(Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, vivido agora em férias)
Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.
Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pelo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.
«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»
Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu: «Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»
Vicente refletiu longamente sobre estas palavras. «É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»
«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»
E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.
Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor: «Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»
A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu: «Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»
Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.
«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»
«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.
«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»
Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.
Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite. «Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»
«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»
Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.
António da Cunha Duarte Justo
Pegadas do Tempo