A Fundadora da primeira Mesquita inovadora: “Mesquita Averróis-Goethe”
António Justo
Seyran Ates, nasceu em Istanbul (1963); aos seis anos emigrou para a Alemanha; frequentou os estudos de direito em Berlim, especializando-se em direito penal e em direito de família. Já, durante os estudos, apoiava mulheres vítimas de violência caseira.
Como advogada defende vítimas de “crimes da honra”, mulheres casadas à força ou maltratadas pela família. Em 1984 um marido matou uma sua cliente no seu consultório; Ates ficou gravemente ferida e teve uma experiência de quase-morte. Apesar disso, Seyran Ates continuou a empenhar-se na defesa de mulheres oprimidas, conseguindo trazer para a opinião pública alemã um aspecto escuro de muitas mulheres que sofrem em silêncio devido à pressão patriarcalista.
Em 2006 abandonou a sua carreira de advogada, por algum tempo, devido a ameaças.
Depois de ter publicado o livro “O Islão precisa de uma revolução sexual” recebe contínuas ameaças de morte e e-mails transbordantes de ódio e ideias de abuso sexual, o que a levou novamente a abandonar a carreira de advogada em 2009.
A ativista de direitos humanos “vive em constante perigo de vida” porque se dedica à defesa da liberdade de outros. A muçulmana encontra-se sob proteção policial, dia e noite, com vários polícias.
Na luta por um rosto feminino para o Islão
A 16 de Junho de 2017, Seyran Ateş abriu a “Mesquita Ibn Ruschd-Goethe” em Berlin (um projecto de ligação da cultura árabe à cultura ocidental, daí o nome “Mesquita Averróis-Goethe”). É a primeira mesquita progressista na Alemanha; está aberta às correntes islâmicas sunita, xiita, alevita e sufi. O uso do nicab e do xador são proibidos por serem expressão de submissão ao homem e símbolo de um islão anacrónico (1).
Seyran Ates, quer uma mesquita onde o Corão não seja interpretado à letra e, assim, tornar possível uma interpretação moderna que possibilitae uma educação para a liberdade, para a responsabilidade individual e para a paz universal.
As mesquitas na Alemanha não perdoam a Seyran Ates, ser a cofundadora da mesquita liberal Ibn-Rushd-Goethe-Mesquita onde rezam mulheres e homens uns ao lado dos outros e onde às vezes uma imã orienta a oração ritual.
Na imprensa da Turquia, Ates é apostrofada de “traidora da pátria e de terrorista”. “A repartição turca para os Assuntos Religiosos (Diyanet) incita a plebe mafiosa turca na Alemanha” (HNA) e acusa Ates de querer modificar e reconstruir a religião.
Ates chama a atenção para a hipocrisia que, muitas vezes, se apresenta com duas caras:” Eles sorriem para ti e mentem-te na cara”. É contra o uso do lenço islâmico (Hijab), contra os casamentos forçados e contra os crimes de honra. Também, devido à sua experiência amarga, desabafa: “Onde a Religião só serve a demarcação/separação, revela-se contra a democracia”.
A atitude de Seyran Ates torna-se numa ousadia promissora para o Islão (e para a paz na Europa) na medida em que lhe possibilita, por um lado, a saída do gueto, o abandono do acorrentamento aos costumes da Arábia do século VII e, por outro, a abertura à pessoa, à feminidade, à História e a outras culturas. No seu projecto, “Mesquita Averróis-Goethe, é apoiada por muçulmanos liberais de todo o mundo (2).
Entre outros louvores foi-lhe atribuída a condecoração Cruz Federal de Mérito, pelo Estado alemão.
Conclusão
A “Mesquita Averróis-Goethe é uma iniciativa válida e digna de imitação para tornar o islão compatível com a Europa e com outras culturas. O Islão só será reformado pela acção das mulheres. Nelas há que apostar para que não continuem a fomentar um estilo de cultura arcaica aliciante de instintos de homens árabes e doutras culturas! Só elas poderão trazer ao Islão um rosto feminino e recuperar a feminilidade que ele reprime e assim dar-lhe um rosto mais equilibrado e mais humano!
Também no surgir da Europa houve tempos em que a autoridade do grupo ou da instituição atafegava a personalidade individual e em especial a mulher (hoje isso acontece de maneira mais subtil e suave). Embora o ocidente tenha defendido sempre a dignidade de toda a pessoa humana, independentemente de ela ser mulher ou homem, os costumes e tradições reprimiam a mulher em relação ao homem. É importante que mulheres de cultura árabe, em contacto com a cultura ocidental, ganhem força e sejam motivadas a provocarem um desenvolvimento antropológico do islão de maneira a criar mais justiça, solidariedade e igualdade de trato entre homens e mulheres de modo a possibilitar, a cada qual, redefinir a sua ipseidade para agir a partir de uma liberdade responsável e humana porque individualizada.
Encontramo-nos todos no mesmo barco e se o islão não se muda toda a humanidade será retardada e se a sociedade ocidental não se mudar também, a personalização do indivíduo passará a ser abusada no sentido de o desumanizar, transformando-o novamente em mero objecto ou instrumento da instituição e da ideologia ad hoc. Cabe ao Cristianismo e à sociedade ocidental, que deram origem aos direitos humanos, à democracia e à tolerância do Homem como tal, tornar-se consciente do processo em via num momento em que as constelações de poder mundial se redefinem. Cada povo, cada cultura tem o seu valor específico a integrar na construção de sociedade mais justa e pacífica. Por isso todos devemos estar gratos quando uma mulher como a muçulmana Ates procura fazer com que o islão reconheça a feminidade como um vector do desenvolvimento, tal como o vector da masculinidade que se tem afirmado desequilibradamente! Não só a sociedade religiosa, mas também as sociedades seculares são responsáveis pelo que acontece: na Europa tem-se afirmado o islão do lenço e as estruturas governamentais colaboram com instituições muçulmanas duvidosas interessadas apenas no poder e na hegemonia das mesquitas turcas na Alemanha (na colocação de professores de religião islâmica em escolas do Estado os Ministérios da Educação da Alemanha colaboram com a federação das mesquitas turcas (Ditib) que é apoiante de Erdogan e não apoia iniciativas que fomentem a integração ou impliquem renovação do islão; de maneira geral, apoiam o islão do lenço, e não dão apoio aos defensores de um “protestantismo muçulmano”.
De facto, o ser humano, antes de ser membro de uma sociedade religiosa, étnica, política ou cultural, é Homem e como tal traz em si a ferocidade selvagem mais ou menos escondida, tal como a gene divina. O problema é que todos cheiramos a Homem e não queremos reconhecer a maldade latente que em nós trazemos e depois procuramos justificá-la ou desculpá-la para passar o assunto ad acta! A discussão é importante e mais importante é ainda o testemunho que Ates mostra.
© António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo
Pegadas do Tempo
- (1) Há dias , no fim de uma aula, um simpático muçulmano trintanão, dirigiu-se a uma colega professora de alemão, dos seus 50 anos, e disse-lhe: porque é que pinta os lábios e se veste assim, se já é casada? Na sua mentalidade genuína até tinha lógica a sua pergunta! Porque precisa uma mulher casada de se arranjar de maneira atractiva se já tem um homem a quem pertence?! Porque traja assim, se isso é uma manifestação de liberdade e como tal uma provocação aos homens que, por natureza, andam à caça e mais à solta?!
- (2) As mentalidades relativas a matrizes religioso-culturais formadoras de identidade (individual e cultural) não se mudam em poucas gerações. Durante a Idade Média a sociedade e cada indivíduo (de uma maneira geral) vivia, em grande parte, de maneira inconsciente no ventre da comunidade pois a individualidade ainda se encontrava em gestação. Houve, naturalmente, muitas excepções que tinham a ver com a posição e papel social de elites, que possibilitaram uma burguisação da consciência da pessoa. A Idade Média no renascimento (processo de emancipação) deu à luz o indivíduo como personalidade com autoridade própria (autonomia que só a sociedade industrializada concretizou a nível político com a democratização). Como se vê a pessoa “autónoma” é parida no século XV-XVI e demorou cinco séculos a produzir a pessoa autónoma de extremismos egoístas que hoje exagera em relação à comunidade tal como antes a comunidade (instituição) exagerava em relação ao indivíduo. O Islão ainda se mantem hoje nos princípios da sua Idade Média, quanto ao seu ser antropológico. O contacto íntimo dos muçulmanos imigrados com a Europa leva as pessoas mais sensíveis a descobrir-se como pessoas: a iniciar um processo que não poderá ser de renascimento porque a filosofia muçulmana não possui nela o factores que provocariam um renascimento, mas a capacidade de se abrir a outras mundivisões sociológicas e antropológicas; foi isto o que aconteceu a Ates. Ela estaria com alguns poucos no princípio do “protestantismo” muçulmano – a época propícia para produzir hereges e protestantes! Por isso, a nossa missão é dupla: apoiar as pessoas ousadas que, ao descobrirem-se como pessoas, descobrem os direitos humanos e apresentar uma análise crítica à doutrina muçulmana. Esta teima em oprimir a mulher e em afirmar-se e definir-se pelo contra em relação a outras culturas. Esta matriz fundamental, que parte do princípio que só uma sociedade do homo religiosus é legítima, terá de ser reestruturada num modelo de mundivisão que permita uma nova concepção de Homem e de sociedade, o que pressuporá uma opção pela inclusão e o distanciamento de uma mundivisão baseada nas estruturas mentais e sociais “árabes” do século VII. É triste ver como uma sociedade ocidental se comporta em relação ao Islão dos imigrantes: hipocritamente fecha os olhos e não quer saber porque saber (e não só levianamente opinar) tornar-nos-ia mais responsáveis e levar-nos-ia a ajudar mais as mulheres a libertarem-se da sua situação de escravizadas e de transmissoras dos padrões patriarcalistas islâmicos; também não deixaríamos os imigrantes muçulmanos abandonados a si mesmos e tomaríamos medidas para que a colonização interna entre os muçulmanos, que se processa no ocidente, não ficasse entregue a mesquitas e grupos radicais apoiados pela Arábia Saudita, Qatar ou um islão de lenço turco. Infelizmente a esclarecida Europa continua interessada em cobrir a ignorância porque dela vive melhor a “boa” gente.