Ritualização e Institucionalização da Vaidade à custa do Subordinado
António da Cunha Duarte Justo
Tenho um amigo estrangeiro que frequentou dois semestres de estudos numa Universidade portuguesa e sofreu muito na “Semana de recepção ao caloiro”(1). Veio desencantado da Praxe Académica (2) e do meio. A sua imagem de Portugal sofreu muito por causa de um certo “espírito reinante na universidade”. Pelos vistos, na universidade que frequentou, reina um espírito rude e uma certa arrogância de classe! O pobre não sabia que “mato não é para ovelhas”!
A vida universitária marca o estudante numa fase importante da vida e deixa geralmente grandes laços de amizade entre os companheiros de estudos. É uma fase da vida especial! Nas praxes estudantis, a cumplicidade de actores na mesma acção, embora, por vezes, problemática, vincula uns e outros no sentido de formar identidades. O ritual académico, por vezes barbárico, revela-se num grande factor de integração. As cerimónias em torno do caloiro, além de promoverem o conhecimento de uns e outros, favorecem os que estão sempre onde querem estar. Ajudam a mitigar a eventual distância de professores e a possível dureza da vida académica. Dão oportunidade à festa da vida!
A prática da Praxe chega a tornar-se num cavalo de batalha entre conservadores e progressistas. Como sempre, a ideologia entorna a vida. Importante é manter a tradição, ilibando-a de extremismos de atitudes, sem matar a tensão, a criatividade de cada geração.
Práticas de humilhação do caloiro, demasiada importância dada ao traje e alusões directamente apelativas ao sexo e à bebedeira, deveriam ser banidas dos rituais; doutra maneira dão razão aos anti-praxe académica. Esta tem a sua explicação histórica e possui o valor psicológico e sociológico que tem; nao legitima porém a humilhação nem a violência. Por vezes parecem impor-se aqueles que se aproveitam da praxe para se armarem em praxadores da afirmação pela diferença e pelo direito prepotente de quem se encontra à frente: um mau exercício para homens e mulheres que um dia mais tarde assumirão responsabilidade na sociedade. Apostar em valores como o respeito pelo traje, o exercício do poder, a importância devida ao facto de se estar à frente, não honram a classe.
A dignidade humana, a distinção no agir académico não podem contemporizar com atitudes ordinárias e rebaixantes, atitudes de mau gosto ou mesmo fomentadoras do sadismo e do narcisismo, doença muito cultivada em Portugal.
As boas vindas aos estudantes mais novos e a ajuda à sua informação e integração no meio académico pode ser alcançada com acções lúdicas desinibidas e rituais específicos. Mas fazê-los correr em cuecas, e submetê-los a certos ritos haka haka (Haca é conhecida como performance de intimidação no início dos jogos) e outros actos ainda menos apetitosos, desvirtua o espírito académico em prepotência neurótica rebaixadora. O argumento de que ajuda a quebrar o gelo inicial não justifica os métodos empregados para tal. Também nada há a opor aos padrinhos desde que eivados do espírito de servir e não de espírito mafioso. Doutro modo a Universidade em vez dum lugar de trabalho e de democracia torna-se na promotora de grupos de solidariedade limitada, em exemplo de tirania.
Esta pedagogia do privilégio académico, de uns dominarem sobre os outros, acentua a cultura da diferença e do posicionamento. Acentua-se e ritualiza-se a posição do superior e do inferior. O poder é aqui experimentado como abuso de hierarquias e não como autoridade.
Dá-se uma forma iniciática à hierarquização da prepotência, arrogância do “doutor” sobre o caloiro, o zé-povinho. A justificação da lei da “Dura praxis, sed praxis” predestina esta classe doutoral de maneira fatídica à legitimação da violência física e psicológica dos de cima contra os de baixo (dos doutores contra os caloiros). O direito de estado antepõe-se à lei e aos direitos da pessoa.
Portugal é um país extremamente assimétrico. O ranço da História foi conservado nas universidades e transmitido por sociedades secretas e organizações afins. A consciência disso deveria responsabilizar a Universidade que contribui, na prática, (resssalvem-se exemplos dignos), para a ritualização e institucionalização da humilhação sub-reptícia que se expressa num sentimento de superioridade à custa do subordinado.
Uma capa de estudante não só serve para encobrir misérias, muitas vezes encobre instintos primários e atitudes irreflectidas que relegam o caloiro para o domínio da animalidade (besta). O caloiro aprende de maneira ritual instintiva que os direitos dependem e vêm dos manda-chuvas de cima. O valor não está nele mas na sua capa e nas relações a estabelecer! O mesmo sente no ar a mãezinha quando, na queima das fitas, vê o seu filho passear a importância de “doutor”. Não se pretende, aqui, ser-se contra as tradições académicas, trata-se é de as domesticar e sublimar.
O estudante português, muitas vezes, está habituado a ser pago pelos paizinhos, não tendo experiência de trabalhos em cafés, restaurantes, padarias, como acontece, em grande parte dos estudantes na Alemanha, que assim dão um contributo para a sua manutenção e experimentam a vida real, aprendendo, na prática, a considerar, como colegas, os que ganham 5 ou 6 euros à hora!
A raiz de certos problemas comuns a uma certa elite portuguesa já se pode observar num meio académico artificial. Muitos paizinhos esfalfam-se para poderem manter os meninos e meninas a estudar sem que estes se tornem conscientes da realidade da vida! Uma sociedade assimétrica, em que uma parte não sabe da outra, corre o perigo de continuar a ser cimentada na artificialidade da honra gratuita favorecedora do parasitismo e do comodismo das nossas elites.
António da Cunha Duarte Justo
antoniocunhajusto@googlemail.com
www.antonio-justo.eu
(1) Designa-se caloiro o estudante do primeiro ano de universidade.
(2) Praxe são tradições, usos e costumes especiais académicos; têm grande relevo como ritos iniciáticos para integrar os caloiros na vida académica; estes trazem sangue novo e nova vida ao mundo académico. Estas tradições da Universidade de Coimbra (por ex. queima das fitas) são assumidas por outras academias, com variantes específicas.
No Brasil, o Trote/Praxe Académica é muito comum e também continua a ser violento.
Trote, uma prática medieval que desafia as universidades.
11 fev. 2011
Os trotes violentos no Brasil, de 1831 a 2011 . “A universidade ainda não vê como sua tarefa coibir o trote”.
As instituições tentam implementar programas de “boas vindas aos calouros”, mas aindam falham em coibir humilhações e agressões.
leia em veja.abril.com.br/noticia/educacao/tr.
O trote será um sintoma de deficiente consciência cívica?
Isto acontece mais entre os povos ibéricos ou ibérico-americanos?
CALOIROS – PADRINHOS – PRAXES – ESPÍRITO ACADÉMICO
Frequentei também uma Universidade alemã e não dei com tais ritos!
Os estudantes procuram apoio e orientação na AStA
António da Cunha Duarte Justo
É assim eu sou caloira e se uma coisa que a praxe não é é violenta. Nós divertimos-nos muito e quando temos que fazer coisas mais duras os nossos praxantes querem sempre saber se podemos fazer ou não tais coisas. Se dizemos que estamos constipados ou doentes eles estão a cada meia hora a nos perguntar se estamos bem. Quando está calor estão sempre a perguntar se queremos água, quando está frio eles cobrem-nos com as suas capas e passam eles frio para nós estarmos bem.
O ritual de praxe ajuda-nos a nós caloiros a nos ambientar à Universidade a fazermos novos amigos, a conhecer os nossos colegas para não nos sentirmos sozinhos ao longo dos anos em que estamos a estudar, o que é muito importante sobretudo quando estamos longe de casa numa outra cidade e somos por natureza introvertidos.
Há casos e casos claro mas eu acho que em vez de atacarem a praxe e dizerem mal da praxe deviam perguntar e obter informação suficiente para saber que a praxe não é má nem violenta.
Caríssimo Justo
O texto dos 5 mitos das praxes explica muito bem o aspecto da obrigação psicológica em que os caloiros se sentem de participarem se quiserem ser aceites na uni.
Em geral são os veteranos frustrados os piores a achincalharem os mais novos.
A comparação com a escravidão das populações nas sociedades de ditadura está muito bem feita.
Numa democracia, não deveriam existir esse tipo de praxes. Felizmente em Lisboa quando andei na universidade não havia praxes!
No Porto sei que a filha de uma colega nossa não pôde usar capa e batina porque não quis ser praxada, mas com isso deixaram-na em paz e sossego. Pôde dedicar-se completamente aos estudos.
Li que no caso do Meco, os que morreram não eram caloiros, mas faziam já parte de uma hierarquia
nas praxes. Resolveram ir para a praia porque tinha sido uma 6.a feira dia 13 e estava lua cheia, o que tinha significado das bruxas ou algo que lho valha… talvez meio demoníaco…
Uma das vítimas tinha escrito um sms dizendo que estava já farta do “dux” (que sobreviveu) e que dali iria parar ao psicólogo!!! Aí se nota que estava coagida… que as coisas estavam a correr muito mal…
Na minha opinião o tal “dux” é culpado nas mortes na praia do Meco. Se iremos um dia saber isso,não sei, Camarate também nunca se apurou oficialmente a verdade…
M M