A DEMOCRACIA PORTUGUESA E A DIÁSPORA: UM CASO DE DESENCONTRO

O Voto dos Emigrantes não chega para legitimar mas questiona

A cerimónia de tomada de posse da Comissão Nacional de Eleições (CNE), no dia 25 de julho de 2025, trouxe à luz um problema que há muito se arrasta: a relação frágil entre a democracia portuguesa e os seus emigrantes. O Presidente da Assembleia da República (PAR) abordou, com pertinência, a alarmante abstenção de 80% e os 30% de votos nulos entre os portugueses no estrangeiro. Estes números não são apenas estatísticos, (1) eles são um grito de desencanto, um sintoma de um sistema que falha em incluir quem, mesmo longe, não só mantém Portugal no coração como concorre substancialmente para o seu desenvolvimento.

Mas por que razão os emigrantes portugueses, uma comunidade vibrante e economicamente relevante, se afastam das urnas? E o que diz este afastamento sobre a saúde da nossa democracia?

Quais são as Barreiras que afastam os Emigrantes das Urnas

O discurso do PAR identificou alguns dos obstáculos que desencorajam a participação eleitoral:

Uma burocracia excessiva exigindo registo prévio, prazos curtos e a necessidade de deslocação a consulados distantes transformam o ato de votar num verdadeiro obstáculo, não num direito;  a falta de informação concorre  para que muitos emigrantes desconheçam o impacto do seu voto ou desconfiam da eficácia do sistema político; o desencanto com a política que vem da  sensação de que os partidos veem a diáspora como um alibi eleitoral, e não como uma comunidade com necessidades específicas, mina a confiança.

Se o voto não produz efeitos visíveis, por que razão haveriam os emigrantes de se dar ao trabalho?

O que podemos aprender com outros Países?

Portugal não está sozinho neste desafio, mas outros países encontraram soluções eficazes que poderiam servir de inspiração:

O Brasil:  tem voto facultativo e simplificado, registo automático (sem renovação anual), voto presencial em consulados ou por correio; em 2022, cerca de 700 mil brasileiros no exterior votaram.

A França: tem voto por procuração (um eleitor pode delegar o seu voto a outro), tem equipas consulares móveis que se deslocam a cidades sem representação; em 2022, 50% dos franceses no Reino Unido votaram por procuração.

A Estónia: tem voto online seguro desde 2005 (com ID digital ou telemóvel) e deste modo redução drástica de custos logísticos; a participação dos emigrantes subiu de 6% (2005) para 44% (2023).

A Itália: tem 12 deputados e 6 senadores eleitos exclusivamente por emigrantes e deste modo representação direta no Parlamento, os partidos apresentam listas específicas para o exterior; em 2022, a participação foi de 30% (acima da média europeia).

Os EUA: têm voto postal em massa devido a envio automático de cédulas em alguns estados e a prazos longos (até 2 meses antes da eleição); em 2020, 65% dos votos de americanos no exterior foram postais.

O que falta a Portugal? Vontade política?

Os exemplos internacionais mostram que há soluções. Mas em Portugal, o problema persiste por falta de acção.

O voto eletrónico, já testado com sucesso noutros países, poderia ser implementado progressivamente e alguma região ou país de emigração poderia servir como início experimental.

O voto postal universal (hoje restrito a casos excepcionais) deveria ser uma opção normal real, sem necessidade de justificação. Poderia fazer parcerias com serviços postais internacionais (ex.: DHL) para entrega segura.

Consulados móveis, como os da França, poderiam chegar a comunidades distantes.

Mais deputados da emigração (4 são claramente insuficientes) e debates parlamentares focados na diáspora. Mas há um obstáculo maior: interesses partidários.

Razão por que o PS e Outros resistem à Mudança?

Rumores insinuam que os partidos tradicionais temem que a facilitação do voto no estrangeiro beneficie forças políticas mais centristas ou contestatárias. Os resultados das últimas legislativas confirmam essa tendência: O CHEGA venceu nos dois círculos da emigração (26% dos votos), a AD ficou em segundo lugar (16%), o PS, pela primeira vez, não elegeu nenhum deputado pela diáspora (2).

Deputados eleitos na Europa: José Dias Fernandes pelo CHEGA e José Manuel Fernandes pela AD.

Fora da Europa: Manuel Magno Alves pelo CHEGA e José de Almeida Cesário pela AD.

Se o sistema continuar a dificultar o voto, a abstenção manter-se-á alta e a legitimidade democrática, baixa.

A Diáspora merece mais que Promessas

A intervenção do Presidente da AR foi um primeiro passo, mas precisa de ações concretas:

Simplificar o voto (eletrónico, postal, por procuração), aproximar as instituições das comunidades emigrantes e combater a desinformação e envolver as associações da diáspora e jornais de papel ou online com verdadeira incidência no meio dos emigrantes.

Os emigrantes não são apenas “portugueses de segunda categoria”, são um pilar económico e cultural do país. Se a democracia portuguesa quer ser verdadeiramente inclusiva, tem de olhar para além-fronteiras.

Caso contrário, continuaremos a assistir a um divórcio perigoso entre Portugal e os seus filhos espalhados pelo mundo e a desperdiçar uma potencialidade já inserida nos diversos países. Eles são os verdadeiros embaixadores de Portugal.

Urge usar a diáspora como força económica e política. Se Portugal soubesse aproveitar o potencial da sua diáspora, não só eleitoral, mas também económico e cultural, poderia tornar-se num caso de estudo em democracia inclusiva. Basta querer e agir. Continuar encerrados em meros interesses de imagens individuais e partidárias (3) corresponderia a continuar cada vez mais na mesma não acompanhando os sinais dos tempos. Os partidos ainda se sentem tão seguros que se permitem exigir dos votantes sacrifícios desproporcionados. Encontramo-nos num processo de desenvolvimento cívico em que as instituições quer sejam religiosas quer políticas (se se querem afirmar-se) têm de se dirigir ao povo e não o povo a elas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Inscritos estavam 1.584.722. Votos em branco: 1,39 % com 87.598 votos; Votos nulos 2,73 % que representa 172.379. Só chegaram a Portugal 18,77% dos votos dos emigrantes e houve mais de 113 mil votos dos emigrantes nulos o que corresponde a 32 % da votação final. Ver entre outros https://pt.wikipedia.org/wiki/Elei%C3%A7%C3%B5es_legislativas_portuguesas_de_2025_no_Estrangeiro

(2) https://www.rtp.pt/noticias/politica/chega-vence-circulos-eleitorais-do-estrangeiro-e-passa-a-ser-lider-da-oposicao_e1658037

(3) O Ensino da Língua Materna: https://antonio-justo.eu/?p=10089

HUMANISMO INTEGRAL GEOPOLÍTICO

Complementaridade contra Imperialismos de Esquerda e Direita

A civilização ocidental assemelha-se hoje a um Filho Pródigo obstinado, que, seduzido por quimeras de liberdade, trocou a segurança do lar paterno pela errância dos caminhos perdendo-se a olhar para as estrelas (1). Como ele, vivemos uma crise de identidade coletiva, perdidos numa fuga sem rumo que nos esgota e nos impede de reconhecer não só o caminho de regresso, mas até a própria casa que abandonámos.

A questão mais gritante que se põe hoje a toda a humanidade reduz-se a como superar o conflito esquerda-direita (tradicionalistas-progressistas), ocidente-oriente e OCDE-BRICS de maneira a servir-se a humanidade e não agrupamentos de interesses. Povo, governantes e intelectuais têm de desenvolver um projecto comum de paz.

A crise ocidental, marcada pelo vazio espiritual do turbo-capitalismo e pelo radicalismo do socialismo ideológico, exige uma reintegração da tradição humanista cristã, mas sem nostalgia tradicionalista nem progressismos desintegrados.

As elites políticas, falhadas em conceitos e vontade, insistem em modelos anacrónicos, alimentados por uma cultura belicista que manifesta cada vez mais os desvios geopolíticos da Europa e do Ocidente (2). A democracia, sabotada por dentro, clama por uma reorientação urgente: um modelo sustentável, humanista e pacífico, que harmonize os valores cristãos ocidentais com eficiência económica adaptativa e uma diplomacia de poder suave, inspirada, mas não copiada, da estratégia chinesa, e enraizada na nossa tradição cultural (modelo católico aberto). A solução, ético-humanista, passaria por resgatar a Doutrina Social da Igreja (Leão XIII, Rerum Novarum; João Paulo II, Centesimus Annus), mas articulada com contribuições laicas como propõe Amartya Sen (Desenvolvimento como Liberdade, 1999): economia social de mercado com foco em capacitação humana e Roger Scruton (Como Ser um Conservador, 2014): conservadorismo não reacionário, baseado em instituições orgânicas. Para que isto se concretizasse, no que toca à EU, teria a Alemanha e Bruxelas de deixar de usar, para defesa do seu imperialismo,  a sua força económica como meio aguerrido e instrumento de boicote a países  que não se deixem subjugar aos interesses do seu bloco e sistema (ex. EU pune a China por esta não se alinhar na sua política contra a Rússia: quem suporta os custos do castigo são os povos europeus e chineses).

 

Para além dos Imperialismos: Um novo Paradigma de Poder suave

A alternativa aos imperialismos de direita (neoliberalismo globalizante) e de esquerda (hegemonia progressista transnacional) pressupõe  um Humanismo Integral Geopolítico não imperialista. Nesta fase da história tratar-se-ia de elaborar um projecto que implicasse:

– Recuperar a Ética Política: Reintegrar no debate público princípios como dignidade humana, subsidiariedade e bem comum, articulando-os com as exigências da pós-modernidade, sem dogmatismos. Um exemplo inspirador é o Projeto Ética Global de Hans Küng (3), que, adaptado à geopolítica, poderia fomentar um novo diálogo entre nações.

– Criar-se uma Economia Social de Mercado com alma; contra o turbo-capitalismo e o coletivismo autoritário, urge uma economia enraizada em valores transcendentais, próxima da Doutrina Social da Igreja, integradora de contribuições laicas.

– Poder complementar de Co-Criação pacífica: O Ocidente deve aprender com a China que exerce uma projeção cultural não impositiva (Confúcio, infraestruturas globais), mas substituir o pragmatismo chinês por um soft power de complementaridade e humanismo: universidades (Modelo Erasmus), ONG e media que promovam diálogo intercultural e não monocultura ideológica; a nível de Media seria de, para isso, substituir CNN por plataformas como Arte (canal franco-alemão de cultura profunda que mantem uma certa neutralidade).

Diplomacia das Ideias e Multilateralismo Civilizacional

Um multilateralismo Civilizacional nas pegadas da tática cultural de Carlos Magno, pressuporia uma reactivação das redes académicas com colaborações entre culturas e blocos geopolíticos e a nível regional colaboracoes de lusofonia (4), luso-hispânicas, anglo-americanas e europeias, destacando a herança greco-romana, judaico-cristã e moderna, sem eurocentrismos ou hegemonismos. A solução não está na competição de blocos, mas num multilateralismo civilizacional, onde EUA, Europa, Rússia e China actuem como polos cooperativos, não antagonistas.

Tecnologia com alma: A Quarta Via

Tanto a dependência do capitalismo de vigilância como o controlo estatal chinês exige uma Quarta Via Tecnológica: descentralizada, com ética e centrada no humano. Adoptar o pragmatismo chinês em IA e infraestruturas, mas vinculando-o a uma regulamentação que proteja a autonomia individual contra os Estados e algoritmos desalmados.

O Ocidente e a China como Espelhos

O Ocidente não precisa de se tornar China, mas a China pode lembrá-lo de suas raízes humanistas cristãs. Purificando os excessos materialistas (capitalistas e socialistas), ambas as civilizações podem construir um Poder suave de cooperação. O Humanismo Integral Geopolítico é o antídoto contra a fragmentação identitária e a guerra ideológica, propondo uma ordem baseada em valores perenes, adaptados ao século XXI.

Resumindo: humanismo integral geopolítico não significa um retorno ao passado (5), mas uma reconstrução seletiva contra o imperialismo liberal e o imperialismo progressista.

As diferentes economias e os valores de uma cultura não devem ser usados como escudos contra a outra, como, lamentavelmente, a NATO tem feito. Vai sendo tempo de regressar a casa!

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Referência à parábola bíblica do Filho Pródigo (Lc 15,11-32), metaforizando o afastamento do Ocidente das suas raízes.

(2) A degradação do capitalismo financeiro (Wolfgang Streeck, How Will Capitalism End?, 2016) e o colapso do socialismo real (Leszek Kołakowski, Main Currents of Marxism, 1976) deixaram um vazio preenchido pelo niilismo consumista e ideologias identitárias que mais não são que a a luta entre socialismo e cultura tradicional e a reaccao a um globalismo neoliberal desenfreado que ameaça levar de enxurrada tudo que era essencial à pessoa e à sociedade.

(3) Hans Küng, Projeto Ética Global (1990), proposta de ética universal baseada em valores partilhados por religiões e filosofias. No seu livro Global Ethics Project (1990), Hans Küng descreveu o propósito da ética global da seguinte forma: “Sem um consenso básico mínimo sobre certos valores, normas e atitudes, a coexistência humana não é possível nem numa comunidade pequena nem numa comunidade maior. “Hans Küng iniciou o projeto Ética Global (1990) e fundou a Fundação Ética Global em 1995. O objetivo é incentivar as pessoas de todo o mundo a refletirem sobre as suas tradições de responsabilidade mútua e pelo planeta Terra, de forma a garantir a sobrevivência da humanidade e a paz no século XXI. O requisito fundamental resumir-se-ia na Regra de Ouro comum: “Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti”.

(4) Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Portugal, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Fomentar-se o diálogo inter-civilizacional, inspirado em Samuel Huntington (O Choque de Civilizações, 1996), mas com enfoque na cooperação (ex.: alianças luso-afro-brasileiras).

(5) Os grandes males a superar são o imperialismo liberal e o imperialismo progressista. A nível de literatura contra o imperialismo neoliberal temos a Doutrina Social da Igreja e autores como Karl Polanyi (A Grande Transformação, 1944) onde alertou para a modificação da vida pelo mercado e como solução teríamosuma economia enraizada na ética (como propõe Luigino Bruni em Civilização do Mercado, 2019); contra o imperialismo progressista temos Doutrina Social da Igreja e autores como Christopher Lasch (A Revolta das Elites, 1994) que criticou a classe meritocrática globalista e como antídoto teríamos o comunitarismo (Amitai Etzioni) e distributismo (G.K. Chesterton). A superação dos imperialismos pressupõe uma tática de acção contra o imperialismo de direita (neoliberalismo globalista homogeneizante), defendendo pluralidade de modelos económicos dentro de uma ordem multilateral com o consequente fomento das relações comerciais entre países e blocos, ao contrário do que faz o ocidente através dos seus bloqueios e sanções comerciais e contra o imperialismo de esquerda (hegemonia progressista transnacional), resgatando as autênticas tradições locais (ex.: solidariedade comunitária cristã, guildas medievais) como antídoto ao centralismo burocrático.

REGIMES DE VERDADE

Das Verdades que nos governam à Verdade em que vivemos: Entre Sombras e Luz

Vivemos rodeados de verdades. Umas são-nos impostas, outras somos nós que escolhemos acreditar nelas, e outras aceitamo-las sem as questionar. Mas o que é, afinal, a verdade? Será um facto imutável, uma construção social ou algo mais profundo?

As Verdades que nos governam

O filósofo Michel Foucault introduziu o conceito de ‘regimes de verdade’ para descrever os sistemas de normas, regras e práticas que determinam o que uma sociedade aceita como verdadeiro ou falso. Estas “verdades” não são eternas, mas sim construções sociais e discursivas que mudam com o tempo, com o poder, com as maiorias.

Foucault demonstra como os discursos, além de descreverem a realidade, a moldam, formatando activamente as opiniões individuais e sociais. As populações, expostas a esses constructos, passam a confundir a narrativa imposta com a realidade objetiva, tornando-se meros produtos históricos da sua época, isto é, a instrumentos passivos de uma máquina de poder. Infelizmente ameaça tudo ir  na enxurrada, mesmo os multiplicadores e guias sociais.

Um exemplo flagrante desse mecanismo é o modus operandi de instituições como Bruxelas, a NATO ou a ONU (sob influência dos EUA), que aplicam sistematicamente o princípio de vigilância e controlo para formatar as mentalidades e, consequentemente, dominar os corpos (os cidadãos). Vivemos numa ditadura suave, quase imperceptível, onde o Panóptico de Bentham, analisado por Foucault, se tornou o modelo de disciplina por excelência e, mais grave ainda, o estilo de governação dominante.

Habitamos num mundo onde a verdade parece negociável, moldada por consensos, maiorias, interesses ou conveniências. Será saudável aceitar passivamente o que nos é imposto? Já notaram a forma como as notícias nos são dadas pelos media, como se viessem das alturas, sem uma análise, sem um juízo de valor, sem uma tomada de posição, como se não fossem leituras ou interpretações de factos? Perguntemo-nos sobre o que acontece nos debates públicos: quem decide o que é válido? Quem tem voz e conduz os debates públicos?(1) Será que a verdade de hoje será a mesma daqui a dez anos? As leis mudam, as ciências avançam, os costumes transformam-se. E, no meio deste turbilhão, muitos de nós cansamo-nos de pensar e simplesmente seguimos o que nos dizem sem questionar os regimes dominantes.

Uma autoconsciência crítica implica esforço e é cansativa, e muitos preferem a comodidade de seguir verdades pré-fabricadas. Seguir a opinião pública ou o Zeitgeist é abdicar da nossa capacidade de discernimento, é alienar-nos de nós mesmos, da nossa ipseidade (a essência do “quem sou”).

As diversas faces da verdade

Na lógica do real intuído, deparamo-nos com múltiplas dimensões da verdade: a verdade empírica, mensurável configurada ao objeto, submetida ao crivo da ciência e da observação; a verdade transcendente, arraigada na revelação ou na fé, que transcende os limites da razão instrumental; a verdade estético-afetiva, opinião, expressa no juízo singular do gosto; esse território onde ‘bom’ e ‘mau’ são moldados pela subjetividade; e, por fim, a verdade pragmática, contingente e utilitária, que se justifica a si mesma pela sua eficácia circunstancial, ainda que efémera.

Mas será que alguma delas nos guia de forma plena? Ou andamos perdidos, trocando uma certeza por outra, sem nunca encontrarmos um alicerce sólido?

A Necessidade da Verdade que oriente

Seja sob uma perspetiva relativista ou absolutista, o ser humano anseia por uma verdade que vá além do superficial, que não seja apenas útil, mas que ofereça orientação e dê sentido à vida. No Novo Testamento, a verdade não é uma mera abstração, mas fidelidade: a promessa cumprida em Cristo. Jesus não apresenta a verdade como teoria ou um conceito, mas como pessoa: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6), unindo discurso e accão.

A verdade que nos falta não é uma teoria, mas uma presença. Não é algo que se debate, mas que se vive; é um modo de vida, não havendo separação entre o que é dito e o que é vivido. “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mateus 7:16), ou seja, a verdade é uma realidade transformadora que se revela na ação, no amor, na coerência.

Enquanto os regimes de verdade do mundo são instáveis e transitórios, a verdade cristã propõe-se como fundamento estável: uma verdade que não se limita a dizer “acredita nisto”, mas que diz “segue-me e verás”.

Que Verdade queremos seguir?

No labirinto das verdades humanas, todos escolhemos a nossa bússola. Podemos seguir as verdades passageiras do mundo: as que mudam conforme a opinião pública, o poder ou a moda, ou podemos buscar uma verdade mais profunda, que não nos controla, mas nos liberta.

Por vezes sentimo-nos como barco à deriva, empurrado por correntes contraditórias. Como no mar ao longo da costa assim ao longo da vida há sempre um farol fixo que indica o porto seguro. A consciência disto cria-nos mecanismos de defesa próprios que nos imunizam das contraditórias verdades sociais de modo a não sermos arrastados no seu redemoinho nem a desviar-nos da nossa ipseidade.

Se a verdade que seguimos hoje desaparecesse amanhã, o que restaria para nos guiar? O mais seguro é seguir a verdade que caminha!

A Modos de conclusão

Imaginemos um viajante perdido numa floresta escura. À sua volta, vozes sugerem direções contraditórias: algumas baseadas em mapas antigos, outras em rumores, outras ainda em interesses ocultos. Cansado, ele senta-se e reza. Então, vê uma luz à distância, não um fogo efémero, mas uma lanterna firme, segurada por alguém que conhece o caminho. “Eu sou a verdade”, diz a voz. “Segue-me.”

O viajante hesita: “E se eu preferir o meu atalho?” A resposta é simples: “Podes escolher, mas só a minha luz atravessa a escuridão.”

Essa luz interior encontra-se no âmago de cada um de nós e é aquela que nos torna ancorados na transcendência, para lá do que outros pensam, consistentes connosco mesmos a viver em harmonia, autoconfiança e compreensão do mundo. Sim, porque somos astros criados com luz própria e não meros satélites de algo ou de alguém.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1)

Um exemplo flagrante desse mecanismo é o modus operandi de instituições como Bruxelas, a NATO ou a ONU (sob influência dos EUA), que aplicam sistematicamente o princípio de vigilância e controlo para formatar as mentalidades e, consequentemente, dominar os corpos (os cidadãos). Vivemos numa ditadura suave, quase imperceptível, onde o Panóptico de Bentham, analisado por Foucault, se tornou o modelo de disciplina por excelência e, mais grave ainda, o estilo de governação dominante.

EUROPA SOLO E SEM HERDEIROS

Um Retrato da Solidão Demográfica

A Eurostat, essa discreta contabilista do Luxemburgo, anunciou recentemente que a Europa em 2024 albergava 202 milhões de famílias (agregados domésticos). Deste número, 75 milhões eram compostas por uma única alma, solitários sem filhos, a marchar triunfantes no pódio das estatísticas, com um crescimento de 16,9%. Em segundo lugar, os casais sem filhos (49,1 milhões) e outras configurações domésticas igualmente estéreis (30,5 milhões). E, lá no fim, quase como uma relíquia do passado, os casais com filhos (30,3 milhões), cuja quota encolheu 4,4% desde 2015.

Uma Europa que envelhece, que se fecha em apartamentos minúsculos, que celebra a liberdade individual, mas se assusta com engravidamentos. E, no entanto, essa mesma sociedade lamenta-se da imigração, como se os refugiados fossem um incómodo matemático: queremos menos gente, mas também queremos quem faça o trabalho que já não nos apetece. A economia, essa divindade caprichosa, prefere importar braços em vez de exportar oportunidades. E assim se constrói o paradoxo: condenamos os que fogem da miséria enquanto nos encolhemos no nosso bem-estar estéril.

No meio de tudo isto, a política alimenta fantasmas. Inventa inimigos, semeia divisões, transforma a convivência num campo de batalha. O belicismo, outrora disfarçado de último recurso, agora passeia-se de cabeça erguida, travestido de virtude cívica. E o cidadão, confuso entre slogans e estatísticas, descarrega a sua frustração no estrangeiro, esse bode expiatório sempre conveniente.

Os números, frios e implacáveis, desenham uma Europa em declínio. Seriam ainda mais sombrios se as estatísticas ignorassem os muçulmanos, esses fiéis à “lei natural” que, ao contrário dos nativos, ainda ousam multiplicar-se para poderem engrandecer a sua “Uma”! Ironia das ironias: enquanto uns promovem o aborto como bandeira progressista, outros cultivam guetos onde a natalidade é vista como um dever e indícios de progresso. Dois mundos que coexistem sem se entenderem, alimentando uma guerra cultural que ninguém assume, mas que todos combatem à socapa.

E no meio deste teatro, Bruxelas dança. Os donos do poder e disto tudo deliciam-se com os seus discursos, enquanto a população, nativa e migrante, é reduzida a mero figurante num drama que não escolheu. Vítimas de um sistema que as explora e depois as põe umas contra as outras.

A diminuição demográfica tal como a agressão aos estrangeiros são o sintoma, não a doença. A doença chama-se irresponsabilidade política, essa arte estéril de governar pelo conflito, de alimentar medos em vez de esperanças, de criar bodes expiatórios em vez de assumir falhas. Enquanto o povo e os migrantes se gladiam, os verdadeiros responsáveis observam, impunes, do alto dos seus cadeirões sem terem de ser judicialmente julgados pelos seus actos. São eles os arquitetos desta guerra entre pobres, e, no entanto, continuam a chamar-lhe ‘democracia’ dos seus valores que não dos da Europa.

Resta perguntar: quando a última família tradicional desaparecer, quem trará flores ao seu funeral?

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do tempo

O Ensino da Língua Materna: Realidade, Intenções e Interesses

Uma Reflexão Crítica e Experiencial

Introdução

O ensino da língua materna em contextos de emigração transcende largamente a mera transmissão de competências linguísticas. Envolve, de forma indissociável, questões culturais, identitárias, políticas e estratégicas. O meu percurso enquanto docente e representante do ensino do Português no estado alemão do Hesse ao longo das décadas de 1980 e 200 permitiu-me observar de perto não só as realidades práticas do ensino, mas também os fios subterrâneos, por vezes invisíveis, outras vezes descaradamente evidentes, que conectam intenções políticas, interesses institucionais e decisões pedagógicas.

Este ensaio pretende, à luz dessa experiência concreta, articular uma análise crítica da evolução dos cursos de formação de professores e do ensino da Língua Materna (LM) no Hesse, expondo simultaneamente as convergências e tensões entre os interesses portugueses e alemães, e refletindo sobre as implicações mais profundas desta realidade. É, entretanto, de reconhecer que o ensino da Língua Materna (LM) no Hesse era exemplar em comparação com outros estados porque reconhecia o ensino da língua materna integrando a nota da língua materna com nota relevante no meio das outras disciplinas curriculares.

As Primeiras Estruturas: Intenções Declaradas e Realidades Paralelas

Nos anos 80, Portugal e o Hesse deram os primeiros passos concretos para estruturar o ensino do Português como Língua Materna. À superfície, destacava-se o propósito nobre de garantir aos filhos dos emigrantes portugueses o acesso à sua língua e cultura, conforme plasmado nos compromissos constitucionais portugueses, mas também de abertura e boa vontade alemã. No entanto, a forma como este processo se desenrolou, revelou desde o início um jogo complexo de interesses, metodologias e visões divergentes.

Enquanto Portugal, através dos seus cursos de formação (1) organizados por Lisboa e dinamizados pelo consulado em Frankfurt, seguia uma abordagem de cima para baixo, ancorada primeiro na pedagogia  behaviorista (Pavlov) de aprendizagem (repetição memorização) seguindo-se depois  a aplicação das teorias linguísticas e pedagógicas (como a gramática generativa de Chomsky), o Hesse optava por uma estruturação prática e administrativa, partindo da realidade concreta das escolas, dos professores e dos alunos.

Este contraste não se traduzia apenas em metodologias pedagógicas diferentes, mas refletia também diferenças profundas na conceção do papel da língua: Portugal via-a inicialmente como veículo de cultura e identidade; a Alemanha, como ferramenta de integração escolar e social.

O Conflito Subtil: Entre Teoria e Pragmática

A convivência destas duas linhas — a portuguesa, mais teórica e cultural, e a alemã, mais pragmática e administrativa — gerou inevitavelmente pequenos atritos. Recordo-me dos seminários no consulado de Frankfurt, sob a orientação do Dr. Silvério Marques, marcados por um discurso fortemente conceptual e ideológico, contrastando com as reuniões da responsabilidade de Wiesbaden, lideradas pela Prof.ª Zulema de Sousa, onde prevalecia a preocupação prática e a maior articulação com as políticas educativas do estado do Hesse. Posteriormente, quando a Prof. Cristina Arad assumiu a representação da LM em Wiesbaden, isso trouxe estabilidade e reduziu os conflitos.

Não obstante, foi precisamente na dialética entre estas duas abordagens que os professores de LM puderam beneficiar de uma formação contínua relativamente equilibrada, ainda que, como observei, o interesse prático e a procura de materiais aplicáveis às aulas se sobrepusessem frequentemente à compreensão crítica das orientações políticas subjacentes.

A Mudança dos Anos 90: Da Cultura à Funcionalidade

A década de 1990 trouxe consigo uma inflexão clara no ensino da LM, tanto em Portugal como no Hesse. Sob o manto da integração europeia e da globalização, o ensino da língua materna começou a ser progressivamente esvaziado do seu conteúdo cultural identitário, reduzido a uma competência funcional, instrumental, desligada da alma da nação, parafraseando António Sérgio.

A criação do Instituto Camões, com sucessivas reestruturações e reorientações sob tutela ora do Ministério da Educação, ora do Ministério dos Negócios Estrangeiros, simboliza esta transição. A promessa constitucional de assegurar o ensino da língua e cultura portuguesas aos filhos dos emigrantes foi, na prática, diluída num discurso técnico de ensino da língua, formatado segundo os parâmetros europeus, mas amputado do seu enraizamento cultural.

No Hesse, esta mudança encaixou-se perfeitamente na tradição administrativa alemã, onde o ensino da LM, embora reconhecido e integrado no currículo escolar, sempre foi visto mais como ferramenta de integração social do que como espaço de afirmação cultural.

Intenções e Interesses: As Camadas Invisíveis da Realidade

Qualquer análise séria da evolução do ensino da LM não pode ignorar o entrelaçamento de intenções e interesses, uns legítimos, outros discutíveis, que sustentam as políticas educativas. No caso do ensino do Português no Hesse, destaco três níveis de interesse que, ao longo dos anos, se cruzaram e por vezes colidiram:

Interesses Pedagógicos: A preocupação com a qualidade do ensino, a formação dos professores e o sucesso educativo dos alunos.

Interesses Políticos e Geoestratégicos: A utilização da língua como instrumento de soft power, de afirmação internacional ou de diluição identitária, conforme as conjunturas.

Interesses Administrativos e Sociais: A necessidade de gerir a diversidade cultural nas escolas, promover a integração e evitar conflitos sociais.

Estes interesses nem sempre foram transparentes, e o professor no terreno, embora peça fundamental do sistema, foi frequentemente tratado como mero executante, muitas vezes alheio às motivações mais profundas das mudanças curriculares ou institucionais.

Considerações Finais: O Risco da Língua sem Alma

A minha experiência no Hesse mostrou-me que a língua, quando separada do seu contexto cultural, perde a sua força transformadora e identitária, tornando-se um mero código funcional. Esta tendência, que se acentuou com a entrada de Portugal na União Europeia e com o advento de políticas educativas cada vez mais globalizadas, representa um empobrecimento não apenas linguístico, mas também humano: a língua perde a sua alma para se reduzir a corpo.

O ensino da Língua Materna não pode ser reduzido a um produto para consumidores ou a uma competência desprovida de contexto. A língua é portadora de memória, de identidade, de pertença. Negá-lo é empobrecer as gerações futuras, transformando cidadãos em meros operadores linguísticos, desenraizados e moldáveis segundo interesses alheios.

Conclusão

O ensino do Português na Alemanha ao longo das últimas décadas revela, na sua microescala, as grandes tensões e dilemas do nosso tempo: entre cultura e funcionalidade, entre integração e identidade, entre interesses políticos e necessidades pedagógicas. Reconhecer estas tensões, nomeá-las e debatê-las abertamente (2) é o primeiro passo para uma educação mais consciente, humanista e verdadeiramente emancipadora.

Hoje tona-se cada vez mais evidente a necessidade de uma política que defenda uma educação que preserve a riqueza cultural da língua enquanto património vivo.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

(1) Dadas as circunstâncias da imigração, especialmente quando se formam guetos intencionalmente criados dentro de um país torna-se difícil discutir o problema da «desculturalização» do ensino de línguas quando certos guetos bloqueiam o diálogo cultural e, por conseguinte, desafiam a cultura maioritária. Isto torna-se difícil no contexto actual, em que se debate o equilíbrio entre a integração, a identidade cultural e a globalização.

É mais fácil de reconhecer no ensino da língua materna, a sua marginalização pela primazia das políticas utilitaristas e globalistas sobre uma visão humanista da educação.