DA EUROPA ARMADA À EUROPA PENSANTE

Urgência de uma Cultura de Paz versus Neocolonialismo mental

Quando a guerra deixa de ser excepção

A Europa atravessa um momento histórico de particular gravidade. Não apenas pelos conflitos armados nas suas fronteiras alargadas, mas sobretudo pela transformação silenciosa da guerra em horizonte normal da política. O rearmamento acelerado, o discurso da inevitabilidade do conflito e a aceitação quase acrítica de exigências como a da NATO para investir 5% do PIB na militarização indicam que estamos perante uma mudança civilizacional, não meramente estratégica, mas cultural e moral de consequências trágicas.

Neste contexto, a Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana (CEI), de 5 de dezembro de 2025, com o título: “Educar para uma paz desarmada e desarmante”, apresenta-se como um raro contraponto ético. Não propõe ingenuidades pacifistas, mas uma crítica estrutural à cultura da guerra que se reinstala no continente europeu com assustadora naturalidade.

A irresponsabilidade alemã: memória perdida e repetição histórica

O papel da Alemanha nesta espiral armamentista é particularmente inquietante. Depois de décadas em que a contenção militar se justificava pela memória do horror do século XX, o país surge agora como motor central do rearmamento europeu. Esta mudança é apresentada como pragmatismo geopolítico, mas contém um grave erro histórico: a amnésia estratégica.

A Alemanha esquece que a sua segurança nunca foi garantida pelo militarismo, mas precisamente pela integração económica, pelo diálogo, pela cooperação continental e por uma ordem europeia baseada na superação dos antagonismos armados. Ao investir massivamente em armamento e ao aceitar o enquadramento estratégico imposto pela NATO e pelo eixo anglo-atlântico, Berlim abdica de pensar a Europa como sujeito autónomo para pensá-la com objcto. E o que desautoriza a Europa é o facto de toda ela dançar em torno da elite europeia EU-3 (Alemanha, França e Reino Unido) que com sua encenação desvia as atenções da Europa para os seus interesses nacionalistas de elite. Os belicistas europeus na política e no jornalismo transmitem uma imagem de companheirismo agitado como se a ameaça viesse toda de fora. «Quem cava uma cova para os outros, cai nela», diz um provérbio.

Mais grave ainda: a Alemanha assume uma lógica de confrontação com a Rússia sem refletir seriamente sobre as consequências geopolíticas malévolas de longo prazo para o próprio continente europeu.

NATO e Reino Unido: a geopolítica da divisão permanente

A NATO, enquanto aliança militar, cumpre a função para a qual foi criada. O problema surge quando ela se transforma num ator normativo e cultural, ditando prioridades económicas, políticas e até educativas aos Estados membros.

A proposta, explícita ou implícita, de destinar 5% do PIB à defesa não visa apenas garantir segurança, mas militarizar a sociedade: a linguagem, os valores, o imaginário coletivo. A guerra torna-se aceitável antes mesmo de começar.

O Reino Unido, por sua vez, desempenha um papel particularmente ambíguo e irresponsável. Após o Brexit, Londres procura reafirmar relevância geopolítica através de uma postura agressiva, promovendo uma visão de confronto permanente com o espaço euroasiático. A sua influência sobre a política externa europeia, embora indireta, continua a alimentar uma estratégia de fragmentação do continente, historicamente vantajosa para potências marítimas, mas profundamente nociva para a estabilidade europeia.

A leviandade da União Europeia: economia sem geoestratégia

Talvez o elemento mais preocupante seja a ausência de pensamento geoestratégico próprio da União Europeia. A UE reage, mas não age; segue, mas não propõe; administra crises, mas não constrói visões.

A Europa parece incapaz de refletir sobre um dado fundamental: geograficamente, é uma península do grande continente asiático. A sua segurança de longo prazo não pode ser pensada contra a Rússia, mas com a Rússia. A história mostra que sempre que a Europa tentou excluir, cercar ou humilhar o espaço russo, acabou por gerar conflitos devastadores,  primeiro para si própria.

Elaborar um tratado de paz duradouro com a Rússia, fundado na segurança comum, na cooperação económica e no respeito mútuo, não seria sinal de fraqueza, mas de maturidade civilizacional. A CEI aponta precisamente nessa direção ao rejeitar a lógica da dissuasão armada como fundamento da paz.

Do colonialismo clássico ao neocolonialismo mental

O rearmamento europeu não é apenas uma questão militar. Ele insere-se numa continuidade histórica mais profunda: a transição do colonialismo esclavagista clássico para um neocolonialismo mental.

Se outrora o domínio se exercia pela força física, pela ocupação territorial e pela exploração direta dos corpos, hoje exerce-se pela manipulação da consciência. A centralização da informação, a homogeneização do discurso mediático, a redução do debate público a narrativas simplistas e polarizadas produzem cidadãos incapazes de pensar fora das categorias impostas.

Este neocolonialismo é, paradoxalmente, mais radical que o anterior: escraviza a consciência desde a infância, moldando perceções, medos e lealdades antes mesmo que o pensamento crítico possa emergir. A guerra, neste contexto, não precisa de ser declarada porque  passa a ser interiorizada.

O sangue dos filhos do povo e os interesses das elites

A Nota Pastoral da CEI recupera uma verdade antiga e sempre atual: as guerras são decididas por elites e pagas pelo povo. Os filhos das classes populares continuam a ser a matéria-prima dos conflitos, enquanto os benefícios económicos, políticos e estratégicos se concentram em círculos restritos.

A indústria do armamento, os complexos financeiros e os aparelhos políticos alimentam-se de medo e divisão. A paz, pelo contrário, ameaça esses interesses porque exige redistribuição, transparência, cooperação e justiça social.

Uma cultura da paz como investimento estratégico

A grande inversão proposta, implicitamente pela CEI e explicitamente necessária é esta: substituir o investimento na guerra por um investimento estrutural na paz.

Aplicar 5% do PIB europeu numa cultura da paz significaria: educação para o pensamento crítico e plural; diplomacia preventiva e contínua; mediação internacional independente; justiça social como política de segurança; comunicação descentralizada e diversidade informativa; reconstrução do sentido comunitário e da fraternidade civil e universal procurando neste sentido também levar as máquinas e as indústrias de produção para países carenciados em vez de os obrigar a abandonar os seus biótopos naturais fugindo da pobreza para a Europa.

Isto não é utopia, seria estratégia de sobrevivência.

Europa armada ou Europa consciente?

A Europa encontra-se perante uma escolha histórica. Pode continuar a seguir as políticas tradicionais da guerra, travestidas de realismo, ou pode ousar uma rutura cultural profunda.

A Nota Pastoral da Conferência Episcopal Italiana recorda algo essencial: a paz não é fraqueza, é força civilizacional. Não nasce das armas, mas da justiça; não se impõe, constrói-se; não serve elites, protege povos.

Sem uma conversão ética, cultural e estratégica, a Europa arrisca tornar-se apenas um espaço militarizado, dividido, subalterno, rico em armas, mas pobre em consciência.

Uma Europa que não pensa, apenas reage. Uma Europa que esquece que a verdadeira segurança começa quando a guerra deixa de ser imaginável.

A pergunta que a Europa e particularmente a E-3 precisa de enfrentar não é apenas quanto gastar em defesa, mas que tipo de humanidade deseja promover. Financiar a guerra é fácil, rápido e politicamente rentável no curto prazo. Financiar a paz exige paciência, coragem e visão histórica.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo:

 

MARIA E A EMERGÊNCIA DE UMA NOVA VISAO DO REAL

Teologia, Filosofia e Ciência em Diálogo

A celebração da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, confronta o pensamento contemporâneo com uma questão decisiva: que tipo de realidade admitimos como real? Num mundo moldado pelo paradigma científico-técnico, e da velha Física, tende-se a reconhecer como verdadeiro apenas o que é mensurável, repetível e empiricamente verificável. Contudo, tanto a filosofia moderna como a ciência contemporânea mostram que esta redução é epistemologicamente insustentável.

O símbolo como acesso ao real

A filosofia hermenêutica e fenomenológica (Husserl, Ricoeur) recorda que o símbolo “dá que pensar”: ele não explica, mas revela uma profundidade de sentido inacessível à mera descrição factual. Assim, quando a fé cristã afirma que Maria concebeu sem intervenção sexual, não pretende competir com a biologia, mas introduzir uma afirmação ontológica: a origem última do humano não se esgota na causalidade material.

Do mesmo modo que a ciência utiliza modelos e metáforas, ou seja, campo, onda, big bang, matéria escura, para falar do que não é diretamente observável, também a teologia recorre ao mito e ao dogma como linguagens simbólicas de uma verdade experiencial que se mantém válida para além do tempo histórico (mantendo a tensão entre o tempo Cronos e o tempo Cairos).

Conhecimento, consciência e limites da objetividade

Desde Kant sabemos que o conhecimento não é mero reflexo da realidade em si, mas resultado de uma interação entre sujeito e objeto. “A coisa em si” permanece sempre além da plena apreensão. A ciência contemporânea confirmou essa intuição filosófica: na física quântica, constatando que o observador não é neutro. Segundo Niels Bohr, não há fenómeno sem observação; em Heisenberg, a realidade observada depende do modo como é interrogada.

Esta constatação aproxima surpreendentemente ciência e teologia: ambas reconhecem que o real é mais vasto do que o real medido. A concepção virginal inscreve-se precisamente nesta intuição: fala de um acontecimento que não pode ser explicado por causalidade linear, mas que emerge de uma dimensão mais profunda da realidade.

Virgindade e novo paradigma ontológico

A virgindade de Maria aponta simbolicamente para um novo paradigma ontológico: o ser não é apenas efeito de causas anteriores, mas emergência, dom, novidade radical. As ciências da complexidade e da emergência (Prigogine, Morin) mostram que sistemas vivos produzem novidades não redutíveis às suas condições iniciais. O todo é mais do que a soma das partes.

Neste horizonte, o dogma da Imaculada Conceição afirma que a humanidade conhece, em Maria, uma origem não determinada pelo peso do passado, mas aberta ao futuro. Trata-se de uma antropologia da esperança, profundamente atual num tempo marcado por determinismos biológicos, sociais e tecnológicos.

Encarnação e superação da dualidade

A modernidade herdou uma visão dualista: espírito versus matéria, sujeito versus objeto, fé versus razão. Ora, tanto a teologia cristã como a física contemporânea caminham no sentido inverso: a realidade é relacional. A Trindade cristã pode ser lida como a forma simbólica mais radical dessa intuição: ser é ser-em-relação.

Em Jesus Cristo, concebido no seio de Maria, não há rejeição da matéria, mas a sua reabilitação plena. Deus não se opõe ao mundo, mas participa nele. Heidegger afirmava que a verdade acontece (Ereignis); não é posse, mas desvelamento. Neste sentido, a encarnação é o desvelamento máximo do sentido do real.

Maria, feminino simbólico e crítica à modernidade

Num contexto cultural dominado pela racionalidade instrumental e pela funcionalização do corpo, Maria surge como figura crítica. A sua virgindade não é negação da sexualidade, mas protesto simbólico contra a absolutização do desejo e a redução da pessoa a objeto. Leonard Boff lembra que nela emergem os traços maternais de Deus, silenciados por uma tradição excessivamente patriarcal e racionalista.

A figura de Maria restitui à linguagem religiosa o seu caráter poético e relacional, mais próximo da arte e da mística do que da engenharia social (de matriz masculina). A poesia, como a física moderna, aceita o paradoxo; sabe que há verdades que só podem ser ditas por aproximação.

Uma verdade em processo

A Imaculada Conceição não pertence apenas a uma mera ordem do “facto verificável”, mas da verdade existencial e transcendente. É uma verdade que acontece continuamente, sempre que o humano se abre ao dom, ao futuro e à transcendência. Assim como a ciência abandonou a ilusão da objetividade absoluta, também a teologia é chamada a libertar-se de leituras literalistas e defensivas.

Maria permanece como sinal de que a realidade é mais ampla do que aquilo que medimos, e de que o humano é, em última instância, um ser espiritual em devir, chamado a dar à luz o divino no coração do mundo.

“A verdade não é algo que possuímos, mas uma realidade que nos envolve e transforma.” (K. Rahner)

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O FÓSFORO DA IDEIA

A Natureza do Conhecimento

O entendimento não começa com a certeza, mas com uma faísca.
Antes de qualquer verdade se estabelecer, antes de qualquer opinião se formar, há um instante quase imperceptível: o momento em que algo raspa na mente e provoca inquietação. É aí que o conhecimento começa, não como chama plena, mas como fósforo por acender.

Podemos imaginar o processo de compreensão como o acender de um fósforo dentro da cabeça. O gesto inicial é simples, humilde e exige intenção: raspar a cabeça do fósforo contra a caixa. Este raspar é o pensamento, o questionamento, a atenção dirigida. Sem ele, nada acontece. Não há luz, nem calor, nem caminho iluminado.

Pensar, mesmo sem compreender tudo, é um acto precioso. Vivemos frequentemente sob a ilusão de que só vale a pena pensar quando já se alcança a clareza total. No entanto, o “não entender completamente” não é um fracasso: é, muitas vezes, o início do verdadeiro entendimento. Essa primeira ardência, humilde, discreta e até incerta, é o começo da iluminação. A simplicidade do gesto contém já a possibilidade da profundidade.

Da Verdade Exterior à Experiência Interior

Uma ideia pode existir durante anos fora de nós, como um objecto distante, sem que nos transforme. O conhecimento verdadeiro nasce quando uma verdade deixa de ser apenas um conceito exterior e passa a tornar-se experiência interior. Esse momento é de fricção. Algo toca a mente, raspa, incomoda, provoca tensão e daí surge a faísca. Por isso pensar faz doer!

Sem fricção não há ignição. Ideias circulam à nossa volta como pólen ao vento. Muitas nunca encontram um cérebro-gineceu onde possam pousar, germinar e frutificar. Passamos por elas como borboletas de flor em flor, sem consciência de que poderíamos ser abelhas portadoras de vida, responsáveis por prolongar o sentido e não apenas por tocar superfícies.

Ficar “pelo menos a pensar” é já um gesto decisivo. A cabeça que raspa contra o mistério cumpre o primeiro acto essencial do conhecimento. O pensamento não precisa, nesse momento, de resolver tudo. Precisa apenas de estar acordado.

As Etapas do Entendimento

O processo do entendimento segue uma ordem quase orgânica:

Primeiro pensamos; aqui a mente questiona, hesita, procura.

Depois somos tocados; este é o momento em que o coração começa a reconhecer o sentido.

Por fim somos transformados; aqui chega o momento em que o corpo inteiro se orienta para a ação.

A compreensão plena não é apenas intelectual; é existencial. Quando a chama desce da cabeça ao coração, o conhecimento deixa de ser informação e torna-se orientação. Passa a aquecer, a mover, a comprometer.

Para que isso aconteça, é necessário um estado interior particular: abertura, acolhimento e vigilância serena. Uma atenção que observa sem se deixar enredar, que regista sem se perder, que permanece desperta ao novo, ao inesperado que chega para nos transformar.

Essa vigilância não é passividade, mas preparação activa. É uma atitude espiritual e psicológica profunda: a capacidade de esperar no escuro, de escutar sinais interiores, de não se deixar adormecer pela distração constante nem pelo ruído do mundo. Tornar-se sentinela de si mesmo é talvez uma das tarefas mais urgentes da consciência contemporânea e da consciência individual no momento em que o Zeitgeist quer fazer das pessoas meros egos, meras peças de uma máquina anónima.

Parábola do Conhecimento inspirada na Caverna de Platão: A Sala das Sombras

Conta-se que um grupo de pessoas nasceu e viveu toda a vida numa grande sala circular, iluminada apenas por uma fogueira no centro. À volta da fogueira passavam, invisíveis, objectos e figuras que projectavam sombras nas paredes. As pessoas aprenderam a nomear essas sombras, a discuti-las, a discordar sobre elas e até a lutar por saber qual sombra era a verdadeira.

Um dia, uma das pessoas começou a sentir desconforto. As sombras já não lhe bastavam. Algo lhe raspava a mente. Sem saber porquê, aproximou-se da fogueira e sentiu o calor directo pela primeira vez. Doeu. A luz cegou-a. Durante algum tempo pensou que tinha cometido um erro. Apesar disso persistiu.

Ao sair da sala, descobriu o mundo exterior. Percebeu então que as sombras eram apenas reflexos imperfeitos de algo maior. Quando voltou para contar aos outros, muitos não acreditaram. As sombras continuavam claras demais para serem postas em causa.

Aquele que saiu não trouxe certezas absolutas, trouxe consciência. E compreendeu que o conhecimento não nasce da comodidade da sombra, mas da coragem de raspar o fósforo, suportar a luz incerta e permitir que a chama transforme não apenas o pensamento, mas todo o ser.

António da Cunha Duarte Justo

Nota do Autor

O mundo não se transforma quando nos oferecem a luz, mas quando aceitamos o desconforto de a procurar.

As sombras não são o problema; o perigo está em nunca as questionar. Toda a verdade começa como inquietação, como um fósforo ainda por acender que pede apenas atenção e coragem.

Pensar, mesmo sem compreender tudo é já sair da caverna.
A faísca nasce na cabeça, arde no coração e só se torna verdadeira quando aquece o corpo inteiro e o move à ação.

Por isso, ninguém ilumina o caminho de outro por completo. Cada ser humano tem de raspar o seu próprio fósforo contra a caixa da realidade e aceitar que, no início, a luz fere antes de esclarecer. Mas é essa breve dor que nos salva da longa noite da ilusão. Processo igual dá-se no acto da mãe que dá à luz!

Pegadas do Tempo

A PROFUNDIDADE DO ADVENTO

Espera que arde e Esperança que encarna

A Arte de esperar acordado

O Advento não é simplesmente um tempo de preparação para o Natal. É, antes de tudo, uma escola da existência, um ritmo espiritual que nos confronta com a condição humana mais fundamental: a de seres em espera. Como escreveu Simone Weil, “a espera é a mais alta forma de atenção” e o Advento é justamente o exercício dessa atenção radical. O mundo, na sua brutalidade e beleza, escapa ao nosso controlo. De facto, não podemos salvar o mundo, nem proteger as pessoas do mal e do erro.

Esta impotência, porém, nunca pode justificar uma resignação bovina, uma vida reduzida à erva rasteira ao nível do chão. Tal atitude seria uma traição à nossa própria natureza. A vida, com toda a sua majestade e mistério, é muito maior e mais expansiva do que os estreitos limites da nossa compreensão. Santo Agostinho recorda-nos: “Fizeste-nos, Senhor, para Ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em Ti.”

É precisamente esta consciência da nossa finitude e falibilidade que nos torna dependentes da graça e da misericórdia. Contudo, paradoxalmente, essa dependência não anula a vontade; pelo contrário, ilumina-a. Não apaga a vontade de sermos esperançosos buscadores. Pelo contrário, é a partir deste reconhecimento humilde que a busca verdadeiramente pode começar. O Advento é o apelo solene a essa busca esperançosa a esta inquietação luminosa que nos empurra para o alto.

Deus dispõe… através das nossas Mãos

Já Séneca dizia: “Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que elas são difíceis.”

O homem propõe e Deus dispõe. Este antigo adágio não nos condena à passividade, mas revela a colaboração sagrada da história. Deus dispõe, mas fá-lo através das mãos humanas que aceitam realizar a Sua mensagem. Nós somos, de facto, as mãos de Deus. Como escreveu Teresa de Ávila: “Cristo não tem agora outro corpo senão o teu.” O Advento ou se realiza em nós ou não se realiza.

Este é o cerne da responsabilidade espiritual: mesmo quando o mundo parece destinado à decadência, à ruína ou à repetição horrível de ciclos de violência, a nós é deixada a iniciativa de, no nosso pequeno espaço, germinar o novo. O Verbo fez-se carne, mas continua a precisar de corpos que O encarnem no tempo. O nosso “devir” é este contínuo processo de gestação, que só termina com o último suspiro.

E nesse respirar há uma saudade da paz que é o sopro divino dentro de nós. Contudo, essa paz não é fuga; não pode esconder-se em recantos interiores, recusando-se a encarar a fealdade que a ameaça de fora e de dentro. “A paz não é a ausência de conflito, mas a presença de justiça,” recordava Martin Luther King Jr.

A fealdade é vasta e a vida aponta muitas vezes para os infernos da impotência, da insegurança e da barbárie que tantos são forçados a habitar. Aponta para o purgatório da indiferença sarcástica que nos permite viver ao lado desses sofrimentos, anestesiados pela enxurrada de notícias que nos informam sem nos transformar.

O Incenso e o Fogo interior

Como manter a esperança diante deste abismo?

A esperança é como o incenso da nossa vida. Procuramos nele resiliência, coragem e paz. Mas esquecemo-nos: para respirarmos o seu aroma, algo tem de arder. A verdadeira esperança adventícia não é um sentimento confortável; é um fogo que purifica. Exige que algo em nós seja consumido: a indiferença, o comodismo, as ilusões de autossuficiência.

Vivemos no entremeio, no território tenso entre a contemplação e a ação, entre a paz interior e a luta contra a fealdade exterior. Só nesse entremeio nasce o discernimento. Para isto aponta Bonhoeffer quando dizia: “A ação nasce do pensamento responsável; mas só quem espera pode realmente agir.”

A Luz que já veio e ainda espera por nós

É nesta tensão que o paradoxo central do Advento resplandece: esperar pelo que já chegou e se encontra soterrado nas cinzas de cada um de nós. A Luz já veio ao mundo; o Reino já irrompeu em Cristo. Mas, como uma semente ou uma brasa sob cinzas, aguarda a nossa cooperação para se reacender e crescer.

A esperança, portanto, não é a expectativa vaga de um futuro melhor. É a expectativa de que algo aconteça em nós. É a força ativa de quem, sabendo que a vitória final é certa, luta no presente para que ela se manifeste. É a força da onda que avança contra a que a envolve e faz retroceder.

Neste caminho surgem aqueles que mantêm uma atenção especial: os profetas do nosso tempo. São os que percebem a inquietação antes dos outros, os que expressam a perturbação silenciosa que nos sacode do torpor. Neles, algo da orientação divina pode revelar-se. Eles são os arautos do Advento, lembrando-nos que a espera não é vazia, mas grávida de Deus.

O Advento convida-nos a uma espera ativa. É um tempo para deixar arder, como o incenso, os nossos medos e egoísmos. Um tempo para escavar as cinzas do nosso cansaço e cinismo e reencontrar a brasa da promessa divina. Um tempo para, com as mãos de Deus que somos, trabalhar para aliviar os infernos e purgatórios à nossa volta, por pequena que seja a nossa ação.

E é, sobretudo, um tempo para reafirmar, com uma fé que é confiança radical no que virá, que enquanto houver um coração humano em espera, a Luz não se apagou. A onda do Espírito continuará a avançar, até que a espera se dissolva no encontro e a esperança dê lugar à visão preanunciada no presépio.

A Título de Conclusão

Conta-se que, numa aldeia perdida entre montanhas, havia uma sentinela que todas as noites subia ao alto da colina para vigiar. Muitos riam dela, pois o horizonte estava sempre escuro e nada acontecia.
Uma noite de inverno, um jovem da aldeia perguntou-lhe: “Porque sobes tu, se nunca vês nada?”
A sentinela respondeu: “Eu não subo para ver. Subo para que, quando a luz vier, não a encontre sozinho a dormir.

O jovem ficou silencioso, e a sentinela acrescentou: “E quando o frio me vence, faço o que posso: sopro a minha pequena brasa. Se ela se apagar, como aquecerei quem vier pedir-me calor?”

Na primavera seguinte, uma tempestade devastou a aldeia. Muitos procuraram abrigo na colina. Lá encontraram a sentinela, e ao seu lado, humilde, mas viva, a pequena brasa que aquecia as mãos de todos.

E foi então que compreenderam: a sentinela não esperava porque via a luz, esperava para que a luz tivesse quem a visse.
E a brasa, pequena como era, não salvou o mundo; mas salvou aqueles que lhe ficaram próximos.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A IGREJA NÃO PODE TORNAR-SE UM SUPERPARTIDO

A missão da Igreja é transumana transcendente e não pode ser reduzida a mais uma voz no debate partidário

A presença pública de responsáveis eclesiásticos tem vindo a adquirir um tom crescentemente politizado nos últimos anos. Entre a pandemia, a guerra na Ucrânia e a ascensão de partidos da direita na Europa, setores da Igreja parecem inclinados a alinhar-se com posições partidárias, muitas vezes repetindo o discurso dominante.
Esse caminho, porém, é um erro que prejudica a própria Igreja e os cristãos que, na sua liberdade e soberania, participam na vida política. Na comunidade cristã, “não há estrangeiros”, mas também não há partidos.

Em alguns países, como a Alemanha, chegaram mesmo a existir instituições ligadas à Igreja que evitavam contratar pessoas com filiação partidária “desconforme” ou desalinhada com o poder instituído. Hoje, como ontem, assiste-se à tentativa de afastar certos grupos, ontem comunistas, hoje membros de partidos populistas da função pública. Este tipo de práticas, para além de dúbias do ponto de vista democrático, torna a Igreja cúmplice de exclusões que não lhe competem. Na prática, este tipo de comportamento político-punitivo fragiliza o próprio sistema democrático e a dignidade humana.

A missão transcendente da Igreja

A Igreja não é um poder temporal, deve ser o sal da terra. A sua missão é espiritual, moral e universal. Não lhe cabe indicar “o partido certo”, nem avaliar programas de governo. O espaço específico da sua ação é outro: formar consciências à luz do Evangelho.

Os leigos, esses sim, são chamados a participar ativamente na vida política.
A eles cabe filiar-se, debater, negociar e propor soluções.
Aos clérigos cabe iluminar com princípios, não “dar o voto” nem deixar-se utilizar por interesses partidários.

Quando sacerdotes ou bispos criticam publicamente partidos específicos, mesmo quando movidos por boa intenção, arriscam-se a:

            – partidarizar a fé,

–  alienar fiéis que pensam de forma diferente,

– transformar a Igreja num ator político previsível e parcial.

E isso contradiz a própria natureza da Igreja, que é casa para todos.

“A Igreja não se confunde de modo algum com a comunidade política e não está vinculada a nenhum sistema político.” (Concílio Vaticano II, GS 76)

“A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática.” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 571)

O Papa Francisco lembra repetidamente que a Igreja deve evitar “colonizações ideológicas”, seja de direita, de esquerda ou de qualquer tipo.

Princípios são uma coisa; programas partidários são outra

A Doutrina Social da Igreja não propõe soluções técnicas, mas sim princípios: dignidade da pessoa humana, bem comum, fraternidade, solidariedade, subsidiariedade.
Estes princípios não se traduzem automaticamente numa única proposta política. Muito menos num único partido.

Dois cristãos igualmente sérios podem, a partir dos mesmos princípios, chegar a opções partidárias diferentes sem perder fidelidade à fé.
E isso é saudável.
O que não é saudável é a Igreja tratar como erro doutrinal aquilo que, na realidade, é apenas uma opção política legítima.

Confundir o Evangelho ou princípios universais com aplicações políticas contingentes (com um programa partidário) é reduzi-lo e instrumentalizá-lo, pois, torna-se fonte de conflitos.

O risco do reducionismo moral

Quando a Igreja entra demasiado no debate político, tende a reduzir a moral a dois ou três temas, esquecendo o conjunto mais amplo da sua mensagem: justiça económica, paz, cuidados dos mais frágeis, ecologia integral, liberdade religiosa, dignidade da pessoa em todas as etapas da vida.

O Evangelho exige uma visão integral.
Não existe um partido que encarne todos os valores cristãos e não compete à Igreja escolher um.

Profetismo, sim. Partidarização, não.

A Igreja tem, sem dúvida, o dever de denunciar tudo o que fere gravemente a lei de Deus: aborto, eutanásia, xenofobia, violência, corrupção, injustiças estruturais.
Mas deve fazê-lo partindo dos princípios, não dos partidos.

Há uma enorme diferença entre afirmar “O partido X está errado”
e afirmar “Toda política que viola a dignidade humana está errada”.

Na primeira formulação, a Igreja torna-se um ator político.
Na segunda, cumpre a sua missão e deixa aos fiéis a tarefa de discernir.

O papel central dos leigos

A transformação política da sociedade não é missão dos padres.
É missão dos leigos. A própria  Igreja ensina que o sujeito principal da ação política são os leigos.

A eles pertence o debate político; à Igreja pertence a formação das consciências.
Quando esta ordem se inverte, ambos perdem:
a Igreja perde a sua universalidade; os fiéis perdem a sua autonomia. Os fiéis, bem formados, julgarão por si mesmos os programas partidários e evitarão entrar na polémica divisionista própria de estratégias partidárias.

Uma Igreja livre para todos

A Igreja deve ser uma consciência crítica da sociedade, e não um lobby disfarçado. Deve ser incómoda para todos os partidos quando necessário e dependente de nenhum.

Se cair na tentação de se transformar num “superpartido”, perderá a força profética e a capacidade de unir todos os que procuram Deus.

A política passa. Os partidos mudam e o Evangelho permanece.
E é a partir dele e não das lógicas partidárias que a Igreja deve continuar a iluminar a vida pública.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo

Pegadas do Tempo