A FRÁGIL CHAMA DA OPINIAO E O ABISMO DA IPSEIDADE

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução  

Vivemos um tempo de indecisões históricas e de retórica pública cuidadosamente premeditada, em que a discórdia entre pontos de vista parece crescer em cada dia. É como se tivéssemos entrado numa espécie de guerra civil mental, reflexo de falta de sentido e das tensões geopolíticas que se desenrolam no mundo e que nos empurram a tomar partido com base em estratégias de informação que frequentemente nos afastam do essencial que é a convivência, o entendimento e a busca comum por um verdadeiro “PIB de felicidade”.

Numa era em que a opinião se tornou arma e a controvérsia um hábito, corremos o risco de perder de vista o propósito maior da vida em sociedade: o bem-estar partilhado, o gozo justo que compensa a dor inevitável de existir. A discórdia, quando deixa de ser diálogo e se converte em desgaste, mina o que de mais humano temos, a capacidade de criar felicidade para todos e com todos.

  1. O choque das opiniões e o clarão efémero do sentido

Quando opiniões se chocam, com pretensão de certeza, o que verdadeiramente se salva é apenas a centelha do atrito, um lampejo que, por um instante, ilumina as margens do pensamento antes de se apagar na poeira dos argumentos.
Quando os imperialismos, sejam eles políticos, culturais ou ideológicos, se confrontam, nada resta ao povo senão recolher os estilhaços e comentar, impotentemente, as ruínas de um lado ou do outro.

A alternativa possível não seria o conformismo, mas o recolhimento interior, um gesto de lucidez que impede o ser humano de se deixar arrastar pelo torvelinho das circunstâncias ou de refugiar-se na apatia estéril de um relativismo sem norte que tudo dissolve.

  1. A ilusão de pertencer aos “bons”

Na ânsia de determinar-se, o ser humano constrói para si a ilusão de possuir razão, isto é, de estar entre os bons e de ver o mundo com clareza.
Mas o que normalmente defendemos não é a verdade, mas sim a nossa narrativa, aquela versão íntima e inegociável da realidade que nos confere identidade e nos protege do vazio.
A busca da verdade é substituída pela fidelidade a um enredo que se quer verdadeiro.

  1. A cegueira dos entremeios

A realidade raramente é pura. Quase tudo o que é humano vive nos entremeios, na zona cinzenta onde as certezas se desfazem e o sentido se mistura.
Contudo, falta-nos muitas vezes a coragem de habitar essas intersecções.
Preferimos as muletas das opiniões alheias, as frases feitas, os dogmas disfarçados de pensamento.
A preguiça espiritual leva-nos a viver de reflexos, a repetir em vez de pensar.

  1. A linguagem como chama e como ferida

É na linguagem que a nossa frágil chama encontra abrigo.
A palavra é a ferramenta e o espelho da consciência: por meio dela, o ser humano tenta dizer o indizível, ordenar o caos, dar forma ao invisível.
Falamos porque precisamos de compreender e, ao compreender, prolongamos a nossa existência no tecido simbólico do mundo.
Mas a linguagem é também uma ferida: nela reside tanto a possibilidade de revelar quanto o perigo de repetir o já dito.
Quando a palavra se transforma em eco, mera reprodução do que os outros dizem ou pensam, a chama interior começa a enfraquecer.

  1. Romper o círculo: mergulhar nas camadas do ser

Pensar exige um gesto de mergulho e descida.
É preciso atravessar as camadas da tradição, da herança biológica e social, para chegar ao âmago da ipseidade, o ponto onde o eu se desnuda do que herdou e se interroga sobre o que é: o núcleo do encontro recolhido do divino com o humano que preenche e sustenta a forma do que somos ou revelamos ser.
Esse mergulho não é confortável: é um exercício de despossessão, no sentido de se valorizar o ser sobre  ter.
No fundo de nós, da nossa alma, há um silêncio denso, um “buraco negro” de identidade que tudo engole e é precisamente aí que se gera a possibilidade de um novo começo.
O que é tragado pela profundidade do ser ressurge transformado. Como resposta a esta realidade surgiu o fenómeno da vida comunitária de monges em conventos e no mundo secular os diferentes tempos litúrgicos com ocorrências anuais de retiro e meditação (recorde-se o período de Quaresma no mundo cristão e o Ramadão na esfera muçulmana.)

  1. A fragilidade como potência

A luz humana é frágil, mas é nessa fragilidade que reside a sua força.
A chama vacila porque está viva, tremula porque respira.
Ela não domina as trevas, apenas as desafia com o seu pequeno clarão.
E é nesse gesto, aparentemente inútil, que o humano se afirma: sustentando, no meio do abismo, o breve fulgor do pensamento que não se rende.

  1. Conclusão: O pequeno lume da consciência e o sopro do Criador

No fim, talvez o destino do homem não seja apenas o de manter acesa a chama da palavra e do pensamento, pois, se assim fosse, o seu existir seria tão efémero como o pavio que se consome no próprio fogo.
O ser humano não é mero oxigénio a alimentar uma chama precária: ele contém em si a origem desse mesmo sopro.
Como lembrava Teilhard de Chardin, o homem é a síntese viva do cosmos em evolução, a consciência do universo voltando-se sobre si mesma, o átomo que começa a pensar, o espírito que procura compreender a própria centelha que o acendeu.

Ser humano é, pois, participar da criação em acto, e reconhecermos a nossa soberania individual com humildade.
A nossa consciência não é apenas um subproduto da natureza, mas a sua expressão qualitativa, a linguagem pela qual o universo se reconhece e se recria. A linguagem, por mais limitada que seja, é um modo de salvar o mundo da mudez e de salvar-nos, na dimensão espaço e tempo, das sombras que nos habitam.
A fragilidade da chama humana é apenas aparente: nela pulsa o mesmo fôlego que deu origem às estrelas.

Por isso, a procura de sentido que habita o homem não deve ser relegada a uma função de demiurgo menor, nem a um exercício solitário de pensamento.
É a própria vida da criação a continuar o seu movimento, o espírito em busca de si, emergindo do tempo, a tentar pronunciar, por meio de nós, a Palavra original que tudo sustenta.

Assim, cada ser humano é uma faísca consciente do grande fogo Criador, uma chama individual e irrepetível, centelha do Espírito em evolução, que ao iluminar-se participa da Luz total que a origina e sustenta. Em Jesus Cristo, protótipo do humano (em quem o humano se revela como morada do divino e o divino se faz caminho de humanidade) e ponto de convergência da criação, o universo encontra a sua própria consciência de Deus e o homem reconhece em si o rosto divino, de que é imagem, na caminhada para a plenitude. Assim, o ser humano não é mero reflexo, mas participação viva no próprio mistério criador.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

O ESPELHO E A NÉVOA

Por António da Cunha Duarte Justo

Introdução

Este conto é, também, uma alegoria.
António e Leonor são espelhos de um casal, de uma época, de nós mesmos.
A sua história, embora inventada, repete o que tantas vezes se oculta sob o nome de amor: dor travestida de entrega, fantasmas e feridas antigas que se insinuam no presente e procuram redenção nos outros.
O propósito é duplo: literário e pedagógico. Contar a beleza e a ruína de um vínculo, mas também iluminar os movimentos invisíveis de mecanismos inconscientes que mantêm tantas almas cativas.

O Jardim e a Janela
António via-a através do vidro da janela da sala. No jardim, Leonor girava sobre si mesma, de braços abertos, o vestido branco a ondular como névoa em turbilhão. Parecia uma bailarina entregue a uma música secreta, invisível ao mundo. A cena era de uma beleza dolorosa, quase fílmica ou mesmo sagrada.
Mas António sabia: aquele riso cristalino podia, a qualquer instante, dissolver-se em choro convulso, em silêncio glacial, em gritos que atravessavam as paredes. Era o equilíbrio precário da sua rainha, da sua menina, da sua condenação.

Dentro de casa, o telefone tocou. Era a mãe de Leonor, agora confinada a um lar.
A voz de Leonor mudou de repente: da euforia infantil e meiga para uma gravidade quase litúrgica.
– Já vou, mãe. Sim, levo o que precisa. Está tudo bem.

António suspirou. Conhecia bem esse duplo registo. Na noite anterior, aquela mesma boca que agora falava com doçura gritara-lhe que era um inútil, um imbecil que a sufocava com a sua paixão doente, que nunca a entenderia.

Era o mesmo ciclo de há trinta anos, repetindo-se em discussões vazias que mais pareciam diálogos com fantasmas, as mesmas vozes do passado, dançando sobre a lama onde antes houvera vida.

O Círculo de Giz

– Não me olhes assim! – irrompeu Leonor, entrando na sala como um furacão. – Esse teu olhar de cão abandonado faz-me sentir… suja!

– Eu só estou a olhar para ti, Leonor. Só te admiro e sempre te compreendi – disse António, numa voz que parecia um fio gasto de paciência e compaxão.

– Admiras? Ou toleras? Tu és tão passivo! Um zero! Casei contigo para não ser o tapete de ninguém e afinal tornei-me a esposa de um tapete!

António calou-se, pensando na farsa de Inês Pereira e a sua relação com Pêro Marques. Sabia a cena de cor.
Ela, a filha maltratada por um pai colérico e ignorada por uma mãe distante e fria, procurara nele o príncipe salvador. Ele, apaixonado e culto, enfeitara-a com ouro e joias, construiu-lhe uma gaiola dourada pensando erguer-lhe um trono. Mas Leonor descobrira cedo o seu trauma infantil e que só deixaria de ser vítima se se tornasse algoz. E António, cúmplice perfeito, oferecia-se ao sacrifício.

– Desculpa, Leonor – murmurou ele, repetindo o mantra que o definia.

Ela saiu, deixando para trás perfume caro e a névoa de incompreensão que o asfixiava.

Os Conselheiros do Labirinto

Na semana seguinte, dois gabinetes, duas vozes, dois mapas diferentes.

No psicólogo:
– Sinto que ele me anula, doutor. Sinto que a minha energia se esvai…
– A sua verdade é soberana, Leonor, deve centrar-se na sua perspetiva. A vida é sua e o seu marido, com todo o respeito, é uma figura coadjuvante na sua narrativa. A Leonor precisa de adquirir poder e autoridade.

Leonor saiu dali eufórica e reforçada no seu ego. Foi ao shopping às compras. Gastou ainda mais do que de costume. Comprou vestidos e ilusões, sentindo-se rainha por algumas horas.

No gabinete do Director Espiritual (Padre Fernandes):
– Padre, sinto um vazio. Vivo como se fosse um jogo de sombra. Faço as lidas da casa e cuido de diversos afazeres… Não sinto alegria e só em pensar na família a falta de ar atafega-me.
– Talvez o caminho seja olhar para além de si. Não como dever, mas como dom. Olhe para o António não como um espelho que reflete o que você é, mas como uma outra alma, com as suas próprias lutas. Na vida de casal há um eu, um tu e um nós e o nós é aquela “personalidade” que integra os dois e os faz crescer cada qual no seu ser de pessoa.

Leonor saiu dali comovida e a pensar no altruísmo. Decidiu visitar a mãe todos os dias. Esqueceu-se, porém, que era o aniversário de António. Ele jantou sozinho, diante de um bolo frio.

A Alegoria da Farsa
Chegada a noite, a crise explodiu.
– Onde estiveste? – perguntou António, sem acusar.
– Com a minha mãe! A fazer o que tu nunca farias! A ser uma pessoa decente! És tão egoísta! Só pensas em ti!

Ele deixou escapar uma gargalhada amarga.
– Isto é uma farsa, uma farsa de uma genialidade trágica, Leonor. Passo a vida a pensar em ti, a aceitar os teus caprichos, a engolir os teus insultos, tolero o desprezo e as projeções a que me atiras… e sou eu o egoísta? Não vês que me castigas pelo crime do teu pai e pela negligência de tua mãe? Eu não sou ele nem tão-pouco sou tua mãe que vingas em mim!

Leonor empalideceu. A sua narrativa interna vacilou ao ser tocada no seu roteiro inconsciente. Gritou, mas o grito soou oco, até aos seus próprios ouvidos. Caiu em lágrimas. O seu mundo de fantasia, onde ela era a vítima perpétua, entrou em colapso por um segundo.
– Porque é que ninguém me ama? Porque é que eu sou assim?

António aproximou-se, mas não a tocou. O seu amor doentio, simbiótico, pedia-lhe para a abraçar, para a salvar, mas conteve-se. Algo novo emergiu: uma claridade dolorosa.

A Intervenção do Espectador

Não foi um psicólogo específico, mas a própria vida que os levou finalmente a uma consulta conjunta. António colapsara também: o corpo não aguentara mais o peso do silêncio e de tantos sapos engolidos.

O doutor, de fala serena e olhar analítico, parecia um retrato vivo de Jung. Escutou-os. Horas seguidas. Depois falou.

– O que temos aqui não é um campo de batalha com um culpado e uma vítima. É um sistema de espelhos quebrados, onde cada um reflete no outro as feridas do passado de forma distorcida. Leonor, dentro de si insurge-se um vazio insaciável, onde ainda grita a dor da menina que não foi vista nem tida em conta na infância. A Leonor, inconscientemente, exige que António pague essa conta: que a veja, a preencha, a cure. Mas nenhum homem pode ser o pai ou a mãe que faltou, nenhum ser humano pode ser a salvação de outro. A sua instabilidade, a sua hipersensibilidade, a sua raiva, a sua fantasia de abandono… são sintomas de uma dor antiga. É a sua ‘menina maltratada’ que grita, mas quem ouve e as paga é o homem que a ama, não o pai que a magoou. A Leonor revive o abandono que experimentou na infância e fatidicamente auto-castiga-se ao fazer por voltar a ele.

O terapeuta junguiano voltou-se para António.

– E você, António, o seu apaixonamento é nobre, mas tornou-se numa renúncia a si mesmo e isso não é sadio. A sua tolerância não é amor, a sua paciência transformou-se em conivência com a doença. Ao não estabelecer limites, ao tolerar tudo, ao viver em simbiose, você não a está a ajudar. Está a alimentar os sintomas de Leonor. Com a sua exagerada compreensão está a dar-lhe mais razões para ela não se respeitar a si mesma e como pode ela respeitar alguém que se anula por ela? A sua paciência é, paradoxalmente, uma forma de egoísmo: você prefere o sofrimento conhecido à coragem de uma mudança real. O seu sacrifício, longe de ser amor, tornou-se uma prisão que o impede a si mesmo de ser e de se afirmar e assim impede Leonor de se enfrentar a si mesma e deste modo ela reconhecer o jogo entre a menina abandonada que aspira a ser rainha e fatalmente se vinga.

– O caminho, continuou o doutor, não é um resgatar o outro, mas cada um resgatar-se a si mesmo, numa de complementaridade, interajuda e compreensão. Leonor, a sua jornada é aprender a descobrir-se e encontrar a realidade para além do filtro da sua dor e que o mundo não gira à sua volta, porque esta crença isola-a e destrói-a.
António, a sua jornada é aprender que o amor não é fusão e sofrimento. É aprender a ser um indivíduo completo, que apoia e ama sem desaparecer. Você conhece o segundo maior mandamento cristão que é amar o outro como a si mesmo. Isto pressupõe um nível saudável de amor-próprio para poder amar e cuidar do próximo de forma genuína.

A Névoa e o Mapa
António e Leonor deixaram o consultório sem dizer uma palavra.
Não sentiam culpa, mas compreenderam algo mais profundo: a consciência de que estavam presos a padrões que agora se revelavam, como se uma máscara tivesse caído.
Não havia redenção milagrosa, apenas a clareza que obriga à mudança.
Diante dessa nova consciência, reconheceram a necessidade ética da reconciliação consigo mesmos e de se responsabilizarem por si e pela humanidade que representam.
Perceberam que o caminho seria longo, talvez não tivesse fim
Naquele dia, António não pediu desculpa. E Leonor não o acusou. Pela primeira vez, não há acusações nem desculpas. Caminham lado a lado, duas solidões distintas, mas agora conscientes dos fantasmas que dançavam neles e entre eles. A névoa não se levantara, mas possuíam agora um mapa rudimentar para não se perderem nela para sempre. E nesse mapa, a primeira indicação era a mais clara e a mais subtil: a de que a única libertação possível começava no autoconhecimento.
Consideração Final

Este conto não ensina, reflete. É um espelho erguido diante do humano onde a alma se reconhece e se estranha.
Em António e Leonor, cada leitor poderá entrever-se a si mesmo! Neles cintilam as múltiplas faces do humano: o que fere e o que cura, o que ama e o que teme, o que se entrega e o que foge, sempre como parte do mesmo círculo de amor e perda.
A libertação não está no sacrifício do outro, mas na lucidez de quem se encontra consigo mesmo e descobre, na relação autêntica, a força que sustenta o real que leva à travessia interior que conduz ao reconhecimento da própria verdade.
Talvez o destino mais alto do amor e a plenitude de uma vida partilhada seja este: compreender e pensar o eu a partir do nós, no espaço vivo do eu-tu-nós, essa teia de reciprocidade onde o humano pressente o mistério da Trindade.

© António da Cunha Duarte Justo, Pegadas do Tempo, dezembro 2019
https://poesiajusto.blogspot.com/2025/10/o-espelho-e-nevoa.html

PARA ALÉM DA MATRIZ MASCULINA

Uma análise crítica da dominância masculina nas estruturas sociopolíticas e a necessidade de reequilibrar os princípios feminino e masculino

Por António da Cunha Duarte Justo

 

Introdução: O Colonialismo Mental da Matriz Masculina

Neste ensaio procuro elaborar uma proposta de um modelo antropológico equilibrado com base no princípio da complementaridade.                                          A sociedade contemporânea encontra-se enredada num paradoxo fundamental: enquanto se proclama a igualdade de género e se celebram conquistas no campo dos direitos das mulheres, a estrutura profunda que organiza o pensamento, o poder e a economia permanece fundamentalmente masculina na sua essência. Este “colonialismo mental”, como aqui o designamo, não poupa homens nem mulheres, condicionando o desenvolvimento humano e social a padrões aparentemente arbitrários, determinados pelo zeitgeist de cada época, mas invariavelmente ancorados numa lógica de afirmação, competição e domínio.

O presente artigo propõe uma análise teórica, analítica e crítica da nossa matriz antropológica e sociopolítica, procurando não apenas diagnosticar o problema, mas apresentar um modelo alternativo que honre genuinamente tanto o princípio da feminilidade como o da masculinidade, não como categorias biológicas fixas, mas como dimensões complementares presentes em cada ser humano e necessárias ao equilíbrio social.

  1. Arqueologia da Diferenciação: Das Origens à Divisão do Trabalho

1.1. As Raízes Evolutivas da Especialização

Nos primórdios da humanidade, a divisão de tarefas entre caça e recolha estabeleceu padrões de especialização cognitiva e social que reverberam até hoje. O homem caçador desenvolveu capacidades de visão ao longe, pensamento abstrato e estratégico, capacidade de risco calculado e ação decisiva, características que designo como “masculinas”. A mulher recolectora especializou-se na atenção ao próximo e ao concreto, na gestão do espaço doméstico, na nutrição e no cuidado, as pressupostas características “femininas”.

Esta diferenciação inicial, produto de necessidades adaptativas, não era hierárquica, mas complementar. Duas leis evolutivas operavam em equilíbrio: a lei da afirmação seletiva (seleção natural, competição, domínio do mais forte) e a lei da colaboração (cooperação, inclusão, interdependência). Ambas eram necessárias à sobrevivência do grupo.

1.2. Da Deusa-Mãe ao Patriarcado: A Viragem Neolítica

No período neolítico, com o surgimento da agricultura e da pecuária, o culto da deusa-mãe testemunhava o reconhecimento da mulher como princípio de continuidade da vida, associada à terra fértil e à natureza. Esta fase representa talvez o último momento histórico de equilíbrio real entre os princípios feminino e masculino nas estruturas simbólicas e de poder.

Com o desenvolvimento da metalurgia, da guerra organizada e das primeiras estruturas estatais complexas, inicia-se a progressiva masculinização das estruturas de poder. O princípio masculino expresso em  afirmação, conquista, hierarquia e domínio, passa a colonizar todas as esferas do social.

  1. A Economia como Motor da Masculinização Social

2.1. Da Revolução Industrial à Era Digital

A Revolução Industrial marca um ponto de viragem crucial. A transição dos modelos agrícola e artesanal para a produção industrial em larga escala exigia cada vez mais mão-de-obra. As mulheres constituíam uma reserva estratégica, mas para serem integradas no mundo industrial, tinham de se adaptar à lógica masculina da produção: competição, eficiência, hierarquia rígida, separação entre trabalho e vida.

A pílula anticoncepcional, significativamente criada para as mulheres, não para os homens, simboliza esta instrumentalização: permitia às mulheres entrarem no mercado de trabalho nos termos masculinos, controlando a reprodução para não interromper a produção. A maternidade, princípio feminino por excelência, tornava-se um “problema” a gerir sob o princípio da masculinidade.

O pragmatismo e o utilitarismo substituíram progressivamente a filosofia, a religião e a ética social como fundamentos do pensamento coletivo. A sociologia tornou-se a pilar da democracia, mas uma democracia crescentemente reduzida à gestão pragmática e cosmética, orientada para resultados mensuráveis a curto prazo, numa lógica essencialmente masculina expressa também na funcionalidade e logaritmos.

2.2. O Marketing e a Instrumentalização da Feminilidade

Paradoxalmente, enquanto as estruturas se masculinizavam, o marketing descobria na sensibilidade feminina um filão a explorar. As mulheres, mais orientadas para o sentimento e para a dimensão relacional e do consumo (versus o foco masculino no propósito), tornaram-se alvos privilegiados da indústria e dos serviços. Mas esta “valorização” da feminilidade era, na verdade, mais uma forma da sua instrumentalização ao serviço do princípio masculino: o lucro, a expansão, o progressos ou seja, o crescimento pelo crescimento.

  1. O Princípio “Divide et Impera” Aplicado ao Género

3.1. A Falsa Dialética da Luta de Géneros

O antigo princípio político e militar “divide para reinar” (divide et impera) encontra na questão do género uma aplicação particularmente insidiosa. Tal como na luta entre ricos e pobres, a dialética entre homens e mulheres é frequentemente enquadrada em termos de conflito, competição e conquista de poder, numa palavra, em termos masculinos de carácter meramente sociológico.

Grande parte do ativismo feminista contemporâneo, embora animado por legítimas reivindicações de justiça, adota estratégias de luta de carácter extremamente masculino: afirmação agressiva, confrontação, conquista de territórios de poder. Esta contradição performativa, lutar pela feminilidade com armas masculinas, revela até que ponto a matriz masculina colonizou até os movimentos que pretensamente a contestam.

3.2. A Naturalização do Paradigma Militar

A naturalidade com que se discute hoje a introdução do serviço militar obrigatório também para mulheres constitui um sintoma revelador. O modelo militar, hierarquia rígida, obediência, violência organizada, sacrifício individual ao coletivo abstrato, representa a quintessência do princípio masculino. Que a “igualdade de género” se afirme através da integração das mulheres neste modelo, em vez de questionar o próprio modelo, demonstra o grau de internalização da matriz masculina. Também a mulher reduzida a mera funcionalidade.

  1. Mutilações Contemporâneas: Homens Efeminados e Mulheres Masculinizadas

4.1. O Mito da Feminização Social

Observamos hoje homens aparentemente mais “efeminados”, o que é frequentemente interpretado como sinal de feminização da sociedade. Esta leitura é duplamente equivocada. Primeiro, porque confunde efeminação (caricatura da feminilidade) com feminilidade genuína (princípio de integração, cuidado, relação). Segundo, porque estes homens não são agentes de uma mudança estrutural, mas sintomas e vítimas do zeitgeist, manifestações de uma crise de identidade masculina que não altera a dominância da matriz masculina nas estruturas de poder.

4.2. O Drama das Mulheres em Posições de Poder

Sintomaticamente, mulheres em cargos de liderança tendem frequentemente a ser mais agressivas, mais “masculinas” na sua gestão do que muitos homens. Este fenómeno não é acidental: numa estrutura masculina, as mulheres sentem necessidade de “provar” o seu valor adotando e exacerbando os códigos masculinos. É uma forma de compensação que, tragicamente, perpetua o sistema que as limita.

A verdadeira igualdade não virá de mulheres que se tornam “homens honorários”, mas da transformação das estruturas para que possam acolher genuinamente o princípio feminino.

  1. A Era Digital e a Intensificação da Masculinização

5.1. Hiperconexão e Individualização

A revolução digital, com a Inteligência Artificial, a automação, os Big Data e a biotecnologia, promete (ou ameaça) uma transformação sem precedentes. Paradoxalmente, num mundo hiperconectado, observamos uma intensificação da individualização (acentuação do ego), mais uma manifestação do princípio masculino (autonomia, separação, competição) em detrimento do feminino (interdependência, comunidade, cuidado).

A lógica algorítmica que domina a era digital é essencialmente masculina: análise, divisão, classificação, otimização, eficiência. Os próprios algoritmos reforçam soslaios de género existentes, perpetuando a matriz masculina em código.

5.2. A Crise da Visão a Longo Prazo

O modelo masculino dominante, focado na afirmação imediata e na conquista de objetivos a curto prazo, mostra-se crescentemente inadequado face aos desafios contemporâneos. As crises ecológica, climática e de sustentabilidade exigem precisamente as qualidades do princípio feminino: cuidado com o longo prazo, atenção aos efeitos sobre o todo, responsabilidade relacional, prudência.

A incapacidade das nossas estruturas políticas e económicas de responderem adequadamente a estes desafios não é acidental, é estrutural, produto da dominância da matriz masculina.

  1. Proposta de um Modelo Antropológico Equilibrado

6.1. Reconhecer a Bivalência de Cada Pessoa

O primeiro passo é reconhecer que cada pessoa, independentemente do sexo biológico, é portadora de características masculinas e femininas. A masculinidade (afirmação, análise, abstração, competição) e a feminilidade (integração, síntese, materialidade, tangibilidade: colaboração) não são propriedades de homens e mulheres, mas dimensões da psique humana (Aninus e Anima) e princípios organizadores da sociedade.

6.2. Reequilibrar as Estruturas de Poder

Em vez de procurar a “igualdade” através da adaptação das mulheres à matriz masculina, é necessário transformar as próprias estruturas para que valorizem genuinamente:

– Decisões a longo prazo (versus resultados imediatos)

– Cuidado e sustentabilidade (versus crescimento e conquista)

– Colaboração e interdependência (versus competição e autonomia)

– Concreto e local (versus abstrato e global)

– Processos e relações (versus objetivos e hierarquias)

6.3. Reformular a Educação e a Cultura

A educação deve cultivar conscientemente ambos os princípios em todas as pessoas:

– Capacidade de afirmação e de integração

– Pensamento analítico e sintético

– Competição saudável e colaboração

– Autonomia e interdependência

– Corpo e alma em diálogo de complementaridade

  1. Para Além do Zeitgeist: Liberdade de Pensar

7.1. “Conhece-te a Ti Mesmo”

O princípio socrático “conhece-te a ti mesmo” é aqui fundamental. Enquanto não reconhecermos conscientemente a colonização das nossas mentes pela matriz masculina, permaneceremos seus prisioneiros. O autoconhecimento individual e coletivo é a precondição da liberdade.

7.2. Criatividade e Inovação Genuínas

A verdadeira criatividade e inovação exigem liberdade de pensar para além dos padrões estabelecidos. Um modelo antropológico equilibrado, que honre ambos os princípios, seria genuinamente inovador; não no sentido do “progressismo globalista” (que é frequentemente mais uma forma de imperialismo da matriz masculina), mas no sentido de abrir possibilidades realmente novas de organização social.

  1. Conclusão: Rumo a uma Nova Complementaridade

A sociedade contemporânea encontra-se numa encruzilhada. A intensificação da matriz masculina, longe de nos conduzir a um futuro sustentável e humanamente satisfatório, está certamente a produzir uma era de “desumanização do humano”, um novo nomadismo desenraizado, uma crise ética de proporções sem precedentes.

A solução não passa por inverter simplesmente a polaridade, substituir a tirania do masculino pela do feminino, mas por reconhecer a necessidade de ambos os princípios numa relação de complementaridade genuína, não hierárquica.

Homens e mulheres, cada um com a sua particular combinação de características masculinas e femininas, precisam de estruturas sociais, políticas e económicas que valorizem essa riqueza em vez de a mutilarem. Apenas assim será possível um desenvolvimento verdadeiramente humano, nem exclusivamente masculino nem exclusivamente feminino, mas integralmente humano.

O desafio não é técnico, mas civilizacional: trata-se de re-imaginar a própria estrutura do poder, da economia e da organização social para além do paradigma da dominação. Trata-se, afinal, de realizar a promessa não cumprida da modernidade: uma sociedade de pessoas livres e iguais em dignidade, capazes de afirmação e de integração, de autonomia e de interdependência, de conquistar e de cuidar.

Este é o horizonte de uma verdadeira inovação antropológica, não a adaptação das mulheres ao mundo masculino, mas a criação de um mundo verdadeiramente humano.

O progresso verdadeiro não é apenas técnico, mas humano; não é apenas crescimento, mas desenvolvimento; não é apenas afirmação, mas também integração.

Considero urgente que os temas de que a ciência, a economia e a política se deveriam ocupar prioritária e criticamente seriam os seguintes: Matriz masculina, princípios feminino e masculino, complementaridade de género, antropologia social, crítica da modernidade, economia do cuidado, colonialismo mental, desenvolvimento humano integral.

António da Cunha Duarte Justo

Teólogo e Pedagogo

Pegadas do Tempo

TRATADO DAS ONDAS

(Da Lei da Vida e Seus Complementos)

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a vida é um mar de forças entrelaçadas,

Ondas que se erguem, ondas que se abraçam,

Leis que se completam, nunca separadas.

No atrito, a essência da união é gerada,

Na resistência, a pele do ser é lavrada.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Quantas tempestades, no lar, seriam sossego,

Se o olhar, em vez de acusar, fosse espelho cego

Para enxergar no outro a própria face manchada.

O problema que em mim começa, em mim se desfaça,

E não no outro, espelho da minha desgraça.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que os donos do poder, cegos em sua doutrina,

Trocam o diálogo por uma guerra fina,

Ondas humanas que sua dança despedaça.

Ignoram que a força que usam para domar

É a mesma que um dia os virá a devorar.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a onda que vem não é inimiga da ida,

Mas irmã que sustenta a maré da vida,

E na aparente guerra, o equilíbrio se enlaça.

Cada rugir de espuma, cada aresta lapidada,

É o preço da existência, a marca da jornada.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a força que nos define, que nos individualiza,

É a mesma que nos une, que nos harmoniza,

E o conflito é só a superfície que se escava.

No embate de vontades, na correnteza alterosa,

Nasce a consciência clara, serena e luminosa.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que as leis do mar e as leis da alma são iguais:

Não há onda sem mar, nem ser sem os seus laços,

E o que parece oposição são elos universais.

No alto mar da vida, no barco da razão,

São as ondas contrárias que dão à vela direção.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

Que a vida se move em ritmos de complemento,

No ondular do tempo, no sopro do momento,

Toda a guerra é passageira, todo o atrito é um vento.

E quem se vê como parte do todo entrelaçado,

Encontra na resistência o sentido do abraço.

 

Se cada um soubesse, se cada um notasse,

A grande lei do mar, que a tudo rege e passa:

Ser é ser com o outro, na mesma dança e casa,

E a onda que hoje luta é a que amanhã abraça.

Pois a vida não é combate, é composição,

E a mais sábia vitória é a da compreensão.

 

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

A CIDADE DAS ÂNFORAS VAZIAS

Ensaio literário sobre o tear do medo, tecido com os fios da máscara e o nó da denúncia

Era uma vez uma cidade já velha chamada Ânfora, cujas casas eram como ânforas gregas, belas, mas ocas, destinadas a guardar um vinho que já ninguém bebia. O ar, outrora preenchido pelo murmúrio das fontes e pelas risadas nas praças, tornara-se pesado, saturado de um silêncio que era menos paz e mais ausência provocadora.

Um dia, sem que se visse o inimigo, os Oleiros da Cidade, que outrora moldavam a vida comum, decretaram o Grande Recolhimento Domiciliário. Um “Cuidado Invisível” pairaria sobre todos, alegavam. Para nos proteger, disseram, é preciso que cada ânfora se feche sobre si mesma.

E assim foi; decretou-se estado de emergência e recolher obrigatório. As portas cerraram-se. Os rostos, outrora mapas de emoções, foram cobertos por véus de linho branco. Os olhos, as únicas janelas que restavam, aprenderam a desconfiar. Um sorriso, um cumprimento, um abraço, um aperto de mão, actos outrora inocentes, tornaram-se suspeitos, possíveis veículos do tal Cuidado Invisível.

O Oleiro-Mor, de seu nome Governância, em conluio com os Arautos, os contadores de histórias oficiais, começou a tecer uma narrativa de medo. O seu tear era a repetição, e o fio que usavam era o pavor. “Dividir para reinar”, sussurravam os sábios mais anciãos, recordando os velhos compêndios de poder e das elites. E a divisão veio: o vizinho denunciava o vizinho por não trazer o véu corretamente ou por o não trazer, desobedecendo assim ao regulamento de agendas globais e de seus administradores que em nome do globalismo tinham renunciado a ser governantes; o amigo afastava-se do amigo, temendo o hálito que outrora partilhava em confidências e em encontros sociais.

Até os Guardiães das Almas, os Sacerdotes do Deus-Homem, quebraram o seu próprio cânon. Acreditando servir a um deus maior, a Ciência dos Oleiros, fecharam os templos e proibiram o consolo do rito, esquecendo que a alma, essa verdadeira soberana, definhava de fome e solidão. A ânfora humana, fechada, começou a rachar.

Nesse tempo de exílio interno, uma jovem jardineira de almas, chamada Serena, começou a reunir um pequeno grupo no jardim abandonado da cidade. Não protestavam com gritos, mas com silêncio. A sua arma era a meditação, a sua bandeira era uma flor. Ofereciam crisântemos aos guardas de armadura que os observavam, e estes, por vezes, sorriam, confundidos por tal gentileza.

Num dia particularmente sombrio, Serena, para que as suas palavras chegassem mais claras aos corações, baixou o véu de algodão. Foi o suficiente para mover a trama institucional contra o peado cidadão. Dois guardas, outrora receptores das suas flores, avançaram. A alegoria da compaixão foi quebrada pela literalidade do decreto. Serena foi levada, acusada de “mau exemplo”. A sua ânfora pessoal foi violada pela mão do regulamento.

A multa foi pesada, mas um fio de solidariedade, tecido nas teias de uma Rede de Fios de Luz (que os Arautos desdenhavam), juntou o povo para pagar a dívida. Contudo, o estrago estava feito. A praça  jardim onde Serena ensinava a respirar foi-lhe retirada e os manifestantes da meditação obrigados a debandar. A lição era clara: até o acto mais pacífico de reconexão comunitária seria tratado como um crime de insubordinação.

Os Oleiros de toda a Europa sob o comando da feiticeira de Bruxelas, vendo a facilidade com que as ânforas dos seus reinos se isolaram e se voltaram umas contra as outras, aprenderam uma lição perigosa: o povo era de barro mais maleável do que julgavam. Tendo testado com sucesso os limites do seu poder em tempos de peste, sentiram-se habilitados a novos projectos. A máquina do poder unido untado com o brilho do medo tornara-se eficiente.

Assim, quando um novo conflito eclodiu nas terras distantes do Leste, os mesmos Oleiros, que nos privaram do abraço, começaram a falar em forjar armaduras para toda a cidade, transformando a Ânfora numa Fortaleza. O medo do vírus foi habilmente substituído pelo medo do estrangeiro. A linguagem tornou-se opaca, uma névoa que impedia o discernimento. A agressividade, cultivada durante anos de tensão doméstica, transbordou para as famílias, rachando jantares e envenenando laços.

A cidade de Ânfora nunca mais recuperou o seu riso. As pessoas haviam-se desabituado de confiar, de tocar, de partilhar o mesmo ar. A Democracia, outrora um mercado de ideias vivas, transformara-se num regime autoritário de gestão de crises, onde a única soberania que restava era a do medo. E as ânforas, cada vez mais ocas, ressoavam apenas com o eco sombrio de uma verdade que todos sentiam, mas que ninguém ousava pronunciar: que o maior contágio não fora o do vírus, mas o do poder absoluto, e que a mais nefasta das sequelas foi a perda da própria humanidade que alegavam proteger.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo

Complemento crítico:

Esta alegoria sobre as Medidas anti pandemia Corona Vírus toca em pontos críticos analisados por filósofos e cientistas sociais durante e após a pandemia (aqueles que não eram permitidos à luz das Câmaras de Televisão):

  1. A “Sociedade da Desconfiança”: O sociólogo polaco Zygmunt Bauman, com o seu conceito de “medo líquido”, previu como o temor pode corroer os laços sociais. A alegoria dos vizinhos que se denunciam ecoa directamente os mecanismos de controle em estados totalitários, onde o cidadão é transformado em extensionista da vigilância estatal.
  2. A Biopolítica: O filósofo Michel Foucault forneceu o conceito de “biopoder”, o controle estatal sobre a vida biológica das populações (saúde, natalidade, etc.). As medidas COVID representaram um exercício sem precedentes de biopoder, onde os governos passaram a ditar como os corpos se podiam ou não relacionar. A submissão da Igreja na sua narrativa é um exemplo claro: até a autoridade espiritual foi suplantada pela autoridade biopolítica.
  3. A “Cognição Embodied”: A neurociência e a filosofia da mente mostram que o nosso “eu” não está apenas no cérebro, mas é construído através da interação com o mundo e com os outros, além da impregnação indelével do selo branco espiritual. A privação do toque, do contacto, do rosto inteiro, do riso partilhado, não foi uma mera inconveniência; foi uma mutilação do nosso ser-no-mundo. A alegoria da ânfora rachada representa este dano psíquico profundo.
  4. A Exploração da “Crise”: A politóloga Naomi Klein, na sua “Doutrina do Choque”, argumenta que elites políticas e económicas frequentemente exploram crises (reais ou percebidas) para impor políticas impopulares que, em tempos normais, seriam rejeitadas. A pandemia e, subsequentemente, a guerra, funcionaram como esses “choques”, permitindo uma reengenharia social acelerada e uma centralização de poder, tal como descreve.