UMA MULHER ÁRABE COM ROSTO PRÓPRIO – MAJAM MAHMUD

Uma Revolução da Mulher seria a Solução

António Justo

Majam Mahmud, que antes preferia ser rapaz porque como mulher não via futuro digno, está agora orgulhosa do seu género. É uma rapper egípcia de 18 anos e de lenço na cabeça que não tem papas na língua quando fala. Não lhe interessa a política mas a discriminação. Na sua música lematiza temas tabu de uma sociedade medieval. Chama as coisas pelo nome sem os rodeios do oportuno. Enfrenta os problemas da nação; fala sem medo da discriminação da mulher e do assédio sexual na sociedade egípcia. O Ocidente mais interessado na guerra económica do que na justiça individual e social fecha os olhos da guerra dos homens contra as mulheres especialmente nas sociedades da Índia e da África.

Revolução da Mulher – Quando?

Segundo uma pesquisa das Nações Unidas 99,3% das mulheres egípcias indicam terem sido sexualmente molestadas.

Para Majam Mahmud o problema da discriminação sexual no Egipto é intocável porque é declarado tabu e como tal não precisa de leis que condenem o assédio sexual. Quem sofre as consequências cometidas pelos agressores não são os infratores mas as mulheres que depois têm de assumir o desprezo social. Os homens querem que as mulheres sejam graciosas e atractivas mas sem chamar a atenção. A solidariedade masculina não quer ser questionada, nem quer sofrer a concorrência entre homens e por isso a mulher terá de ser a eterna vítima, a culpada do desejo masculino. Este é lei e por isso não se pode questionar a si mesmo. Neste contexto, ser mulher livre é uma provocação. As mulheres calam-se e nas sombras do seu silêncio continua a fermentar a arrogância e a violência masculina. O problema é que o sistema não se muda, quem se muda são as pessoas e só quando estas se mudam, só então se muda o sistema. 

Numa altura em que ideias revolucionárias já germinam debaixo de cabeças com lenço, há mais motivos de esperança do que qualquer pretensa primavera árabe na sociedade norte-africana.

Majam Mahmud pergunta numa entrevista com o Speigel: “Que se pode esperar de uma sociedade onde o maior objectivo para uma mulher é casar?” Logo a seguir desabafa “Eu realmente acredito que a próxima revolução será uma revolução da mulher.” O problema da sociedade muçulmana mais que um problema religioso é um problema de homens e de cultura árabe cimentada no Corão e na sharia.

A verdadeira revolução está na transformação do espírito. O mundo árabe cairá um dia num caos se não se mudar, mas a mudança só as mulheres a podem fazer através de uma revolução doce ou também agressiva, à maneira de homem. Majam Mahmud é um exemplo muito necessário, uma luz a brilhar e mais que um grito de emancipação é uma voz modelo que grita por libertação do chauvinismo masculino com a sua consequente violação. A música é um dos melhores instrumentos para se transmitir uma revolução.

Deveria haver direito a asilo mais liberal para as mulheres perseguidas por razões de cultura ou religião. Se observamos as mulheres vítimas do exílio político observa-se, porém, que trazendo os homens consigo não há possibilidade de libertação individual.

É um facto sociológico que, de uma maneira geral, os homens não querem mudar-se preferindo continuar a viver ao abrigo das leis naturais que perpetuam o domínio do mais forte. A cultura árabe, fruto de uma geografia agreste, continua na elaborar as suas leis positivas com base na cópia da lei natural. (De não descurar que a cultura ocidental tem outras formas de discriminação, muito embora mais suave).

Aqui temos a ver com uma cultura misógina bárbara onde, sob a capa do islão, se dá continuidade à discriminação das antigas sociedades de clãs primitivos. (Temos porém que estar atentos na avaliação porque muito do que acontece sob a capa das religiões são costumes ancestrais nómadas da cultura árabe.)

Se se pretende um desenvolvimento são e sadio a discussão terá de ser feita em termos de sociologia e de antropologia. De facto a velha cultura egípcia tem elementos muito mais desenvolvidos do que lhes foi posteriormente imposto com a hegemonia da cultura bérbere árabe. Uma discussão fora destes moldes corre perigo de, sem notar, levar a água ao próprio moinho! O que está aqui em causa é a relação e a integração da feminilidade e da masculinidade na pessoa independentemente do ser homem ou mulher!

Há quem critique Majam Mahmud por trazer lenço na cabeça, um símbolo da repressão; estes esquecem porém que ela pode assim alcançar melhor um público conservador de mulheres que de outro modo não atingiria. Também há que estar-se atento na luta da emancipação para se não cair em movimentos emancipatórios baseados em princípios masculinos, como por vezes acontece no ocidente.

Uma sociedade patriarcalista que segue unilateralmente os vestígios de Abraão só poderá ser mudada com a mutação progressiva da mulher e só esta poderá constituir a base de uma verdadeira revolução.

António da Cunha Duarte Justo

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A IGREJA CATÓLICA INTERROGA AS FAMÍLIAS

A Família entre Direito Natural e Direito Positivo

António Justo

O Papa Francisco, consciente das posições teóricas da Igreja sobre a Família, está a fazer um levantamento de pareceres relativos à família a partir da experiência, a nível mundial nas comunidades católicas. Pretende unir os métodos de aquisição de conhecimento dedutivo (saber mais idealista adequado à capacidade especulativa) ao conhecimento indutivo (saber de experiência feito adequado à vivência local).

 A unidade e indissolubilidade do casamento são valores que a cristandade aceita de uma maneira geral. Já o mesmo não se diz em relação aos métodos anticonceptivos. Um saber a partir da experiência levará a instituição Igreja a reconhecer maior individualidade na escolha e decisão em questões de moral sexual. Com isto mantem-se fiel a si mesma na consciência de que, na terra em questões de moral, o último juiz, para o cristão é a consciência individual.

No Ocidente a família, a partir dos anos 60 tem sido objectivo de grandes adversidades, sendo apelidada de último baluarte burguês. De facto, a família constitui um grande poder em termos políticos e sociológicos; quem tiver a educação da família nas mãos tem o poder sobre o cidadão. O segredo da sobrevivência do judaísmo no mundo, apesar de ter vivido em meios, por vezes adversos, deve-se à coesão que vem do seu cultivo da família e da religião. (1)

No futuro, a pastoral familiar passará, certamente, a descentralizar-se e tenderá a assumir diferentes atitudes conforme os condicionalismos culturais locais; com o mudar das pessoas mudam-se os sistemas; isto terá consequências também a nível de liturgia e para-liturgias. A solidariedade vinculativa no casamento é um valor incontestável mas que não deve pôr de lado a tolerância e reconhecimento de opções tomadas à luz de circunstâncias adversas. Há que conciliar a consciência comunitária com a consciência individual sem a necessidade de recorrer a automatismos de condenações canónicas.

Hoje o relacionamento entre homem e mulher não é tanto analisado em termos de direito natural mas sim no compromisso moral entre os dois. Em sociedade, a autodeterminação e liberdade são mais consideradas.

A pílula não considera a lei natural, ultrapassa-a e é como tal aceite, também no que respeita à regulação dos nascimentos. É uma questão que os cônjuges regulam no foro da sua consciência. O acto sexual tem vindo a perder importância a nível da relação entre homem e mulher.

No caso de pessoas distantes da Igreja pretenderem o casamento, o padre deveria decidir caso por caso sem ter a necessidade de recorrer a actos burocráticos.

Numa altura em que a ciência intervém nas leis da natureza através da modificação genética entra-se em âmbitos novos que exigem novas posturas especulativas e uma responsabilidade especial. Fim do homem é gozar na sua existência a presença de vários mundos nas suas diversas dimensões.

A coexistência, como experiência antes do casamento, é vista por muitos teólogos como forma de preparação para o casamento.

No caso de pessoas divorciadas que se casam, uma pastoral inserida deveria admiti-las aos sacramentos. O recurso ao anulamento do casamento poderia ser uma oportunidade para se rever o passado e motivar a uma nova esperança e oportunidade. A misericórdia divina é infinita.

De uma maneira geral, na sociedade ocidental, a homossexualidade já não causa repulsa. A Igreja é contra a discriminação de homossexuais mas não aceita que sejam favorecidos pela lei como acontece com os heterossexuais com filhos. A igreja espera dos homossexuais fidelidade, solidariedade e confiança. Não deve ser negado o baptismo a uma criança de homossexuais. A pastoral da graça prevalece perante um ideal dogmático e a questão dos preservativos fazem mais parte do foro da consciência privada.

Uma moral sexual demasiadamente fixada no acto sexual, corre o risco de descurar o aspecto inter-relacional em que o nós tenha lugar próprio para o eu e para o tu.

Da relação interpessoal dá-se o crescimento e a experiência da comunidade. A experiência da comunhão conduz ao desenvolvimento individual noutras dimensões quer de auto-realização e afirmação quer de inclusão e de respeito mútuo. Nela se treina a confiança e a entrega.

A promoção da dignidade do matrimónio e da família passaria por uma pastoral familiar que se reveja numa “ igreja do lar” com uma missão no mundo. Nesse sentido deveriam ser implementadas para-liturgias familiares consistentes à semelhança das práticas das famílias judaicas.

 

Ética cristã – Uma Ética livre e do Discernimento

Em todas as sociedades ocidentais se assiste ao conflito entre a lei natural racional e as leis positivas parlamentares, numa verdadeira luta entre a vontade maioritária e a minoritária (a lei positiva inclui muitos princípios da lei natural).

A lei natural mostra o que é melhor e conduz à felicidade numa dinâmica de ultrapassar o momento presente no sentido do bem que se expressa na realização do ser. A razão humana funciona como critério de verdade e de objectividade enquanto a lei positiva se determina mais por interesses de maiorias.

A lei natural é para Paulo aquela voz que se traz inscrita no interior do coração humano e que é razoável e por isso não subjugada ao espaço nem ao tempo. Para Agostinho a lei natural consistia na visão antes da queda original.

A Igreja sempre teve como referência a lei natural; por isso atribui ao indivíduo a soberania de decisão sobre princípios morais universais, inerentes à natureza humana, reconhecendo-lhe a capacidade e o direito de se opor a normas elaboradas pelo Estado ou qualquer outra instituição (vale a soberania da consciência individual). A Igreja milenária, que acompanhou os mais diferentes regimes políticos até hoje, é perita em questões de durabilidade de valores e no reconhecer a imutabilidade e a caducidade de hábitos e costumes. Ao defender princípios do direito natural é necessariamente conservadora em relação ao direito positivo dos estados, porque permanece crítica a fenómenos e normas morais quando enfocados apenas sob os aspectos ad hoc do sentir e da vontade de uma política própria duma época. (De facto, embora a pena de morte seja decretada por uma maioria parlamentar em alguns estados, isso não a iliba de ir contra a lei natural do género).

A consistência da orientação cristã revela-se no facto de a dignidade humana ser perene e não depender de valores nem normas ocasionais que vão surgindo no suceder-se das sociedades. No indivíduo permanece algo imutável ao longo da história da humanidade. O ser humano, apesar de ambíguo e incoerente é único.

Consequentemente haverá sempre um contencioso entre a moral da Igreja e as intenções de poder dos estados. A Igreja permanece ao mesmo tempo como advogada do indivíduo e como momento de orientação, encontrando-se também ela, muitas vezes aprisionada por hábitos e costumes do direito positivo (celibato dos padres).

Assistimos ao conflito entre a lei natural racional que se revela como correctivo permanente aos costumes culturalmente adquiridos e a lei positiva (lei estatal – resultante da fidelidade/sujeição aos costumes culturais, ao tempo e ao regime político). Na lei natural prevalece o espírito da natureza aliado à consciência individual e como espírito crítico dos fenómenos sociais do tempo. No texto da natureza as leis naturais são como que a sua gramática também ela com excepções na ordenação e na evolução do mundo. Como a natureza tem leis naturais assim a cultura tem leis coerentes (morais) que a mantêm. A mudança realiza-se na interacção de uns com os outros. De facto também o pensamento não é sempre linear, também ele tem as suas curvas e muitas vezes só se pode orientar por probabilidades.

À Igreja compete o papel de apontar para a responsabilidade individual e social no equilíbrio (balance) entre direito natural e direito positivo e no espírito da “Igreja sempre renovando”. À Igreja institucional cabe o papel semelhante à da Constituição de um estado, sendo ela depois adaptada à pastoral local. A atitude da Igreja, que, à primeira vista, parece conservadora, é extremamente revolucionária e inovadora, ao direccionar a vista para o permanente e essencial.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

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(1)     O marxismo, o leninismo e em grande parte o estado secular, estão interessados em subornar a instituição família para poderem “nacionalizar” e reeducar a pessoa no sentido da gradual construção do estado proletário. Consciente de que quem tem o poder sobre a família tem o poder assegurado, a esquerda em geral, procura através de iniciativas legislativas demolir certos valores da família tradicional para melhor conseguir os seus propósitos, a longo prazo. Assim, a vivência familiar encontra-se hoje muito exposta e sujeita às correntes do tempo. Com a inclusão da praxis sexual como direito individual já em anos muito verdes (educação sexual escolar demasiado virada para o acto sexual), o Estado sobrevaloriza o acto sexual utilizando-o para fins emancipatórios também eles sem qualquer momento de valorização da família. Neste contexto a pastoral católica não poderá, também ela, continuar a sobrevalorizar o acto sexual (cf. fixação nos anticonceptivos) para passar a acentuar mais a importância da relação entre parceiros. De facto, a opção por constituir família pressupõe hoje uma decisão corajosa e altruísta em relação ao futuro e como tal difícil para pessoas mais individualistas ou pessimistas.

Neste sentido tornou-se uma prática importante da esquerda, impedir programas de apoio à família tradicional e às mães, para fomentar a construção de jardins infantis estatais na intenção de transferir a missão de educar para o Estado. Para uma melhor consecução dos seus objectivos escolhem como lugar privilegiado de influência os ministérios de educação através de funcionários, peritagem e sindicatos. (Deve-se porém aqui reconhecer um valor importante da esquerda: ela alerta cedo para a resolução de problemas relacionados com o acompanhamento do tempo). O socialismo é entendido como um estádio de preparação para o estabelecimento da sociedade comunista; por isso opõe-se à iniciativa privada que fomenta a pluralidade; esta contraria a concepção de Estado de pensar unitário. O capitalismo liberal, que também reduz a pessoa, na prática, a instrumento, veio justificar a política impeditiva duma vida familiar adaptada às necessidades do desenvolvimento natural das crianças. Pelo que se observa, tudo parece desenvolver-se no sentido de uma sociedade capitalista e comunista à maneira chinesa. Sem apoiar ideologias retrógrados nem progressistas há que aplicar esforços no sentido de se analisar o que se encontra nas entrelinhas da política e do senso comum que nos orienta.

Programa papal – Um Modelo também para a Lusofonia?

A Igreja não é “uma pequena capela” é “uma casa para todos”

António Justo

Um latino-americano mete mãos à obra de reformar uma estrutura europeia de feição demasiado nórdica, demasiado burocratizada. Um novo estilo de vida irá revolucionar o mundo. O Papa Francisco parte de uma perspectiva do mundo para a Europa/Vaticano e já não da Europa para o mundo. Será este o ponto de viragem iniciador da alternativa ao velho mundo?

Em entrevista à revista Brotéria, Francisco apresenta um “programa da Igreja” à altura do tempo. A sua opção pela entrevista, como forma de se comunicar, revela, no seu género, uma mudança paradigmática de relacionamento orientada para o povo, com um programa a partir da base (orto-praxia) e já não orientado para os intelectuais na sua forma típica de encíclica.

O Papa Francisco quer uma Igreja virada para a cura corporal e espiritual da humanidade em geral e das pessoas em particular! Ela é fermento e está para as pessoas que sofrem e não para se perder em lutas ideológicas porque também a doutrina está para servir. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campo após a batalha”. O lema é “curar feridas… começar por baixo… primeiro é preciso curar as feridas sociais”. O cristianismo não é uma ideologia mas uma visão/espiritualidade que deixa liberdade à pessoa: “Não deve haver nenhuma interferência na vida espiritual pessoal”.

Na sua perspectiva, a Igreja não deve continuar a falar continuamente sobre divórcio, gays, lésbicas, aborto e métodos de prevenção conceptiva. A sua missão principal é misericordiosa (caridade), ser e estar para as pessoas pobres e sofredoras e para os falhados, numa palavra, curar feridas. “Não julgues e não serás julgado”, dizia o Mestre. Na prática há demasiados pregadores da moral e não da vida!

O Papa quer uma mudança da perspectiva de reflexão e de orientação. O olhar passa a ser focado na base da pirâmide e não no vértice. Consequentemente as reformas serão conseguidas de baixo para cima e já não ordenadas de cima para baixo. Esta estratégia é benigna, possibilita o crescimento e evita divisões na Igreja. Imaginemos que Francisco, partindo duma posição sobranceira, ordenava a abolição do celibato. Certamente surgiriam logo muitos bispos que provocariam uma cisão na Igreja. Uma Igreja, permeável, que começa a renovação de baixo para cima, cresce organicamente sem necessidade de intervenções revolucionárias. As revoluções favorecem os revolucionários que como o azeite ficam sempre ao de cima da sociedade. A verdadeira revolução humana é Jesuína em que quem tem razão perde aparentemente.

As afirmações e atitudes do Papa levam a concluir que o importante é que cada um siga o seu caminho do amor amando à sua maneira. A sociedade e especialmente a Igreja não devem ser um campo de batalha de esquerda nem de direita. A Boa Nova deve ser o Sol do sistema humano. O amor é anterior à lei e esta deverá centrar-se na busca da justiça. Será importante depor a samarra dum clericalismo burocrático e moralista longe do povo, para se passar a arregaçar as mangas na vinha do Senhor!

O Papa não aposta no jogo dos pensamentos proibidos, é um pastor que pensa em público e quer uma discussão livre dentro da Igreja e da sociedade. Um Papa assim será uma bênção para a Igreja e para a humanidade. Para a Igreja porque a centra no que é importante, no bem das pessoas. Para a humanidade, porque ao ser o expoente máximo da estrutura mundialmente mais global, dá o exemplo de modelos de comportamento a serem seguidos pela classe política e suas instituições.

Francisco ao reafirmar que a Igreja não é apenas “uma pequena capela” mas sim “uma casa para todos” realça o seu universalismo e admoesta aqueles que a querem ver reduzida à própria capelinha. O Cristianismo considera “o outro”, “o samaritano„ como parte integrante de si mesmo e respeita as muitas alternativas de acesso e de interpretação da realidade. Por tudo isto ganha razão a afirmação de sociólogos americanos que, numa afirmação metafórica, diziam que, quando as instituições mundiais entrarem em derrocada, o catolicismo lhes sobreviverá 400 anos.

Querem-se cristãos sem a farda da moral

A sociedade como a Igreja, por mais nobre que seja a sua ética, está sempre condicionada às pessoas e ao espírito que cada época produz. Estas albergam em si o bem e o mal, próprios da pessoa e de cada época. Por isso, mais que ensombrar o pensamento com a crítica ao passado, interessa dar-se graças pelas pessoas luzeiro, de cada época, que conseguem aproximar-se mais da verdade, do bem e do belo no sentido da pessoa e do bem-comum. Para o fomento duma cultura positiva de paz, vai sendo tempo de se passar da crítica destrutiva de pessoas azedas para uma estratégia de fomentar apreciações de pessoas mais benignas e benevolentes.

Naturalmente que agora surgirão os moralistas e burocratas da praça a exigir que a instituição declare esta ou aquela atitude como norma quando isso, no foro da igreja, pertence à responsabilidade e à consciência individual. Por um lado condenam a fixação da Igreja em normas morais e por outro lado exigem que a Igreja declare canonicamente o exercício de certas práticas (aborto, eutanásia…) como objectivas. As ideologias apostam, por um lado na radicalidade dogmática e por outro num subjectivismo puramente anárquico; querem a igualdade do bem e do mal, uma indiferenciação analfabeta que exclua o que poderá ser verdade e o que poderá ser erro. O que quer que o Papa diga continuará a ser aviltado, como diz o provérbio popular: “Preso por ter cão e preso por não ter cão”. Cada um faz a guerra que lhe convém. Os eternos aborrecidos nunca se darão por contentes, querem a imposição de atitudes a partir do cume da pirâmide quando Francisco, no sentido da “ecclesia semper renovanda” sugere que partam ‘democraticamente’ das bases.

Já passaram os tempos da europa bárbara que precisava de ser domesticada com a acentuação na lei e no juiz. “O confessionário não é instrumento de tortura, mas o lugar da misericórdia”, indica o Papa. Francisco quer pastores que, sem farda moral, se encontrem com a pessoa na rua, no seu meio. Em direcção a um certo funcionarismo eclesial diz: “O povo de Deus quer pastores, não clérigos que actuam como burocratas ou funcionários do governo”.

 

Este Papa, de expressão latina, é uma bênção e uma oportunidade para se começar a pensar sobre uma mudança de rescrito cultural e uma metanoia espiritual. “Eu vejo a Igreja como um hospital de campo após a batalha”.

António da Cunha Duarte Justo

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Marcel Reich-Ranicki – O Papa da Literatura alemã morreu

Dos Homens de Caracter que a Democracia não tem produzido

 

António Justo

Marcel Reich-Ranicki morreu a 18.09 em Frankfurt aos 93 anos. Ele, que chegou a estar no campo de concentração nazi (Gueto de Varsóvia), tornou-se no grande advogado da literatura alemã e no crítico literário mais influente na Alemanha que inspirou profundamente, durante dezenas de anos.

 

De personalidade indomável e divertida, era o homem de caracter da vida pública onde a coragem tinha residência; polémico e controverso, com esquinas e cantos, não fugia à luta.

 

Escritores e editores chegavam a ter medo dele. Reich-Ranicki dizia de si “ nunca me encaixei no meu ambiente”. Antes de ler um livro, a que ia fazer a crítica, vestia um fato e punha a gravata. Para ele “o crítico não é um juiz, é o Ministério Público ou a defesa”.

 

Recebeu muitos prémios de literatura mas, quando a TV alemã em 2008, em sessão com a presença de vários canais e de toda a prominência cultural germânica, lhe atribuiu o prémio pelo seu programa “O Quarteto Literário”, Reich-Ranicki, durante a sessão live, subiu ao púlpito e declarou: “Não aceito este prêmio”, porque não se sentia bem na companhia de outros galardoados pela TV e que ele considerava duvidosos.

 

O programa “O Quarteto Literário” fez dele uma estrela de TV e contribuiu para que a literatura, com exigência, descesse a meios não consumidores de cultura.

 

Confesso que quando perdia algum programa dele ficava triste. No horizonte da TV e da cultura quase só se encontra relva sem árvores onde os pássaros da nossa fantasia e dos nossos ideais possam pousar para descansar e ganhar forças para novo voo. Na nossa cultura cada vez se torna tudo mais rasteiro, dificultando, às camadas jovens, a possibilidade de levantarem voo para novos horizontes.

 

No dizer do presidente alemão Gauk  “Marcel Reich-Ranicki, a quem os alemães queriam exterminar, após a barbárie, possuía a grandeza, de lhes abrir novos acessos para a sua cultura”.

 

A sua autobiografia “Minha Vida” pertence à categoria dos livros mais vendidos (bestseller) e onde se pode verificar a crueldade dos nazis e a influência do mal no ideário espiritual duma nação.

 

Morreu um homem da casa, um homem da cultura europeia; uma personalidade que aguentou os ventos do oportunismo e do pensar correcto que lava o cérebro duma maioria de actores da tribuna da nossa cultura.

 

Num tempo de cultura predominantemente rasteira irreflectida e em que a antiga burguesia cultural se proletariza, é importante lembrar pessoas de caracter como esta, para que a Democracia não produza apenas pessoas que, como papagaios, se repetem umas às outras orientadas pela opinião pública ditada pelo pensar correcto.

 

É melhor um Homem com defeitos do que uma sociedade indiferente e defeituosa sem Homens

 

António da Cunha Duarte Justo

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Os Heróis que a Democracia não produz!

Os Heróis que a Democracia precisa são heróis do Bem-comum

António Justo

Cada cultura, cada ideologia elabora e produz a própria constelação de heróis e santos que precisa. A cultura de guerra gera os heróis da guerra, a cultura comunista gera os “heróis do trabalho”, a cultura mediática gera as estrelas, a cultura religiosa gera os santos, a cultura árabe afirma os heróis mártires-bomba… Temos heróis da guerra, do trabalho, dos média, da Igreja, do islão, só nos faltam os heróis da democracia.

A Democracia não pode ser reduzida a uma máquina de fabricar pessoas em série. Uma democracia viva precisa de heróis, carece de cidadãos, que arrisquem a vida, por algo nobre; doutra forma, fomenta poltrões e morrões.

No céu da nossa democracia só se notam estrelas enganosas, estrelas cadentes. O Sol deixou de brilhar no horizonte. Os cidadãos não mostram auréola e a cultura escurece. Uma cultura com horizonte precisa de heróis porque neles se reúne a força do povo.

A democracia não pode estar predestinada a produzir mediania. Ela carece de heróis próprios e os heróis que ainda não gerou são os heróis do bem-comum.

Os heróis realizam aquilo que o cidadão normal não está disposto a realizar na sua privacidade. São a consciência junta dum povo, encarnada numa vontade firme de alguém que se sacrifique pelo bem-comum. Actos de valentia exigem coragem e a disposição de entrega, até da própria vida, por uma causa nobre a favor do outro. O santo e o herói não têm medo do inferno nem da vida; não embrulha a vida em mordomias e honrarias adquiridas à custa do fascismo do todos juntos.

A valentia do herói quer-se cultivada no dia-a-dia da luta de cada povo; forja-se na luta contra o medo cultivado e contra a honra da mais-valia usurpada ao povo, contra uma democracia de elites a querer viajar sem bilhete.

O herói é o cidadão honrado que procura superar-se a si mesmo, superar a adversidade, guiado por ideais nobres ao serviço dos outros. Ela está consciente que a mediocridade arrasta mediocridade e o exemplo do bem arrasta o bem.

Não podemos continuar a suportar uma democracia geradora de mediania; a democracia está em perigo, precisa de heroísmo popular se quer ultrapassar a miséria do pensar correcto do dia-a-dia e sair do medo da insegurança assistida.

No momento do perigo, a nação consciente cria o heroísmo correspondente. Precisamos duma cultura que produza políticos, heróis do bem-comum, que exonerem a elite dos anti-heróis do bem-comum e da guerra. 

António da Cunha Duarte Justo

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