Era um mosaico vibrante de cores terrosas, verdes luxuriantes e azuis profundos: O Sul Global. Não seguia o mesmo desenho. As suas torres não eram de marfim, mas de bambu e aço, erguidas por mãos estatais e colectivas. Era um capitalismo diferente, menos privado, mais comunitário na sua origem, unido por fios de tradição e soberania que o Ocidente julgara obsoletos.

Providência observava, fascinada. “Vê, Cronos? É a mesma transição que ocorreu quando o feudalismo deu lugar aos nossos reinos comerciais. É a História a repetir a sua dança, noutro palco.”

Dogma, contudo, olhava para aquele painel e não via inovação, viu apenas uma heresia. “Eles não seguem as regras! O compasso não se aplica nem tem sentido! É uma afronta à nossa constelação!”.

O Inquisidor, ecoando Dogma, começou a gritar. Em vez de buscar dialogar com o novo mosaico, começou a apontar para ele as suas armas reluzentes, a tentar cercá-lo com um anel de fogo. A renitência em aceitar a mudança tornou-se a própria semente do conflito. A NATO, nessa narrativa, era o seu exército de sombras, a tentar conter a maré com velhos mapas.

A Torre de Babel da Esquerda e o Profeta

No próprio painel ocidental, uma guerra silenciosa corroía a base. O Centro da polis temia que os ventos fortes vindos da direta lhe desabrigassem as raízes. A Esquerda, que outrora pretendia ser a voz de O Povo, estava dividida. Dois grupos lutavam. Os Jacobinos Verdes, discípulos involuntários do Inquisidor, tinham trocado o vermelho pelo verde escuro num pacto de poder. A sua ecologia tornara-se dogmática, belicista e distante das necessidades terrenas de O Povo. Eram a ala moralizadora e emocional, úteis ao Inquisidor para manter a narrativa de medo.

Do outro lado, uma voz mais calma, mas persistente tentava fazer-se ouvir. Era O Profeta, não um adivinho, mas um pragmático com alma. Representava aqueles que viam a loucura do momento. “Não podemos defender O Povo fomentando o seu medo!” clamava. “Precisamos de um meio termo, de uma razão integral que una a justiça social à pragmática colaboração com o novo mosaico. A nossa luta não é contra o Sul, é contra a injustiça de uma desigualdade que nos consome por dentro!”

Mas a sua voz era abafada pelo ruído ensurdecedor de Caos, amplificado pelo Inquisidor e pelos Jacobinos Verdes.

O Grande Tear Eurasiático

Cronos, o Narrador, cansado da cacofonia, decidiu agir. Não com força, mas com lembrança. Ele projectou uma visão sobre os painéis em conflito.

Era a imagem de um Grande Tear Eurasiático. Mostrava a Rússia não como um inimigo, mas como uma ponte vasta e antiga entre a Europa e a Ásia. Mostrava rotas não de invasão, mas de comércio, de cultura, de energia e de ideias fluindo de Lisboa a Xangai, unindo províncias e continentes num novo padrão.

“Olhem”, sussurrou Cronos, sendo a sua voz pela primeira vez audível para todos. “O espírito do Renascimento não era de isolamento, era de redescoberta através do encontro. A mesma coragem que vos fez navegar para ocidente é necessária agora para navegar para oriente, não com naus de guerra, mas com a ânsia de aprender e colaborar. O mundo virtual que criaram pode ser esta nova rota da seda, se o desejarem.”

O Povo, intoxicado pelo medo, começou a esfregar os olhos. A visão era estranha, mas fazia um sentido profundo que a emotividade do Inquisidor nunca lhe proporcionara.

O Fio de Ouro

A batalha não terminou. Dogma e o Inquisidor ainda gritam e Caos ainda sussurra.

Mas a visão plantou uma semente. O Profeta encontrou ouvidos mais atentos. Providência sorriu, vendo que o novo painel do Sul (propriamente formatado pela Europa) não pretendia apagar o Ocidental, mas sim conectá-lo, oferecendo-lhe novas cores para o seu padrão.

Cronos voltou ao seu tear. Entre todos os fios de prata do poder, de ouro do capital, de carmesim da paixão e de sombra do medo, ele começou a entrelaçar um novo fio, que era fino, mas incrivelmente resistente. Era um fio de razão serena, de bom senso histórico, de colaboração necessária.

Era o fio que O Profeta defendia, o fio que O Povo instintivamente desejava, o fio que poderia costurar os pedaços do atlas partido num novo mapa, não de um mundo unificado sob um único dogma, mas de um mundo multipolar, unido pela aceitação da sua própria diversidade e pelo desejo final de um destino comum.

A história, afinal, não se repetia como uma tragédia ou uma farsa, mas como uma oportunidade de correcção. A crise axial era, assim, o doloroso e necessário parto de uma consciência nova. (Teilhard de Chardin resumiria: o despertar de uma consciência cósmica na convergência de todo o mundo para o Ponto Ómega!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

(1) Uma macro análise da encruzilhada da História

(1) Cronos, o pai do tempo, um dos Titãs da mitologia grega, filho de Urano (o céu) e Gaia (a terra), conhecido por destronar seu pai e tornar-se o rei dos deuses, governando durante a chamada Idade de Ouro.

(2) Khaos (ou Caos), na mitologia grega, é a primeira entidade primordial a surgir no universo, o espaço vazio e primordial do qual tudo se originou, segundo a obra do poeta Hesíodo. O termo significa “abismo”, “vazio” ou “imensidão”, e Khaos é uma força que gera o cosmos por meio da cisão, sendo o oposto de Eros, que representa a união. De Khaos, surgiram outras divindades primordiais como Gaia (a Terra), Érebo (a Escuridão) e Nix (a Noite).

(3) Livro 1984 de George Orwell critica o totalitarismo e a manipulação da verdade, algo que começou a ficar em evidência após a Segunda Guerra Mundial (vigilância em massa e da lavagem cerebral na sociedade).

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