Dignidade Partilhada
O Natal e a Páscoa são mais que rituais religiosos; eles remetem-nos para o fundamento da nossa noção de valores, para os critérios base da nossa cultura.
Natal é o tempo da dignidade partilhada. Nele se juntam a divindade, a humanidade e os animais para celebrar a Vida. Na precária gruta de Belém, lá se juntam todos, os representantes das culturas nos reis magos e os representantes dos animais na vaca e no burro: Dignidade Partilhada!
Os animais testemunham, com a sua presença, a sua saudade da eternidade, põem-se também eles na fila salvante. Aqui afirmam que o seu desejo de eternidade não se realiza apenas na procriação. Também eles querem participar no acto da redenção; também eles querem participar activamente no processo libertador. Querem recordar o processo da evolução e da vida, o espírito comum nela presente. Como o ser humano, também eles se sentem processo e não mero produto acabado.
A vaca suplica, não quer viver em eterna prisão! No seu triste olhar revela os gritos sufocados, até agora não ouvidos de todos os irmãos. Também ela aspira por uma vida que a não reduza a vaca leiteira ou a bocado de carne mal comida! A sua presença é silenciosa, é a expressão dos sem voz! Do desenvolvimento do homem, da sua evolução consciente está dependente também a libertação animal.
A dor paciente dos animais ofendidos olha, através do olhar do burro, o mal dos outros suportado, é um leve queixume da compaixão ausente. No olhar fixo asinino está presente a miséria da vida animal alienada. Aquela presença meditativa, aquele olhar mais não é que o apelo ao homem para que se lembre das barbaridades que faz contra os animais e do que há de comum entre estes e o ser humano. A humilhação, o sofrimento por este praticada é incomensurável e só poderá por ele ser remida, quando acordar para a consciência do seu verdadeiro ser. Como o menino do presépio está para a libertação da humanidade e da natureza, assim o ser humano deve estar para a libertação dos animais… Porque não começar por evitar a dor evitável? A compaixão é sofrimento, é identificação com todo o ser. A sua dor é demasiado cara para ser desbaratada como é. A dor dos irmãos animais não é tida em conta, ainda não faz parte do nosso consciente… Natal é o tempo de recordar para presencializar a vida pacífica e fraterna já vivida no paraíso terreal. No novo paraíso não se poderá viver com a recordação dos animais maltratados se já no terreal vivíamos com eles em harmonia!
Francisco de Assis, consciente, lembrou-se disso e tomou os animais no coração falando com eles a linguagem da religião, a linguagem da irmandade dos seres… Ele dava graças com o irmão sol com a irmã lua, com a irmã vaca… Este louvor não partia dum sentimento meramente romântico, ele era sim o testemunho duma consciência já muito desenvolvida que tinha percebido, a realidade, o cristianismo na sua essência.
Contra todas as perspectivas Jesus veio nascer numa guarida de animais, num curral. Ele, a divindade quebra com todas as convenções, com todas as certezas humanas; ele quer mais que uma visão uma vivência aperspectivista da realidade. Com o seu nascimento na gruta onde os animais viviam ele vem alargar a perspectiva humana para a dignidade dos outros seres, a dignidade dos animais e das plantas. Ele vem acabar com as dicotomias para acentuar o seu carácter polar complementar. Vem demonstrar o impossível, a unidade da matéria e do espírito: ele mesmo se tornou a expressão do aparentemente impossível sendo ao mesmo tempo a dimensão material do mundo e a espiritual, num só ser, num mesmo processo. Esta realidade é depois materializada no dogma da trindade que é ao mesmo tempo a realidade e fórmula do processo polar reconciliado e dinâmico do existir, que também a Física na teoria da relatividade e dos quanta ajuda a compreender, experimentar.
Na vida de fora tudo é analogia, metáfora. O sol ilumina e dá vida ao sistema solar, o cérebro dá vida e ilumina o nosso ser, e o Espírito informa o universo sendo dele o seu respirar, o seu oxigénio. A vida torna-se símbolo e processo, nela ressoa o antes e o depois, é acontecer. A minha imaginação, o meu sonhar e aspirar são as sombras duma outra realidade. Duma outra realidade não, da mesma realidade vista duma outra perspectiva, que em mim ressoa e o mundo anima.
Sonho ou realidade, tudo é um processo, um acordar para uma nova consciência nas estufas do desenvolvimento da “realidade”…
Pegadas do Espírito irreconhecidas
No “tempo” do paraíso o Homem era o protector da terra irmanada pelo mesmo respirar de Deus. O seu respirar é o animar divino, sustentador da vida. Depois de Cristo essa respiração divina que informa o homem e a natureza é chamada Espírito Santo. “O que fizestes ao mais pequeno a mim o fizestes”. Também neles está o gene divino, também os animais têm a saudade do Espírito, tal como já dizia Tomás de Aquino. Toda a natureza espera pela salvação, lembra-nos Paulo no Novo Testamento.
Com o advento cristão, o avanço qualitativo da consciência humana, acabam-se os sacrifícios de animais no templo ritual: “Vós fazeis da casa de meu pai um covil de ladroes assassinos”. Também já na velha aliança se começou a desdenhar o correr do sangue. Hoje só conhecemos o cão e o gato, o resto é bife, é chouriço, pegadas do espírito tornadas irreconhecíveis… Os antigos pediam desculpa ao espírito do animal antes de o matarem e de o comerem, hoje como lhe podemos pedir desculpa se o não reconhecemos?
No animal porém jorra também o amor, o hálito da vida, já mais reconhecível. Chega que nos tornemos culpados na sua morte evitando ser banais que não reconhecem o destino comum neste reino de Deus. A obra redentora parece ainda não ter chegado aos animais!…
Inocente, a irmã vaca venerada no presépio testemunha a vida por esses prados fora. Os animais testemunham o nascimento mas não a morte porque desta não se tinham tornado cúmplices…Eles serão remidos por cada um de nós acompanhando-nos. No respeito por eles e na coexistência pacífica não precisamos de viver na rivalidade. O respeito pela vida comum abrir-nos-á os olhos para as fábricas da morte, matadouros onde jorra o sangue económico do mau trato animal. O desrespeito pela dignidade da vida, o desrespeito pelo espírito. Muitos de nós, mais brutos que os inocentes animais, só temos a percepção da realidade materializada, faltando-nos os tentáculos sensitivos da diferenciação entre espírito e suas diferentes materializações da realidade. A experiência milenária da Índia, de que só o vegetarismo consegue dar mais pão para mais bocas, levou-a instintivamente a considerar a vaca como animal sagrado. Esse conhecimento conduziu a um preceito religioso mais perto da vida.
Só a dignidade partilhada oferece garantias de futuro.
O antropocentrismo de toda a criação defendido pela cristandade foi um grande factor na defesa dos direitos humanos; não poupou porém certos exageros no desrespeito para com os animais. Neste ponto a cristandade terá de aprender do Hinduísmo e do Budismo a relação com os animais e reatar a consciência à espiritualidade Franciscana na realidade do presépio. A dignidade humana não deve ofuscar o resto da natureza. Todos deverão viver na solidariedade da dignidade partilhada. Para isso o rei da criação terá que dar grandes passos no desenvolvimento da sua consciência. Também o desenvolvimento da ciência não pode continuar a justificar uma experimentação desumana como é praticada.
A ressurreição de Cristo encontra-se em processo em toda a natureza no palco do tempo. Toda a criação geme as dores do parto e toda ela se encontra em processo de salvação a caminho da realização do corpo místico, de tudo em todos (em linguagem teológica: natureza em processo de ressurreição).
O antropocentrismo cristão ainda não conseguiu respeitar e alargar a dignidade humana a toda a humanidade, mais lhe falta ainda para conseguir a coexistência pacífica e dialógica entre o Homem, os animais e as plantas. Sim, também a planta, o animal tem uma dignidade divina a respeitar. Os seres vivos chegaram à individuação do espírito comum no Homem: este encontra-se num processo aberto e progressivo de consciência. Esta culminará na consciência da experiência do Cristo, da divindade em nós. Quando chegarmos à consciência trinitária restituiremos a dignidade a todo o ser, seja ele átomo, planta, animal ou ser humano e experimentar-nos-emos na unidade do ser trinitário na comunhão do Espírito.
António Justo
Teólogo
António da Cunha Duarte Justo