O PÊNDULO E A PRAÇA

Parábola iniciática

Havia, na velha cidade de Bruxelas, um grande relógio no alto da torre da praça. O seu pêndulo, pesado e dourado, oscilava com precisão, marcando as horas que os poderosos decretavam. O Relojoeiro, homem de mãos finas e discurso polido, ajustava os seus mecanismos com ar solene, afirmando que só ele conhecia o ritmo certo do tempo.

Mas o povo, em baixo, sentia nas costas a sombra e o peso daqueles ponteiros. Alguns murmuravam que o relógio atrasava, outros que adiantava e os mais ousados diziam que marcava apenas a hora que convinha ao Relojoeiro.

Um dia, um vento forte soprou das ruas estreitas, trazendo consigo vozes desconhecidas. Eram os Andarilhos, homens e mulheres de passos inquietos, que não se curvavam ao tique-taque da torre. Gritavam que o relógio estava quebrado, que o seu ritmo não era o de todos, mas apenas o dos que o controlavam.

O Relojoeiro, perturbado, chamou os Guardiões do Mecanismo. “Estes ventos são perigosos,” advertiu. “Se deixarmos que soprem livremente, o pêndulo perderá o seu curso, e o caos instalar-se-á!” E assim, começaram a amarrar cordas ao pêndulo, a vedar janelas, a calar bocas, tudo em nome da ordem e da democracia.

Mas o vento não se deu por vencido. Soprava mais forte nas frestas, levando consigo o pó das promessas esquecidas. E o povo, antes silencioso, começou a sentir que seu rosto começava a ser tocado por aquela brisa.

Ninguém sabia, ainda, se o vento traria tempestade ou renovação. Mas uma coisa era certa: Nenhum relógio governa o vento.

No Palco da Democracia

Na praça pública, onde o sol se escondia atrás de névoas de retórica, erguia-se um palco de sombras e gritos. De um lado, os Senhores do Arco do Poder, trajando palavras polidas como fatos de alfaiate, acenando ao povo com promessas tão leves como o papel em que eram escritas. Do outro, os Pretendentes ao Poder, rostos inflamados de indignação, brandindo frases afiadas como foices, prontos a ceifar o trigo do campo alheio. E no meio, a multidão, um corpo cansado, espremido entre a bigorna do controlo e o martelo da revolta.

O populismo de cima descia em cascata, um rio de verniz institucional, enquanto o de baixo jorrava das bocas dos descontentes, ácido e espumante. Os primeiros falavam em ordem, os segundos em justiça, ambos, porém, pareciam concordar em uma coisa: o povo era mero espectador de seu próprio drama.

A Máscara e o Espelho

A esquerda outrora insurgente, agora entronizada, fitava-se no espelho da história e não reconhecia o próprio rosto. Onde antes via rebeldia, agora via apenas gestão. Onde antes havia fogo, agora havia protocolo. E quando os ventos sopravam contra ela, reagia não com argumentos, mas com os usados espantalhos, fascismo, retrocesso, ameaça à democracia, palavras gastas como moedas falsas.

“Como ousam criticar-nos?”, bradavam, confundindo discordância com traição. O povo, que outrora lhes dera voz, agora era tratado como criança caprichosa, a quem se devia calar com paternalismo ou ameaçar com o dedo.

Enquanto isso, a direita conservadora, de gravata bem apertada, murmurava sobre tradição e estabilidade, mas seus olhos cobiçavam o mesmo poder que condenavam nos outros. E nos extremos, os profetas apocalípticos, de esquerda e direita, semeavam ventos que colheriam tempestades alheias.

O Teatro das Sombras

Os meios de comunicação, fiéis cães de guarda do status quo, ladravam em uníssono contra os bárbaros das redes sociais, esses novos gladiadores que ousavam desafiar o circo estabelecido. Cada manchete era um golpe, cada editorial um veredicto. “Populismo!”, gritavam, como se a palavra fosse um feitiço capaz de exorcizar o descontentamento.

Mas o povo já não engolia as narrativas como outrora. Nas entrelinhas das notícias, percebiam o cheiro do medo, o medo dos que temiam perder o monopólio da indignação.

O Pêndulo democrático oscila

A democracia, esse pêndulo eterno, balançava entre o medo do novo e o cansaço do velho. Umas vezes para a esquerda, outras vezes para a direita, mas nunca parava no centro, pois o centro era uma ilusão, um lugar onde ninguém vivia, apenas fingia governar.

Os poderosos, assustados com o movimento, tentavam amarrar o pêndulo com leis e decretos, apertando o cerco sobre a dissidência. “Em defesa da democracia!”, diziam. “Pela ordem!” Mas o povo, cada vez mais encurralado, percebia que o discurso era só pelo poder. Sempre pelo poder.

A Última Metáfora

No fim, restava apenas uma alegoria: a da casa comum. A esquerda, que se julgara arquiteta exclusiva da moradia, agora via surgir inquilinos indesejados, gente que não aceitava os seus planos, que queria reformar as paredes, mudar os móveis. Mas, a esquerda, em vez de debater, trancava as portas e gritava “incêndio!” A sua casa era uma prisão.

A verdade é que o fogo verdadeiro não estava nos críticos nem nos discursos, ele estava na lenha seca acumulada de décadas de promessas queimadas.

E assim, entre o populismo de cima e o de baixo, entre os que mandavam e os que aspiravam mandar, o povo seguia, sem réstia de sol, mas também sem deixar de olhar para o horizonte.

Porque o pêndulo, cedo ou tarde, sempre volta. E quando voltar, quem estará lá para o segurar?

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

 

Social:
Pin Share

ENTRE TEMPO E ETERNIDADE

Eu… cavo.

Sempre a cavar…

Uma cova,

que um dia me há receber,

não de terra, mas feita de palavras.

Daquelas que disse…e das outras,

que… nunca ousei dizer.

 

Ah, quantas manhãs perdidas!

Nas vielas estreitas

do meu próprio pensamento,

enquanto a vida,

esse rio sem pressa,

me chamava, chamava… em vão.

 

Pára! Escuta! Olha!

O mundo não cabe

nos teus planos desenhados a lápis.

 

Vês ali a amendoeira floresce.

E ouves o silêncio

entre dois gritos de pavão?

Isso… também eras tu,

e deixaste-o morrer

sem sequer lhe tocares.

 

Deus não construiu o mundo

com regras de gramática

Ele escreveu com luz,

não com cinzel em pedra.

Ele é puro verbo,

sem objecto, nem parêntesis.

E do seu sonho nasceram,

o arco-íris, a espiga,

este anseio meu e teu

que não cabe em regra nenhuma.

 

Contempla as escrituras,

mas não te enterres em ideias!

Não te expulses, tu mesmo, do Éden!

 

Solta as asas que manténs cativas…

Pois a alma vive do assombro

de ser vento, fogo,

e semente despenteada

ao sol do impossível.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

https://poesiajusto.blogspot.com/

Social:
Pin Share

ENTRE AS PALAVRAS E O ÉDEN

Não leias só com os olhos da regra,

que até a letra mais santa

pode ser gaiola se a alma não voa nela.

 

Olha, as Escrituras são janelas,

não paredes;

são asas,

não sepulturas de ideias feitas.

 

Não te expulses do Éden

por obedeceres a agendas alheias

Deus pôs o jardim em ti,

e nenhum anjo com espada

te impede de voltar,

só o teu próprio medo

de comer o fruto

que já te foi dado.

 

Em cada um, Deus desvela

um céu por detrás da nuvem,

onde o sonho é a primeira estrela,

a semente da própria obra.

 

António CD Justo

Pegadas do Tempo

Social:
Pin Share

GENE DIVINO A FAULHA DO HUMANO

O homem cria o próprio engano
forra-o de ideias, palavras-mortas
e nelas enterra a alma,
antes que a mente descubra a luz.

Quero erguer-me sem muros na mente,
com verbo e sentimento à solta,
para que o sonho, semente ardente,
rompa o chão e a vida brote.

Deus sonha ainda em mim,
além do que a razão alcança,
na poesia do arco-íris,
na seiva que a terra lança.

Não creio em Deus

Deus crê em mim!

Não se apague o fogo vivo

que ergue o humano ao infinito!

 

António CD Justo

Pegadas do Tempo

Social:
Pin Share

SOB TEUS PÉS DESENHA-SE O MISTÉRIO

Não há trilho traçado,

sou eu que sou o trilho,

na vereda daquele que disse:

“Sou o caminho e a vida.”

 

Sou criatura, sou figura

do cosmos e da gente,

o verbo que se move

num tempo sem guarida.

 

Não pares, segue firme,

o chão espera o teu passo.

O mundo nasce em ti

quando caminhas nele.

 

Debaixo dos teus pés

desenha-se o mistério:

o chão que parecia

vazio, agora és tu.

 

Olha o monte nevado,

sem rasto nem direção,

à espera do teu vestígio,

da tua história impregnada.

 

A neve, que antes era intacta,

agora já tem memória.

És tu quem lhe dá rumo,

és tu quem faz a história.

 

No fim, não há coroa,

mas um cântico manso,

um Deo gratias bendito

sussurrado no cansaço.

 

Pois foste conduzido

por força sem medida,

por mão que não se vê

a chamar-te à subida.

António CD Justo

Pegadas do Tempo

 

Social:
Pin Share