A nova Ordem social e humana a implementar

O Mestre da Galileia inicia um novo Eixo da História

Deus não encarna numa Cultura mas no Homem

 

António Justo

“Mestre, vimos um homem a expulsar demónios em teu nome e procuramos impedir-lho porque ele não anda connosco…” – “Não o proibais… Quem não é contra nós é por nós…”. “Se alguém escandalizar algum destes pequeninos…melhor seria… o lançassem ao mar”. Se a tua mão…, se o teu pé…, se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo, deita-o fora porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena…” Mc 9,38-43.45.47-48 (1)

 

Dois pontos de referência: o Homem é mais que ele mesmo, é tornar-se.

O velho Adão (Homem) significa a separação de Deus; o novo Adão (Jesus Cristo) significa a união nEle. O mestre da Galileia explica a diferença aos seus discípulos.

 

Para se ter acesso intelectual a este texto é necessário ter-se em conta o contexto social em que foi proferido. O texto enquadra-se na disputa que havia entre os Judeus defensores da tradição antiga de Moisés e os Judeus seguidores da Boa Nova de Jesus (N T). As disputas eram por vezes violentas e escandalosas. Era o embate duma tradição autoritária institucionalista e legalista, fechada em si mesma (AT – aqui o Homem é apenas objecto, destinatário de salvação) com uma visão radicalmente nova, aberta a todo o ser humano, em que o Homem é agente (NT- aqui o Homem é sujeito activo, receptor e emissor de salvação – possui o gene divino) sendo, nesta, o Homem e Deus o centro de tudo, num processo de evolução humana até à estatura do protótipo Jesus Cristo (JC). (2) Deus não encarna num livro mas no Homem. (3).

 

Um outro elemento do contexto está na discussão, entre os discípulos, de quem entre eles seria o maior. Não tinham percebido a nova maneira de estar e ser na nova ordem humana e social JC. Nela a dignidade vem de baixo, surge do servir, do interior onde se encontra o germe divino a desenterrar numa atitude de louvor a Deus bem condensada no Magnificat.

 

A atmosfera de competição religiosa, inveja, intolerância e do escândalo provocado levam Jesus a ter de explicar, de forma clara, o que ali estava em jogo: duas mundivisões quase antagónicas na maneira de entender o mundo, Deus e o Homem (de notar que no AT havia a vocação messiânica que desagua no JC, o problema estava nas diferentes facções e vivências; ao falar aqui de AT refiro-me à lei petrificada e alienatória que obriga as pessoas a terem medo e a andarem de cabeça baixa). Também os seus discípulos se embrenhavam nos conflitos, por vezes, ainda com o espírito velho e isso provocava escândalo entre os fiéis mais frágeis, aos “pequeninos” na fé. De facto, os discípulos queriam reservar para si a patente JC e construir muros, tal como os “fariseus„ faziam. Ainda não tinham compreendido que a porta de acesso ao divino e ao humano é o Homem no JC e não uma mera doutrina/lei.

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Jesus emprega uma linguagem simbólica e usa nela as imagens de expressão da época.

Embora o radicalismo das imagens pareça ser uma hipérbole, as metáforas usadas querem incutir no discípulo a seriedade e a radicalidade da nova maneira de ser e definir a Realidade e o Homem (democracia humana radical – eclésia). Nas metáforas, aqui empregadas usa-se o órgão pela função que desempenha (método de comunicação muito usado na Bíblia). As mãos, os pés fazem aquilo que se vê e que é natural a partir duma visão antiga legalista, opressora da pessoa e da liberdade individual. Por isso é preciso cortar radicalmente com a visão/olho e os meios/pé e mão que levam à sua realização. Na lei há uma mão (agir velho), um pé (submissão: porque Jesus é contra o domínio lava os pés dos discípulos), um olho (visão/mentalidade velha), que não pode ser assumido na Boa Nova; chegou a hora de usar o olho divino.

Jesus não manda lançar fora os dois olhos, as duas mãos, os dois pés na Geena. Sabe que a realidade se expressa de maneira bipolar e por isso escolhe exemplos de órgãos duplos. Isto porque a pessoa consta de duas componentes, a materialista e a divina. Trata-se aqui de deitar fora a parte má de nós. Aquela que nos impede a salvação e o acesso ao bem. Na nova visão do mundo iniciada em e por J C há uma dimensão trinitária, não apenas a dualista. Todos são chamados a sacrificar algo. O sacrifício por maior que seja ainda é pequeno comparado com o mais importante que é o reino de Deus e a tragédia da catástrofe que seria tornar-se lixo.

 

Também não chegam as obras porque também estas podem acontecer numa relação de objecto-sujeito e não de sujeito-sujeito (A ortodoxia deve ceder a uma ortopraxia relacional pessoal). Esta implica uma relação sujeito-sujeito (à imagem da relação entre Jesus e o pai no JC). O Homem novo é fundamentalmente desobediente ao ambiente porque é filho de Deus e não da lei.

 

O Filho do Homem quer reiniciar a criação e estabelecer uma nova ordem e uma nova mentalidade em certo paradoxo com a tradição. O que estava em questão não era a passagem duma crença para outra nem duma ideologia para outra. O que estava em questão era a destruição dos muros elaborados para a subjugação do Homem e em benefício de alguns. Tudo o que prejudica o desenvolvimento do Homem deve ser sacrificado. As coisas não têm valor se não servem o Homem. A grande viragem axial da História iniciada pelo JC é o reconhecimento (consciência nova) que o novo Homem se encontra no centro do ser, na divindade. Agora não se trata de descobrir Deus fora porque ele se encontra dentro, como se verifica no JC. Tarefa do Homem é integrar em Deus a sua parte de fora. Por isso o Cristianismo é muito mais que uma religião, não podendo, por isso, ser reduzido a uma cristandade, nem deixar-se abusar tornando-se preparador de ovelhas submissas para uma sociedade política e económica que se expressa mais pela exploração do Homem do que pela sua libertação.

 

A mudança (metanoia) não pode acontecer sem o corte total com a maneira de pensar e agir normal (habitual). A dor que custa o cortar com o passado, com o homem velho, não é nada em comparação com a nova vida. O Homem novo passa a ser fonte de vida, deixando de beber a água menos límpida trazida por outras vias/mentalidade patriarcalista proveniente duma sociedade de tribos ou de ideologias arrogantes. A pessoa nova é filha de Deus e não apenas adepta ou súbdita! A filiação divina concede a todo o Homem, por natureza, a dignidade de participar na divindade e tornar-se também obreiro de salvação. As estruturas exteriores são condicionalismos necessários mas a purificar também. O Homem, para entrar nesta nova ordem do Homem e da criação (novo eixo da História, nova infra e supraestrutura), terá que mutilar muito do passado e iniciar uma mudança de atitude. O Homem novo já não se restringe à verdade empacotada na roupagem da lei ou da cultura porque a verdade acontece na pessoa livre e sem medo de Deus nem do diabo. O valor da lei e da cultura, se não é contra o Homem serve de referência, podendo tornar-se numa pedagogia/liturgia de iniciação. Todos nós precisamos duma referência e esta implica também o reconhecimento da eclésia (Deus, a Realidade não é só pessoa mas também comunidade!); se não fosse a Igreja com o seu pecado, por muito estranho que pareça, (até o espírito precisa dum corpo limitado!) a cristandade não teria passado dos primeiros séculos e da vivência de pequenos grupos. Através da culpa e nela conseguiu afirmar-se no mundo entre sociedades também elas a viver da culpa (“Oh felix culpa”- reconhecia Paulo!) Sem a culpa teríamos perdido a memória! Ela faz-nos conscientes e abre-nos a porta de entrada para o JC. O seguimento do JC exige a auto-renúncia (deixar o homem velho) para assumir a atitude do JC e assim se tornar no sal da terra. Por isso é preciso cortar o lixo em nós.

 

Geena era a lixeira de Jerusalém; o fogo dessa fogueira era alimentado pelos restos (lixo) não aproveitáveis, aí lançados pelos moradores da cidade.

 

Jesus, nestas conversas com os discípulos, procura iniciá-los na nova mística (no novo Adão) que está a irromper na nova concepção da realidade na natureza JC e na sua comunidade. Ele está muito preocupado com o escândalo que uns e outros dão aos “pequenos na fé” ao defenderem posições numa práxis ainda do velho Adão.

 

Jesus corta com um Deus senhorial, que legitimava, consequentemente, todos os senhorios sociais e humanos. O lugar de acontecimento divino não é já a sinagoga, a lei nem a moral de costumes. O lugar do acontecer divino passa a ser o Homem, a terra. Deus desce à terra (encarnação!) e não ao templo nem a uma cultura, como era dantes (deslegitimou toda a cultura ou ideologia que se arroga para si o monopólio da divindade; neste sentido, também atitudes senhoriais da igreja petrina, e especialmente o Islão são um regresso a um “antigo testamento” legalista). Esta é a grande revelação do cristianismo. Deus entra no mundo pelo Homem, pelo JC e o acesso ao divino e ao humano é agora o Homem, através do seu protótipo e da natureza JC. As instituições, as leis, os gurus e as autoridades perdem a sua relevância. O ser humano, na convergência do JC atinge agora a sua maioridade, deixa de ser criança e de ser escravo do exterior. Nos nossos genes trazemos a divindade e a materialidade, temos uma personalidade múltipla. Daí a necessidade duma aprendizagem pedagógica. Por vezes o espírito encontra-se enterrado mesmo no fundo de nós. Necessita da ajuda dos irmãos (eclésia) e do Espírito Santo para adquirir consciência e realizar a natureza JC. A dignidade não vem do cargo nem do serviço mas do servir com a consciência de ser verdadeiramente um membro da família de Deus a realizar o Seu reino. Não há mestres, todos estão vocacionados a ser caminho, verdade e vida em serviço e interacção com o JC. Mesmo aquele que se usa de Jesus para expulsar os diabos, se o faz no seu espírito isto é suficiente porque o novo reino, não se confina à pertença a este ou àquele grupo, é uma atitude de tudo em todos num esforço comum de assumir a natureza JC. Na resposta que deu aos discípulos, Jesus condena a sua mentalidade de arame farpado, apontando para a tolerância do bem noutros ambientes. Não é relevante o religioso ou o profano, qualitativo é o serviço do Homem, ao Homem à medida do JC. Há muitos cristãos anónimos que actuam no espírito de Cristo e muitos cristãos registados que não entenderam o espírito (natureza) de Cristo, isto é, a realidade que são nEle. Há que aceitar a diferença, todos nos encontramos a caminho… A nova ordem não se delimita pelo muro das definições ou pertenças mas pela consciência da filiação divina. A nova orientação não é o templo nem a lei mas o Homem e em todo ele se encontra enterrado um tesouro a descobrir.

 

A nova ética é estar em serviço, não servindo nem sendo servido. Agimos todos para o bem na tarefa de realizar o JC em nós e no mundo. O JC não pretende substituir um sistema antigo por outro sistema. Ele sabe que os sistemas se definem pelo poder que legitima a violência entre si e contra terceiros. Por isso o JC aposta apenas no Homem, na pessoa humana, que é vítima de si mesma, das estruturas, da lei e até da moral. (Esta é uma razão porque a Igreja apela à transformação do homem a nível individual não se pondo à frente de revoluções) Na nova ordem do mundo e do Homem não há uns a dar ordens e outros a cumprir, nele todos são filhos divinos em atitude de servir uns aos outros no espírito de uns nos outros. O ajudar o outro é ajuda a mim na construção do nós. Se todos os filhos do rei são príncipes, todo o ser humano é príncipe na realeza divina. Por isso não pode haver escravos nem senhores, apenas filhos. Não se trata de se procurar a salvação mas de salvar-se salvando em comunhão com o JC no amor do Paráclito.

 

Com o JC o Homem alcançou a sua maioridade e plenitude (transformação do velho Adão no novo Adão), tendo de se regenerar a partir de dentro, numa caminhada do Jesus para o Cristo. No cadinho da nossa vida teremos de expulsar o lixo, aquilo que nos impede de resplandecermos a divindade.

 

Quem entra na relação com JC encontra-se na fonte da vida que é o Paráclito, passando este a agir nele. JC quebrou os muros do eu para mergulhar no nós, na divindade, onde cada pessoa assume a consciência de todas as pessoas numa imanência transcendente (corpo místico e realidade trinitária).

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

 

(1)                 Para Marcos o acesso a Jesus Cristo só é possível mediante uma mudança radical de atitude e mentalidade, uma visão espiritual (ver com o olho de Deus) porque, num mundo que vive sobretudo de exterioridades e da afirmação pelo contrário, a identidade do Messias encontra-se oculta, precisando duma pedagogia especial, duma iniciação (catarses do intelecto e da prática) para se poder chegar a ela (evolução do Adão velho para o novo Adão). O JC encontra-se na intimidade do céu com a terra, por isso é preciso subir ao céu para poder compreender a terra. Os discípulos, ainda mal iniciados, discutiam acerca do céu e da terra mas principalmente a nível de intelecto e da velha mentalidade (olho do domínio) sem a “vivência” da fé que parte da intimidade/unidade (reino de Deus) e não da divisão.

(2)                 Resumindo: A mentalidade semita de estrutura autoritária tribal representada num Deus distante e legalista (Moisés, AT) com a subjacente concepção de Homem escravo, objecto de salvação, é contrariada pela nova atitude judaica expressa no JC que reconhece em Deus o pai e em cada Homem um filho de Deus e como tal sujeito de salvação; esta mundivisão desautoriza as instituições e as leis que se afirmem no sustentáculo da velha mentalidade. Esta nova consciência de ser e estar no mundo é de tal modo revolucionária que levou os historiadores a considerar o JC como eixo da História. De notar que apesar de 2000 anos passados ainda prevalece nas pessoas e nas instituições a velha mentalidade. A “democracia de filhos de Deus” em que cada Homem é realmente “príncipe herdeiro”, continua, duma maneira geral a ser uma utopia cristã.

(3)                 Deus não encarna num livro, numa língua, numa cultura mas no Homem. O centro do acontecimento não está na Bíblia, no Corão, no Templo, na nação, no costume, no chefe mas no Homem, filho de Deus. A lei, a tribo, a nação, a cultura não podem subordinar o Homem individual. Cada ser humano, como filho de Deus faz parte duma realidade maior! A sua dignidade é intocável (Daqui os direitos do Homem). A incarnação/inlibração de Deus no Corão constitui um retrocesso histórico; por isso continuam a subjugar o Homem à sua cultura. Com JC a referência de pensamento religioso passa a ser uma pessoa e não um abstrato, um constructo. O organigrama de pensamento e social tem de ser elaborado ao contrário, pondo a pirâmide ao contrário. Pensar o eu a partir do nós, do nós divino.

 

EGIPTO QUO VADIS?

“O Islão não oferece soluções”

 António Justo

“Segundo estimativas de especialistas, os militares egípcios, com pessoal em uniforme e civil, são hoje os maiores dadores de emprego no país”, como descreve a notável revista alemã “Cicero”, August 2012, num artigo sobre o Egipto. O negócio dos generais cifra-se entre 10 e 40% da economia egípcia, refere ainda a revista.

Agora, com o islamista Mohammed Mursi na presidência, os militares perderam influência no aparelho do Estado. Apesar disto, Mursi (que vem do seio da radical Irmandade Muçulmana), terá de se moderar nas suas pretensões de maior islamização do país, se pretende conseguir impulsionar a economia que só será viável num clima de estabilidade política e social. Também não poderá renunciar às receitas do turismo, outro factor modernizador a domar o zelo e a fúria inicial de forças islamistas que pretendiam irradiar da cultura egípcia o que não fosse islâmico.

Também a rivalidade vigente, entre o Tribunal Constitucional, Militares e Presidente, pode revelar-se como factor moderador das intenções do Presidente e impedir confrontações. Entretanto os islamistas, com a sua maioria parlamentar, demonstraram que não tinham soluções para os problemas do país: alimentação, escola e hospital. Até setembro terá de ser elaborada uma nova constituição a ser aprovada por plebiscito.

“O Islão não oferece soluções” disse Amr Mohammed Musa, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egipto em entrevista a “Cícero”. Amr Musa  foi escolhido para ministro das Relações Exteriores, a desejo dos militares, para indicar uma certa continuidade pró-ocidental e que a política anti-israelita não será o caminho da política externa.

O ministro dos meios de comunicação social (estatais) é Salahedin al Maksud, também ele, membro eminente da Irmandade Muçulmana. O programa de promoção do islamismo encontra-se assim em boas mãos. Uma inovação da TV estatal egípcia revelou-se no facto de o noticiário passar a ser apresentado, depois de 50 anos, por uma jornalista com véu islâmico na cabeça. Esta inovação foi exibida como sendo uma “vitória da Revolução de 25 de Janeiro”. A agenda da “Irmandade Muçulmana” é longa; agora que se encontra no poder, exercê-lo-á com decretos, não precisando, para já, de recorrer à violência física. Entretanto a censura acentua-se e a insegurança nas comunidades não muçulmanas também. O objectivo declarado da Irmandade Muçulmana fundada em 1928 é estabelecer uma ordem social subjugada à moral do Corão e à jurisprudência da Sharia islâmica.

Informação estrutural enganosa ou factual descontextuada

Nos sistemas muçulmanos, a formação de uma oligarquia militar corresponde, por vezes, por muito contraditório que pareça, a um elemento diferenciador duma sociedade de cunho religioso monolítico e hegemónico onde perspectivas seculares civis se tornam difíceis. Os militares, tal como na Turquia, formam como que uma pequena nobreza, que se tem revelado como elemento correctivo do islamismo absorvente e omnipresente. Ao contrário da democracia ocidental que favorece a alternância dos partidos mais fortes no governo, o sistema hegemónico muçulmano favorece o fenómeno dual: dum lado os militares e do outro, os imames (cabeças das mesquitas: o seu poder de mobilização política pode verificar-se nas demonstrações organizadas e realizadas às sextas-feiras logo a seguir às orações nas mesquitas) e a revolta terrorista. Por muito estranho que pareça os militares têm-se revelado como parceiros mais sérios em relação ao estrangeiro atendendo aos interesses comuns. De lembrar, neste contexto o ataque sistemático dos grupos islâmicos radicais contra a formação de exércitos e a organização policial estatal, no Afeganistão, Iraque, etc.

Se aos países ocidentais, o que mais os une é o sistema liberal capitalista (competição em torno do trabalho/consumo), aos países muçulmanos/árabes une-os a religião muçulmana que é ao mesmo tempo programa de vida e ideal político…

Nas sociedades muçulmanas não se tem revelado possível o desenvolvimento duma cultura cívica/secular (possibilitadora duma democracia aberta) por razões teológicas, antropológicas e sociológicas. Enquanto o ocidente se orienta pela fórmula cristã “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César” (princípio de distinção entre realidade secular e realidade religiosa: Homem por um lado como ser divino e por outro como ser secular), as sociedades de cunho árabe não conhecem esta dualidade deixando tudo para Deus, sem nada para o Homem numa atitude de súbdito e, consequentemente, de ser definido e controlado apenas pela religião. A mitologia ocidental ao conceber o Homem como filho de Deus reconhece no Homem os genes divinos e consequentemente o direito do Homem à individuação e à personalização. No Islão não há o conceito de Homem como filho de Deus nem tão-pouco o Homem pode ter comunhão com Alá tanto no aquém como no além. Isto ocasiona diferentes antropologias e diferentes sociologias, com as consequentes maneiras de estar no mundo e de se compreender o Homem e a política. Se nos países de influência cristã o Homem é concebido como ser autónomo, anterior ao religioso, nos países de influência islâmica o Homem é concebido como súbdito, só tendo sentido dentro do religioso, da Uma (a grande comunidade islâmica). Aqui, o ser humano individual não tem consistência pessoal, só grupal. Daí o facto de, quando se fala em democracia, assim como quando se fala em direitos humanos, os ocidentais e os árabes compreenderem coisas totalmente diferentes.

Geralmente, os jornalistas e os políticos ocidentais, quando avaliam os acontecimentos nos estados árabes e quando falam de integração de estrangeiros equivocam-se porque julgam que as palavras e as manifestações públicas duma cultura são equivalentes às da outra, quando, muitas vezes expressam precisamente o contrário do que se diz delas. Enquanto o Ocidente aposta sobretudo na força militar e na expansão económica os países de influência árabe apostam tudo na religião e na expansão da procriação.

O entusiasmo e optimismo dos meios de comunicação ocidental nas notícias sobre o Norte de África e outros conflitos internacionais leva o público a avaliações não aferidas à realidade meramente factual.

A informação publicada, além de ser equacionada em perspectivas políticas condicionadas pela própria localização política, sofre do equívoco de falar de realidades que, muitas vezes, não passam de projecções da própria mundivisão sobre a dos outros. Temos assim uma informação estrutural do satus quo enganosa ou factual descontextuada.

Por vezes tem-se a impressão de se viver no século V do império romano, assolado, ao mesmo tempo, interna e externamente. Os tempos que se aproximam para o norte de África e para a Europa pressagiam muita instabilidade! Todos terão de mudar muito a nível de mentalidades e de estratégias de poder!

António da Cunha Duarte Justo

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Circuncisão no Islão e no Judaísmo: Acção Criminosa

Tribunal alemão toma uma Decisão corajosa

 

António Justo

A circuncisão de meninos no Islão e no Judaísmo, segundo a sentença do Tribunal Distrital de Colónia, constitui uma agressão criminosa.

 

Mais importante que a liberdade de religião é a integridade corporal e a autodeterminação da criança, argumenta o tribunal, na sua decisão de ontem, 26.06.2012.

 

O direito de autodeterminação das comunidades religiosas não se pode sobrepor ao direito humano da integridade corporal.

 

Este julgamento terá consequências muito importantes.

 

Esta decisão deveria ser um acto de encorajamento para políticos e outros tribunais no sentido de intervirem mais corajosamente em crimes de base cultural como casamentos forçados e crimes de honra, ainda muito em voga em determinadas culturas.

 

Até agora, o corte do clitóris das meninas (praticado em grande parte do mundo muçulmano) era considerado acto criminoso no Ocidente, mas o sofrimento do acto agressivo da circuncisão de meninos ainda não tinha chegado à consciência das pessoas.

 

A decisão do Tribunal é uma vitória contra a barbaridade e leva uma consciência mais sensível a actos culturais que não respeitam a dignidade e a integridade da pessoa e constitui um apelo ao respeito pelo direito dos que não têm voz.

A matança ritual de animais, como no caso muçulmano e judio, em que os animais são mortos duma maneira brutal porque morrem sangrando, não foi proibida na Alemanha por “respeito à religião”. Também aqui será necessária uma consciência mais afinada.

 

António da Cunha Duarte Justo

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DOCUMENTA – A Exposição de Arte Contemporânea mais importante do Mundo

O Absolutismo na Arte

António Justo

 

De cinco em cinco anos peregrinam, de todas as partes do mundo, milhares de artistas e admiradores da arte contemporânea até Kassel, Alemanha. A documenta foi criada em 1955, em Kassel pelo artista Arnold Bode que pretendia, com a iniciativa, abstrair das ruinas da guerra e seguir novos horizontes ao serviço da abstracção. Na primeira exposição houve sobretudo obras de arte que tinham sido proibidas e perseguidas durante o regime nazi e intituladas de arte degenerada (“Entartete Kunst”).

 

A documenta alonga-se por 100 dias. Nesta altura a cidade transforma-se num mar de gentes de portes exóticos: um aspecto folclorístico que faz lembrar os mercados da idade média em torno das catedrais e, assim, forma, já por si, também uma obra de arte social. Kassel transfigura-se numa praça de arte que se estende por edifícios, parques e outros espaços públicos da cidade. A documenta apresenta uma perspectiva transversal da arte contemporânea e permite fazer o ponto da situação mundial em questões de arte e ocasionar uma certa orientação de perspectiva. Na sua história de 57 anos com 13 exposições, documenta as contradições e ambivalências do Homem e do tempo num currículo de realização e fracasso em processo de morte e ressurgimento.

 

A dOCUMENTA (expressão gráfica da documenta 13) vive da ambivalência e do escândalo na procura dum futuro prospectivo a partir dum presente impregnado de contradições e inconsistências que se expressam de documenta para documenta, numa manifestação de diferentes atitudes artísticas a que assistem diferentes filosofias, teorias, correntes políticas e sociais contemporâneas.

 

A documenta13, realiza-se de 9 de Junho a 16 de Setembro de 2012. A última documenta/2007 conseguiu vender 754.301 bilhetes. O objectivo da actual é atingir um milhão de visitantes. Ela é ao mesmo tempo o maior festival Open-Air. Kassel oferece possibilidades ilimitadas: o visitante tem a oportunidade de se alegrar e irritar sobre a arte.

 

A documenta (13), foi elaborada sob o lema “Colapso e Reconstrução” e tem como chefe/gerente a americana Carolyn Christov-Bakargiev apelidada por jornalistas de “Lady Gaga”. Ela situa-se nas pegadas e tradição das 12 documentas anteriores prosseguindo um espírito de continuidade de arte afirmativa e provocativa. Procura apresentar o válido como inválido e vice-versa, documentando assim as contradições da actualidade.

 

A direcção da documenta escolhe para chefe de cada exposição, um curador/chefe da documenta equipado de poderes absolutos; este pode pôr e dispor à sua vontade de maneira dogmática a própria filosofia. Na documenta, aqui em Kassel, a arte arroga-se alvores absolutistas. Carolyn Christov-Bakargiev encena-se como se fosse a sacerdotisa da arte, não lhe faltando a estola, o gesto religioso e o dogmatismo ostentado. O sensacionalismo em torno dela talvez venha do facto Carolyn Christov-Bakargiev querer, com idiotices mudar o nosso pensamento, através da documenta. Desta vez participam 297 artistas e grupos de artistas de todo o mundo.

 

“Direito de Voto para Cães e Morangos”

Em torno da dOCUMENTA 13 tem havido muita discussão na imprensa; a chefe tem-se revelado como bastante jacobina, não suportado mesmo nada que contradiga a sua ideologia/visão de arte. Para Josef Beuys artista “ é toda a pessoa”;  para a chefe da documenta, artista é toda a natureza, ponto.  Carolyn Christov-Bakargiev exige o direito de voto também para os morangos e para os cães; também há três cães da documenta treinados e colocados à disposição de visitantes que se deixarão conduzir pelos caninos; o sentido desta iniciativa é levar o visitante a ver a atitude do cão perante a obra de arte; intenção é inverter os valores colocando o Homem ao nível do cão e do morango. As suas posições radicais têm sido muito criticadas, muito embora a sua posição extremista possa ajudar uma sociedade surda-muda a notar que a natureza é sua companheira. A exposição paralela à documenta organizada na igreja católica St Elisabeth, onde o artista Stephan Balkenhol apresenta (na torre) uma instalação com um homem de braços abertos sobre um globo dourado, provocou os furores da chefe da documenta que não queria ver o Homem numa posição superior ao dos animais e das plantas. Sentiu-se “ofendida” por aquela instalação que questiona a sua intenção niilista não suportando o optimismo do Homem como senhor e corresponsável da natureza. Isto não passa dum ultraje invertido pois encontra na torre da igreja algo irritante para quem quer um mundo plano com tudo sem moldura, tudo abstrato, que desvie as atenções do humano.

 

A documenta quer ser um espelho da arte contemporânea mas negligencia grande parte da arte e em especial a pintura, o realismo, fotorrealismo, o realismo fantástico e o surrealismo. Por isso já houve movimentos anti documenta que foram imediatamente oprimidos. As pessoas não ousam opor-se ao espírito da documenta sejam cientistas da arte seja o povo. O doentio, o dilacerado tem sido tematizado em instalações e esculturas. Contrapõe-se o desastroso, o ameaçador em rituais negadores de ritos optimistas da religião e da sociedade. Um certo espírito da documenta quer afirmar-se como religião secular contra o religioso cristão e passar à margem das pessoas. Parece não reconhecer o facto de vivermos todos num mesmo mundo plurifacetado feito de muitos universos complementares.

 

Numa perspectiva cristã da arte o ser humano está chamado a mais do que a gritar. O Homem é o caminho de Deus e deve reconhecer-se como companheiro adulto da natureza mas sem abdicar de ser sua consciência. A religião e a arte devem ser os sismógrafos dos problemas. A arte também tem de se entender como resposta ao mundo na responsabilidade; por isso, também ela deve questionar os próprios conceitos. Por vezes tem-se a impressão, em certos meios ideológicos e de certa arte que a imagem de Homem constitui, já por ela, uma provocação. Esquecem que o olhar cego e vago da realidade é um olhar de governantes ou de quem se não quer envolver ou deixar tudo às forças duma natura sem cultura.

 

A arte abre novas visões mas precisa da condição humana para tornar não só a miséria humana visível mas também a parte nobre como a religião pretende afirmar. Também Dostoievski dizia “o belo libertará o mundo”. Quando se desiste da religião, o mundo torna-se em ameaça, como pretendem certas tendências ideológicas. Torna-se importante libertar a religião e a arte do medo e das ideologias.

 

A arte também é importante como catarsis, como crítica, sem ter necessidade de exilar a esperança. Não se podem tornar cúmplices com os senhores que roubam o mundo roubando a senhoria ao Homem tornando-o seu arrendatário e reduzindo-o a indivíduo anónimo numa imagem sem nós, como se uma árvore não estivesse incardinada num biótopo. Eu sou rei e escravo soberano, permaneço mistério e tanto a arte como a religião, como a ciência, a política, não conhecem um porquê da realidade. A arte e a religião protegem o mistério, aquilo que dá grandeza e perspectiva ao Homem e à natureza. Seria abstruso que arte e religião não reconhecessem o mesmo coração donde provêm, do epicentro da intuição que proporciona o sonho na empatia. Até ao séc. XVIII religião e arte viviam em relação amorosa, queriam modelar e tornar visível o mistério. Arte e religião questionam as compreensões imediatas. Com o racionalismo e o materialismo deu-se o divórcio do sagrado e do profano e dividiu-se o povo em sábios e ignorantes caindo-se num fundamentalismo de posições. Hoje torna-se óbvia também uma reculturização, uma nova consciência, à margem dum normativo racional que aprisiona a realidade em imagens e caixilhos religiosos, científicos, ideológicos, políticos, etc.

 

Na casa da arte, tal como “na casa do Pai” há muitas mansões; seria miopia expulsar a religião e o Homem do templo da arte e a arte da religião. Realidade e imagem são imagens!… Fazemos todos parte dum mesmo mundo, numa realidade complementar do não só… mas também…

 

António da Cunha Duarte Justo

antoniocunhajusto@gmail.com

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PENTECOSTES – O PRINCÍPIO DA DEMOCRACIA ESPIRITUAL


Liberdade e Inovação são Qualidades do Espírito

 

António Justo

 

 

No Natal Deus desce à terra, torna-se carne/terra. Depois vem a Páscoa a apontar para a vida como via-sacra em que a Cruz se torna símbolo da existência que é feita de morte e de ressurreição. No Pentecostes completa-se o ciclo vital em que a natureza através da pessoa humana ergue os olhos da terra para o alto, para o céu, no reconhecimento de que o Homem é feito de terra e céu e Deus também. Proximidade e distância são partes integrantes da pessoa. As fronteiras do homem e do seu biótopo não se deixam definir pelo horizonte que o nosso olhar permite. Há o longe, o distante que chama e tudo move para lá dos nossos limites sensoriais. O longe só é perceptível aos olhos do coração.

 

O Pentecostes inicia a capacidade de respirar um ar invisível que tudo suporta. A experiência da luz (línguas de fogo que vêm do alto) afasta o medo e possibilita a aventura criativa e criadora. Cada ser fica cheio de luz, grávido de Deus. O problema é a crusta, o limite (identificador) que o envolve e leva a afirmar o limite contra o universal integrador. O Paráclito é a essência comum ao particular e ao todo; ele é o nós do eu e do tu, à imagem do eu (Pai) e do tu (Filho JC) que, em relação íntima, cria o terceiro, o nós (Espírito). Por isso a celebração do Pentecostes anda ligada à festa da Trindade. Ireneu de Lyon condensou a Trindade na frase seguinte: «O Pai é complacente e ordena, o filho obra e forma, o Espírito nutre e incrementa». Segundo a filosofia cristã o ser humano está chamado a ser parceiro divino da criação à imagem do JC na filiação divina. A relação criador-criatura faz do cristianismo um monoteísmo mitigado.

 

Assim, não chega correr com os outros; cristianismo é mais que compromisso, é ser margem e rio ao mesmo tempo, espírito e matéria em reconciliação. Na metáfora da realidade que a natureza oferece, no ciclo da água que na sua essência inclui, ao mesmo tempo, os estados sólido, líquido e gasoso, pode pressentir-se a essência do nosso ser: mudança e permanência, espírito e matéria, igual e diferente. O mesmo somos nós a nível de indivíduo e de eclésia. O Paráclito é um desafio à solidariedade e conciliação dos elementos, à capacidade de adaptação contínua ao novo, porque só assim permanecemos nós, não podendo ser reduzidos a mero leito onde a vida passa.

 

O espírito tem uma relação céptica perante o leito mas sem ele faltar-lhe-ia o seu fundamento para poder ser fluxo. A existência é feita de perguntas e respostas em contínua interacção. Parar numa pergunta ou numa resposta seria negar a vida; por isso o Espírito fala em várias línguas, também a tua e a minha. O espírito flui onde e como quer. Importante é a abertura e não a incrustação de vida em preconceitos teorias ou dogmas, como se a verdade e a realidade fosse apenas sólida. Se a afirmarmos como sólida ela é líquida e se a afirmarmos líquida ela é gasosa, sim porque a questão está na nossa visão de perspectiva que é selectiva e não inclusiva.

 

Pentecostes é também celebrado como o aniversário do nascimento da Igreja como comunidade com a missão de viver e levar a Boa Nova à humanidade e de a viver em comunhão com a natureza. Pentecostes vem do grego e significa o “quinquagésimo dia depois” da Páscoa; o Espírito germina na pessoa e na comunidade fazendo deles agentes com a capacidade de falar muitas línguas, a linguagem do amor que é percebida nas mais diversas paragens independentemente de raças e culturas.

 

Cinquenta dias após a “perda” do JC, a tristeza dos discípulos é compensada pela descoberta dele na pessoa e na comunidade na vivência do Espírito; agora a presença de Deus na Humanidade passa a ser cada pessoa, cada cristão que aja no espírito e consciência do JC que resume o espírito e a matéria.

 

A Comunidade eclesial é aberta a todos os povos (idiomas) não se impondo uma cultura sobre a outra sendo seu característico distintivo a ágape, a caritas, o amor. O que a torre de Babel dispersou antes, congrega agora o Paráclito envolvendo tudo no fogo do amor. O característico cristão é a relação e inter-relação pessoal expressa na relação do JC com a natureza-Pai e Espírito. Ao contrário doutras religiões, aqui, a norma é uma pessoa e não um livro e a ética não se reduz a uma subjugação, ao cumprimento de letras (leis) mas ao amor soberano que tudo diviniza. O ser humano na qualidade de filho de Deus pertence por natureza à família mais nobre, tornando anti-humana e ilegítima toda a prepotência, subserviência e opressão; estas constituiriam um atentado à dignidade humano-divina inerente a cada pessoa. Por isso, os ministérios públicos, as autoridades públicas, ministros, etc., deveriam exercer actividades de serviço às pessoas porque toda a dignidade vem e acaba na pessoa em comunhão com o todo.

 

A festa do Pentecostes é celebrada em toda a Igreja desde o Concílio de Elvira do ano 305. Com a descida do Espírito Santo, o dia eterno do Pentecostes torna-se o domingo dos domingos, o sábado dos sábados em que a acção divina se manifesta e realiza no e com o povo no mundo. A participação no Espírito Santo confere o dom das línguas e os dons do espírito. O ciclo litúrgico quer apontar para a realidade profunda que é o mistério da vida que é toda ela relação.

 

Ultrapassa-se a visão grega da vida da relação de sujeito-objecto passando toda a relação humana-divina-natural a ser uma relação de sujeitos entre sujeitos; isto é passa-se duma  consciência de relação sujeito-objecto para uma relação sujeito-sujeito que tudo personaliza e dignifica. A verdade passa a ser um acontecer e não um mero constructo abstracto ou anónimo. Como no ciclo da vida, a palavra de Deus (o Verbo) está na origem da vida tal como o fruto, a flor, a árvore se encontram já na semente.

 

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e publicista

antoniocunhajusto@gmail.com

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